Cabe-me intervir sobre questões de ordenamento do território e proteção civil.
Falar de ordenamento do território é falar da terra, do solo. De algo que é finito, imprescindível para o futuro e essencial a toda a atividade humana. Se é sobre o solo que desenvolvemos a nossa atividade, parece claro que, para proteção da vida, atual e futura, temos de o usar bem.
É sobre o solo que o capital financeiro procura obter, direta e indiretamente, portentosas mais valias. Para tal, necessita quer da intensificação e especialização da produção agrária quer, e especialmente, através do imobiliário, do alargamento ou densificação de áreas urbanas, habitacionais, industriais ou logísticas, fazendo crescer a renda fundiária absoluta.
A oposição entre o correto uso da terra e a procura de portentosas mais valias pelo capital é uma contradição clara entre o interesse humano e o interesse do capital.
Se o tempo o permitisse e se fosse este o tema principal deste Encontro, seria interessante ver como, desde os alvores da revolução industrial – e Engels tão bem o mostra em “A Situação da Classe Trabalhadora em Inglaterra” – até hoje, os trabalhadores, os emigrantes, os pobres sempre estiveram sujeitos às piores situações sanitárias e ao maior risco. Se é verdade que a luta dos trabalhadores conseguiu reverter, em parte, estas situações, ao longo do passado século, não é menos verdade que a imposição de políticas neoliberais, desde o final da década de setenta, está a operar um retrocesso civilizacional também ao nível do uso do solo.
De uma forma simples, dizer apenas que a vitória neoliberal de Thatcher/Reagan, veio impor como melhor uso do solo aquele que é mais rentável para o capital investido. Cada parcela de solo tem de ser vista como um ativo financeiro, como fator de remuneração do capital.
Em Portugal o impacto da Revolução de Abril, com a ampla mobilização popular, com a Reforma Agrária e a luta proletária, impôs, também com a Constituição de Abril, um compasso de espera à imposição de medidas neoliberais.
Para atrás havia a política do fascismo com mais de 31.000 famílias a viver em barracas, com a imensa área loteada clandestinamente. Com os sítios onde as cheias de novembro de 1967 provocaram a grande maioria das mais de 700 mortes.
Abril procurou mudar o rumo. A lei de solos de 1976 veio afirmar claramente a capacidade de expropriar solos rústicos para desenvolvimento de intervenções urbanísticas respeitadoras dos condicionamentos naturais.
Esta capacidade foi, no entanto, coartada, pela prática dos sucessivos governos. Pelo objetivo de reposição dos grupos capitalistas do fascismo, pela submissão aos ditames do FMI com a imposição de “menos Estado”, pela adesão à CEE e consequente abertura ao capital internacional.
A lei de solos de 1998, Governo Guterres, visava a obtenção de portentosas rendas fundiárias, através das mais valias obtidas na transformação de uso de solo de rústico em urbanizável e da consequente urbanização deste. Cresceram desmesuradamente as periferias, em especial das áreas metropolitanas e das principais cidades da rede urbana nacional, num modelo extensivo e fragmentado, com grandes vazios intersticiais e dificultando o estabelecimento das redes de mobilidade e de serviços à população. Era continuar a apostar no modelo que, em 1983, voltara a matar e a desalojar famílias na Área Metropolitana de Lisboa.
Apesar da falta de recursos e de oposições que defendiam a betonização do solo imprescindível para drenagem de água, municípios procederam a importantes intervenções de criação de bacias de retenção e de parques lineares à rede fluvial. O Parque da Paz, em Almada, o Parque da Várzea, em Setúbal, os parques lineares à ribeira da Jardas, em Sintra ou, aqui ao lado, os trabalhos na Ribeira do Prior Velho, são apenas alguns exemplos.
Entretanto a crise financeira de 2008, iniciada nos EUA e rapidamente replicada, levou o governo português - PSD/CDS - a fazer aprovar, em 2014, uma nova lei de solos. Destinava-se, através da intervenção sobre o tecido urbano consolidado, á captura de investimento internacional, num processo de gentrificação e de oferta de imobiliário, nas suas várias vertentes, na maioria dos casos inacessível a cidadãos e a empresas nacionais.
E, para que os lucros fossem maiores foi-se ao ponto de criar legislação que deixou de impor o reforço sísmico em obras de reabilitação de edifícios antigos, mesmo em cidades de risco como Lisboa. Claramente o capital financeiro a valer mais do que a vida das pessoas.
A questão dos sismos faz-nos lembrar que vivemos em cidades que são produtos históricos. Parte do edificado, foi-o em áreas que, hoje, qualquer plano de risco impediria que fossem ocupadas. Assim, como medidas de proteção civil, são exigíveis obras que permitam atenuar os efeitos de catástrofes. No caso de Lisboa importa avançar com o plano de drenagem de que a bacia de retenção da Praça de Espanha já deu boas provas.
Mas, exemplificando com Lisboa, por melhor que sejam os resultados do plano de drenagem, eles serão sempre limitados face aos riscos decorrentes de um PDM feito em obediência aos grandes interesses imobiliários, permitindo uma gravosa urbanização subterrânea, de caves, parqueamentos e túneis, em choque com o sistema tradicional de drenagem, e uma constante impermeabilização de logradouros e interior de quarteirões. Urge a revisão e reanálise de compromissos que levem a grandes áreas de impermeabilização em zonas críticas.
Claro que todas a obras, sejam elas de retenção ou drenagem, sejam elas do complexo viário necessitam de ser monitorizadas. Felizmente temos no país uma instituição de reconhecidos méritos para proceder a tal trabalho, o LNEC. Importa é garantir que o trabalho é feito e, sobretudo, importa garantir a manutenção do LNEC como instituto público. Lembremos que já esteve na agenda neoliberal a sua privatização.
Volto à legislação sobre solos para não esquecer que o atual governo apresentou, e viu aprovada com os seus votos e os da IL, uma proposta de autorização legislativa – entretanto já traduzida na Lei 50/2023 – onde, aceitando as exigências da Confederação Portuguesa da Construção, liberaliza procedimentos, extinguindo inclusive a apreciação prévia ao nível da inserção urbanística. Não são sequer escondidos os objetivos: tornar o país mais competitivo no ambiente de negócios; atrair investimento e, lá teria de ser, disponibilizar solos para habitação acessível.
Numa tradução simples, isto significa que o imobiliário pode deixar os seus ativos financeiros nos centros à espera de melhores remunerações e voltar para as mais valias possibilitadas pela construção, naturalmente apoiada por benefícios fiscais e não só, de casas para a classe média baixa na periferia e casas para a classe baixa na periferia da periferia. E, como já veio defender um Sr. Presidente de Câmara, desclassificando solos da Reserva Ecológica Nacional. E, nisto, o Sr. tem experiência ou não tenha já construído Centro de Saúde em leito de cheia. Não somos fundamentalistas na defesa da REN mas há um limite que não pode ser ultrapassado, o da prevenção do risco e de defesa da vida.
Sobre o solo rústico, sujeito também ele à procura do lucro máximo através da agricultura intensiva apenas um breve apontamento.
As plantações são feitas em filas e em camalhões – montes de terra em linha e ortogonais ao declive dos terrenos. A terra acumulada nestes fica solta e é facilmente arrastada enquanto a água da chuva escoa rápida entre filas. A erosão em ravinas pode tornar-se enorme, levando toneladas de terra arável para as linhas de água. É solo que não se reconstituirá e que vai assorear barragens. É solo que, acumulando-se nas linhas de água, as faz transbordar para estradas e vilas como sucedeu nas cheias de dezembro do ano passado.
Concluindo, a defesa da terra, a defesa da vida humana face à catástrofe, exige a alternativa às políticas neoliberais que olham o solo como mero ativo financeiro.