Intervenção de João Dinis, Dirigente associativo agrícola da CNA e da ADACO - Associação Distrital dos Agricultores de Coimbra, Seminário «Do papel e política do Estado aos meios necessários – O que falta fazer na Protecção Civil?»

A pequena e média agricultura e propriedade florestal – linha da frente na prevenção de incêndios

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Vamos aqui abordar sobretudo aspectos da dita “Protecção Civil” em sentido lato, por assim dizermos a montante do foco dos acontecimentos mais característicos e em geral tratados quando se discute a temática hoje em presença.

Entremos então no enquadramento em que os Agricultores ainda ocupam os territórios e, agricultando, começam por estar na linha da frente da prevenção dos incêndios Florestais/ Rurais e terminam no combate puro e duro ao flagelo do fogo, em defesa dos seus teres e haveres, quando não em defesa das próprias vidas...  

Cabe salientar que os Agricultores e demais rurais não são os culpados estruturais pelos Incêndios e acabam mesmo é por ser das maiores vítimas do Fogo. Porém, o “sistema dominante” propagandeia o contrário para tentar sacudir as chamas, as brasas e as cinzas do capote…pois claro.

Os Agricultores são pois acusados de abandonarem as suas parcelas rurais o que estará na base do flagelo sazonal dos Fogos.  Por “curiosidade” quase caricata, lembro umas declarações do Primeiro-Ministro nas televisões a propósito da gravidade de um Incêndio que lavrou este Verão no Algarve.  Dizia então ele que a falta do cadastro rústico e o “abandono” por parte dos proprietários rurais proporciona este tipo de grandes incêndios.  Porém, nesse mesmo incêndio até um campo de golfe ardeu e não consta que tenha sido por “abandono” da relva ou pela falta de cadastro… 

Violência e extensão dos Incêndios Florestais “modernos” radicam na ruína da Agricultura Familiar e da Floresta mais tradicional que tem sido substituída pela Floresta industrial (para estilha) e em regime de monocultura intensiva.

A ruína da Agricultura Familiar e da Floresta de uso múltiplo ou multifuncional muito contribuiu e contribui para a ruína e desertificação humana e ambiental do Mundo Rural.  Este malfadado processo acelerou a fundo a partir da entrada da PAC, Política Agrícola Comum, na Agricultura Portuguesa com o desaparecimento forçado de centenas de milhar de pequenas e médias explorações, sobretudo das de tipo familiar.  

Ao mesmo tempo, aconteceu a desvalorização do interesse económico na Floresta mais tradicional – muito em resultado dos continuados baixos preços da madeira na produção assim como da resina – o que faz acumular mais problemas em cima de outros problemas. 

E assim está criada uma situação geral e também específica de causa/efeito em sequência, com as devastadoras consequências.  Um Incêndio entra a arder numa hora  e anda dias e noites a lavrar por montes e vales.  Os nossos avós bem diziam cheios de sabedoria que um Incêndio Florestal se deve atacar quando ainda se pode apagar com os pés.  E faziam isso mesmo sem os espectaculares meios de combate hoje existentes.  Então, havia Gente nas nossas Aldeias e, para muitos rurais, a Floresta era um autêntico “mealheiro”.  Então, valia a pena cuidá-la e acudir aos Fogos ao primeiro toque a rebate do Sino em cada localidade.  Hoje já não é assim...

É que a economia “circular” das Aldeias foi entretanto destruída com a imposição da dinâmica concorrencial e mercantilista – neoliberal - ditada pelos interesses das multinacionais e outras grandes empresas da grande agro-indústria e do grande agro-negócio em conjunto com os privilégios financeiros atribuídos aos grandes proprietários.  Eis aí a nefasta essência desta PAC e dos múltiplos acordos internacionais ditos de “livre comércio”.  Eis as brutais consequências a determinar a falta de “Protecção Civil” logo à nascença ou na rectaguarda do actual paradigma político, sócio-económico e ambiental.

Sim, Incêndios Florestais sempre os houve.  Não chegavam era às dimensões e à violência que atingem de há já algumas décadas a esta parte.  Uma trágica e desastrosa tendência que se mantém.  

Chegando nós entretanto a aspectos mais práticos no âmbito da “Protecção Civil” e do combate aos Incêndios, aquilo que de mais visível se alterou desde 2017 e dos pavorosos e trágicos Incêndios desse ano, foi um certo paradigma operado no terreno e já na fase do combate às chamas.  Assim, logo quando o Incêndio é detectado, a tendência operacional mais visível é para pôr a GNR a bloquear estradas e estradões e a patrulhar as Povoações na zona do Incêndio para impedir a circulação de viaturas e condicionar comportamentos das Populações a fim de evitar acidentes trágicos como os acontecidos em 2017 na Região Centro nomeadamente.  Ao mesmo tempo, os meios de combate e tanto os terrestres como os aéreos posicionam-se, uns, e voam, outros, em função de linhas de defesa de Povoações e Pessoas, de habitações e outras infraestruturas mais isoladas.  Enquanto isso, os Incêndios lavram e lavram em florestas e matagais.  Pessoalmente, testemunhei isso mesmo no Incêndio que lavrou em Agosto passado na zona da minha Aldeia no concelho de Oliveira do Hospital e no vizinho concelho de Seia. Incêndio que percorreu 1 400 hectares contínuos durante sete horas e entrou em espaços urbanos de meia dúzia de Povoações, aliás por áreas já devastadas em 2017.

Dir-se-á que, assim, se tem evitado a repetição das tragédias acontecidas em 2017.  Bem, isso já não é pouco. É mesmo muito mas ainda não basta.  Claro que para combater o Fogo no “seu” terreno de progressão, é necessário maior preparação dos operacionais a destacar para o combate que, digamos, isso não é tarefa para amadores ainda que voluntariosos mas pouco preparados para o combate “mano a mano” com o Fogo e mal orientados na penetração por dentro do terreno em chamas, portanto para intervir em acções que são perigosas e provocam forte desgaste físico e mental.  Pessoalmente num grande Fogo ocorrido em Góis em meados de Junho de 2017, testemunhámos o início de uma intervenção operacional de um numeroso grupo (uma centena) de Bombeiros/Soldados vindos de Espanha que, embora guiados por pessoal local com conhecimento do terreno, entraram decididamente na zona de progressão do Fogo a combatê-lo com equipamentos adequados, desde botijas de oxigénio a motosserras.  E voltaram todos eles mais tarde...

Prestar apoios privilegiados à Agricultura Familiar e à Floresta Multifuncional é a primeira linha da prevenção estrutural dos Incêndios Florestais/Rurais.  É a primeira linha ainda que de rectaguarda da “Protecção Civil” em sentido mais abrangente e mais profundo.

Um objectivo convergente para o qual devem hoje confluir os principais objectivos das políticas públicas e mesmo das privadas é o repovoamento das vastas regiões sobretudo no vasto interior e ditas de “baixa densidade” populacional e que não cessam de se despovoar.  

Para isso acontecer, a Agricultura Familiar deve passar para primeira linha das políticas públicas e, isto, mesmo nas regiões onde a actividade agrícola ligada ou não à actividade florestal não é ou já deixou de ser a actividade económica dominante.  

Entre nós, há já algumas décadas que vimos dizendo que sem Agricultura Familiar, sem muitos milhares de pequenos e médios Agricultores a produzirem e a ocuparem os territórios, não há Mundo Rural.  E que com a ruína da Agricultura Familiar também desaparecem outras actividades sócio-económicas  sedeadas ou ligadas ao Mundo Rural.  A experiência que temos vivido no nosso País, e noutros, demonstra a razão desses postulados o que não nos alegra muito.  Aliás, que bom que seria a experiência não nos dar razão nesta matéria… 

Faixas agricultadas protegem zonas urbanas das chamas mais destrutivas. Eis uma outra e inestimável mais-valia dos Agricultores e da actividade agrícola.

Os pavorosos e trágicos Incêndios de 2017 tiveram a dimensão e as características brutais de um grande e descontrolado “pirofenómeno” ou de uma “pirotempestade” como foram catalogados. “E não os queira jamais o tempo dar”, como diria Camões e todos nós esperamos… 

Na noite de 15 para 16 de Outubro de 2017 -  está a fazer cinco anos – no meio do brutal desastre colectivo,  eu vivi uma experiência tremenda em que, com a maior imprudência, andei muitos quilómetros por estradas em fogo, e durante duas horas.  Enfim, não quis o destino que por lá tivesse ficado assado…  Mas sobrevivi e tenho várias estórias verídicas para contar.  Algumas quase inverosímeis não fora eu próprio a passar por elas…

Uma dessas aconteceu dentro da cidade de Oliveira do Hospital que eu atravessava de automóvel, cerca das duas horas da madrugada de dia 16, vindo já de zonas limítrofes e com intenção de poder regressar a minha Aldeia de onde saíra há mais de uma hora antes à procura de bombeiros.  Porém, tinha saído de lá sem me aperceber que estava tudo a arder, em todo o lado e ao mesmo tempo, circunstâncias de que só me apercebi já dentro do inferno de fogo !  Acresce que, e logo desde o início dos fogos, não havia nem energia eléctrica nem telecomunicações mais usuais.  Também era por demais aflitivo o isolamento completo.

E estando eu bem dentro da Cidade de Oliveira do Hospital, dei conta de uma altíssima linha de fogo a avançar numa colina não longe das habitações urbanas e do lado Sul da Cidade, de onde soprava o vento.  A Norte da Cidade ardia a Zona Industrial...

Havia por ali algumas Pessoas aflitas na rua.  Saí do meu automóvel para dentro do fumo e de projecções do fogo, movido pela inquietação daquele perigo que ali ameaçava.  Não longe, deu para ver desde a parte de trás de uma linha de prédios citadinos, pude dar-me conta que o fogo rugia assanhado a descer a colina e já a não mais do que uns 500 metros desses prédios e de outras moradias onde muita Gente estaria em pânico.  Permaneci lá um bom pedaço de tempo na dura expectativa em que o Fogo rugiu mas não passou do pequeno vale fundeiro e não atingiu aqueles prédios cheios de Gente cheia de medo.  Dias depois, soube que o Agricultor responsável pelo tampão fresco e verde – as pastagens trabalhadas por ele - que o vale fundeiro constituiu face ao fogo naquela situação, esse pastor perdeu 300 ovelhas de raça bordaleiras nesse incêndio, mortas pelo fogo em ovis não muito distantes dali.   Pois pois e ainda por cima os Agricultores, dizem-nos, é que têm a culpa do flagelo dos Incêndios Florestais/Rurais!...

A Água também se planta.  Plantar árvores !  Plantar Árvores !  Eis a questão…

Claro que a Seca extrema e severa também é responsável pelas condições-base dos grandes e violentos Incêndios…

Ora, o “ciclo da Água” é um “mecanismo” natural – vital - que está a ser interrompido também pela acção humana e pela falta dela…

Atentemos que em 2017 arderam mais de 445 mil hectares… a juntar aos mais de 340 mil hectares de 2005…a juntar aos mais de 425 mil ha de 2003 … o que perfaz mais de 1 milhão e 200 mil hectares de floresta e matos ardidos em menos de 15 anos e, nestes, durante apenas três anos.  Pois essa imensidão de terrenos percorridos por Incêndios continua sem ser devidamente reflorestada, à excepção de algumas manchas localizadas com florestação industrial e intensiva à responsabilidade prática da grande Indústria de derivados florestais e de certos madeireiros.  À excepção da reflorestação natural em que predominam o eucalipto e a mimosa, apesar de algum pinhal “teimar” em crescer…  Aliás, até o emblemático e histórico “Pinhal de Leiria” ardeu e a reflorestação lá feita entretanto deixa muito a desejar, é mesmo uma “vergonha” para quem dela se (não…) encarregou.

Pois então as árvores e arbustos existentes antes dos Incêndios nestas vastas áreas produziam as condições naturais para fazer funcionar o “ciclo da Água”, o que foi dramática e desastrosamente interrompido pelos Incêndios.  

Já agora, e a propósito da Água, também se tem verificado o problema de haver Água “a mais” !   Falamos agora das cheias violentas e com resultados dramáticos, nomeadamente as acontecidas periodicamente no Baixo Mondego.  As mais recentes, em 2019, também provocaram grandes prejuízos e assustaram quem mais dentro delas se encontrou horas a fio.  Pois, como é sabido, a partir de 1984,  o Rio Mondego ficou com uma infraestrutura poderosa – a grande Barragem da Aguieira a poucos Km a montante de Coimbra - entre outras finalidades destinada a controlar os ancestrais ímpetos do Mondego com as suas cheias até então quase anuais.  Só que, depois daí, e apesar disso, o Mondego volta e meia galga as suas margens naturais e as construídas e inunda as imediações pondo em risco Pessoas e Bens.  Ao que muito se comenta nessas alturas, isso acontece porque quem “manda” na gestão da Água da Barragem da Aguieira – nos caudais entrados e saídos - é a EDP que quer produzir muita electricidade (...) e depois são as Celuloses situadas na Figueira da Foz que querem produzir muita pasta de papel, isto perante a complacência das enfraquecidas, por falta de meios, Entidades públicas vocacionadas para o assunto, como é o caso da APA, Agência Portuguesa do Ambiente.  E também se juntam os “crónicos” problemas de falta de manutenção da “Obra do Mondego” (rega e enxugo) e sua continuação eficaz.  Portanto, o Mondego não é o “culpado” mas sim, e de entre outras causas, o sistema de gestão das suas Águas e da Barragem da Aguieira em particular, o que urge corrigir a contento.   Também por uma questão de “Protecção Civil” a exercer logo a montante dos problemas com as inundações.

Sim, “a Água também se planta!”.

E como a Água também se planta, a reflorestação capaz das áreas ardidas é condição indispensável e mais do que estratégica para ser reposto o ciclo da Água digamos que desde a nascente… E nessa tarefa vital, vamos entretanto fugir a espécies arbóreas e arbustivas de crescimento rápido que, por natureza, essas consomem mais água embora também ardam com bastante intensidade como acontece com o eucalipto e com a mimosa, por exemplo, a que estão a juntar o pinheiro importado da espécie “radiata”.

Portanto, prevenir a Seca e os Incêndios também passa pela reflorestação das vastas áreas ardidas.  Mas com um Ordenamento Florestal correcto,  virado para a Floresta mais tradicional e multifuncional e, perante tais objectivos prioritários, com apoios públicos majorados e preferenciais.

Nesta matéria, os instrumentos públicos propagandeados pelo Governo para intervenções no terreno são manifestamente insuficientes e, bastas vezes, são desadequados e até contraproducentes pois tendem para espoliar o direito de propriedade dos pequenos proprietários e produtores florestais.  Assim, não se vai lá !...

Sim, são necessárias outras e melhores políticas agro-florestais para potenciar o desejável sucesso das acções de “Proteccção Civil” em sentido lato e mesmo em sentido restrito !

Viva a Agricultura Familiar!
Viva os nossos Agricultores!

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