Portugal é um país florestal. Antes de ser do turismo, dos serviços, das pescas ou da agricultura, Portugal é florestal. Até aceitarmos este facto, a paisagem nacional continuará cinzenta.
O estado actual da floresta é o reflexo perfeito do percurso governativo do país. Se a herança de mais de 40 anos de ditadura não se apresentou de fácil digestão ao regime democrático, a verdade é que as sucessivas alternâncias do poder executivo foram permanentemente protelando a valorização da floresta e relegando-a para o fim da lista. Podemos rapidamente apontar as políticas de coesão territorial incipientes, o abandono rural, a falta de investimento, a corrupção ou o favorecimento de grandes grupos económicos como factores que estão na origem do problema sem nos enganarmos. Tudo isto é resultado de uma falha transversal à política nacional que se traduz tão simplesmente na falta de uma estratégia florestal. Mas a floresta tem valor!
Então por que está abandonada?
- O constante favorecimento dos grandes grupos económicos, como as empresas de celulose, tem sufocado os pequenos proprietários e as associações de produtores florestais;
- As limitações e dificuldades do associativismo local. A falta de estruturas cooperativas que permitam obter ganhos de escala, as más escolhas das espécies subsidiadas, os apoios concedidos de curto prazo que visavam a instalação de projetos mas não asseguravam a sua manutenção no médio, longo prazo...
- As imensas desigualdades sociais entre o meio rural e o urbano, como o acesso a serviços, aos cuidados de saúde, educação, cultura, etc, vão desaguar na desvalorização da floresta e no consequente abandono;
- São incontornáveis os fenómenos meteorológicos extremos resultantes das alterações climáticas que nos colocam a braços com verões cada vez maiores e mais quentes, aumentando exponencialmente o risco de ocorrências de grandes incêndios.
Floresta abandonada só dá problemas e dores de cabeça e despesas e prejuízos e tristeza e ansiedade e discussões. O que é que nos sobra? A tragédia. O drama. O horror. Numa palavra: incêndios.
“O fogo é um mau patrão, mas é um bom criado”. (Esta frase não era minha, mas eu roubei-a por isso passou a ser.) Isto significa que se apostarmos apenas no combate, o fogo continuará a fazer estragos e vítimas, sem mencionar os pesados custos que a estrutura de combate implicará para fazer face a riscos que não são previsíveis. No entanto, o fogo não pode simplesmente ser riscado de qualquer plano de gestão florestal. Os ecossistemas mediterrânicos, aliás, evoluíram com o fogo. Temos uma floresta muito adaptada e sabemos que eventos de grandes incêndios acontecem naturalmente com compassos de 30 a 50 anos. No entanto, o que vemos mais recentemente são incêndios florestais a repetirem-se com intervalos cada vez mais reduzidos, de 5 anos ou menos, com intensidades extremas. Nenhuma floresta está adaptada a esta frequência de destruição. Se, pelo contrário, incorporarmos o fogo na prevenção, ou seja, na gestão florestal, pomo-lo a trabalhar para nós e temos assim forma de controlar o seu efeito. Chama-se a isso o “fogo controlado”.
O Algarve está particularmente vulnerável aos efeitos nocivos dos incêndios porque é uma região com níveis máximos de abandono rural e profundas desigualdades sociais. É também a zona do país mais afectada pelas alterações climáticas devido ao aumento das temperaturas a par da escassez de água. Segundo o ICNF, no PNFG temos no Algarve 32 077 ha de área potencial para fogo controlado. Até agora não houve iniciativas nesse sentido, com excepção das áreas que já foram alvo para treino e formação de técnicos para esse efeito, no ano passado. Estamos muito aquém desse número, sabendo que a prática de fogo controlado tem uma tradição muito mais forte no norte e no centro do país, onde, sem surpresa, a componente florestal é mais vincada.
É com prevenção que teremos mais a ganhar, a todos os níveis. Os custos de prevenção serão sempre menores do que os do combate somados aos prejuízos da passagem do fogo.
Parte substancial dos encargos com a prevenção tem recaído sobre os municípios que são obrigados a operacionalizar aquilo que todos sabemos ser impossível, isto é, a efetivação das redes secundárias nas vias de comunicação tuteladas pelas autarquias, as faixas de gestão de combustíveis em torno dos aglomerados e as limpezas obrigatórias de 50 metros junto às habitações isoladas em caso de incumprimento dos proprietários (falamos de milhares de infraestruturas em municípios onde o povoamento é eminentemente disperso). São tarefas, encargos e responsabilidades colossais endossadas aos municípios sem a devida transferência de verbas que visam apenas mitigar o problema todos os anos antes da época de incêndios e responsabilizar os técnicos e os autarcas locais, quando a verdadeira estratégia deveria assentar num ordenamento do território que possibilitasse a efetiva instalação da população no espaço rural, materializando uma gestão integrada de atividades florestais e complementares a esta, conducentes a uma nova paisagem produtiva, adaptada e resistente ao fogo (ainda que necessariamente subsidiada em áreas especificas, pouco produtivas). Um espaço que não é vivido nunca passará de um deserto. Mas também no combate têm sido os municípios, através dos seus serviços de proteção civil, e todos os sectores que com estes interagem os responsáveis pela sustentação logística das operações, no pré-posicionamento meios, no apoio de emergência às populações, etc.
Já sabemos que os municípios enfrentam a absoluta inexistência de uma política florestal nacional. Ainda assim, podem dar um contributo para valorizar a floresta, nomeadamente por via dos seus Planos Diretores Municipais, para facilitar a fixação das populações nos espaços rurais e promover a recuperação de terrenos objecto de projectos florestais sustentáveis.
Aceitar a desertificação do território e o abandono do mundo rural é aceitar a perpetuação dos dramas que temos enfrentado em consequência dos incêndios. É indispensável que o Estado central adopte políticas de valorização do mundo rural e da floresta, a par de um maior investimento na vigilância e patrulhamento florestal, bem como nos trabalhos de silvicultura, sobretudo na rede primária de faixas de gestão de combustível. Para isso há que aumentar as equipas de sapadores e a estrutura de guardas florestais. Ainda não se cumpriu sequer o que estava previsto conseguir-se até 2019 (2 500 operacionais; contamos ainda com pouco mais de 2000).
Colocando o problema na perspetiva do combate, há que profissionalizar os bombeiros e conferir-lhes uma estrutura de comando única, há muito em falta, e especializar a força de combate aos incêndios rurais com mais operacionais. Os Planos Regionais de Ordenamento do Território (PROT) e Planos Diretores Municipais (PDM) têm de passar a incluir as disposições legais das estruturas da Proteção Civil de modo a adequá-las à realidade de cada região e/ou de cada município, com financiamento apropriado, tendo o pressuposto de que seja assegurado o acesso a fundos europeus. É imperioso criar uma carreira e um modelo de gestão homogéneo para estes serviços (proteção civil e gabinetes técnicos florestais), definindo adequadamente a sua composição, como são remunerados e como se enquadram escalas de serviço com 24 horas diárias.
Cabe ao Estado a promoção de boas práticas ambientais. É uma componente fundamental desse conjunto de acções aquilo que fazemos da floresta. Só o Estado Central tem o poder e a dimensão de condicionar positivamente o rumo da fileira florestal portuguesa. Porque também se trata de conservação da natureza; porque também se trata de qualidade de vida; porque também se trata do nosso património.
Mais do que trazer as florestas de volta à população, é urgente devolver as pessoas à floresta, mas isso só será possível e justo se a floresta for devidamente valorizada.