Resolução do 2.º Encontro Nacional do PCP sobre Cultura

«Democratização, liberdade cultural - Por um Serviço Público de Cultura»

1. Do 1.º ao 2.º Encontro Nacional

O Encontro Nacional do PCP sobre Cultura realizado em 2007 centrou-se na concepção de Cultura que o PCP desde há muito adopta, e que as palavras de Bento de Jesus Caraça continuam a exprimir de forma exemplar: um entendimento amplo de Cultura que não se esgota nas fronteiras da “cultura artística”, um entendimento da Cultura como factor de emancipação humana, a «aquisição de Cultura como factor de conquista da liberdade».

O Encontro de 2007 debruçou-se essencialmente sobre a questão da democratização da Cultura. A sua Resolução Política permanece um importante documento de registo de um longo percurso histórico, de elementos teóricos fundamentais, de consolidação política e ideológica de uma frente de combate de primeiro plano no programa e no projecto do PCP.

Este 2.º Encontro Nacional tem uma outra prioridade. Trata-se de procurar aprofundar e sintetizar a avaliação de um conjunto de realidades cujo desenvolvimento assume particular significado:

- A evolução dos processos de mercantilização dos objectos culturais, o cada vez mais generalizado entendimento – no capitalismo – da Cultura como área  de actividade económica, subordinada às regras de um mercado capitalista.

- O enorme crescimento global das “indústrias culturais”, com aspectos específicos particularmente importantes tanto no que diz respeito aos conteúdos que veiculam e ao impacto da acção dos seus pólos centrais de difusão como ao padrão das condições de trabalho com que operam.  

-  A tendência de privatização, subfinanciamento e desresponsabilização do Estado em relação à Cultura, fortemente acelerada desde 2007.

- O notável reforço da mobilização dos trabalhadores da Cultura ao longo destes anos, associando ao combate pelos seus direitos reivindicações políticas de carácter geral que adquiriram um muito amplo consenso. A crescente proletarização desta camada profissional e o papel central da luta dos trabalhadores do sector para a construção de um serviço público de cultura.

- A importância e o papel do movimento associativo popular e de muitas autarquias no alargamento do acesso à fruição e criação cultural e da sua inserção comunitária, enquanto factor essencial de democratização cultural.

Todas estas questões apontam uma prioridade:

- A urgência de propor aos criadores, aos trabalhadores da Cultura, a todos os trabalhadores e ao povo um grande objectivo comum: a concretização de um Serviço Público de Cultura.

Este Encontro realiza-se num quadro político nacional e internacional em que se verifica um ataque talvez sem precedentes não apenas à liberdade cultural mas igualmente à liberdade individual de criação e fruição da Cultura. Um ataque que evidencia em que enorme medida a invasão do universo da Cultura pelos interesses do capital transnacional e do imperialismo a tornou objecto de sistemática instrumentalização, censura, hegemonização ideológica, exclusão. A dimensão criadora, crítica, universal da Cultura e da Arte são confinadas ao interesse de um sistema cujo esgotamento e contradições internas colocam já em causa qualquer dos valores que construíram e são essenciais à civilização humana. Neste contexto a tarefa dos comunistas para, como afirmava Bento de Jesus Caraça, “despertar a alma colectiva das massas”, reveste-se de especial importância. É nos termos da acrescida responsabilidade colocada por um tal quadro que este Encontro se realiza.

2- A Cultura como campo de luta e jogo de forças

2.1. Globalização capitalista e a Cultura como área da economia. O essencial das alterações que se verificam no modo como o sistema capitalista encara e integra a Cultura é inseparável das características da sua corrente hoje dominante - o neoliberalismo –, da sua tendência mercantilizadora de todas as esferas do viver humano e de todos os produtos da actividade humana, do seu carácter intrinsecamente antidemocrático, da sua aversão à responsabilidade pública, da sua obsessão privatizadora.

Aquilo que o capitalismo designa hoje como sector cultural e criativo (SCC) tornou-se particularmente relevante. Por um lado, pelo lugar que a “cultura mediática de massas” assume nos dias de hoje - em certos aspectos como uma cultura efectivamente global mas ao mesmo tempo quase unipolar no mundo ocidental. Fá-lo de forma sistematizada, recorrendo a todos os meios, nomeadamente por via das diferentes aplicações tecnológicas no campo da comunicação,  chegando assim de forma permanente e simultânea onde antes não penetrava ainda tão intensamente. Por outro lado por tratar-se de um sector cuja dimensão económica supera os sectores tradicionais, gera um enorme volume de receitas e emprega hoje mais 30 milhões de trabalhadores em todo o mundo (OCDE 2018), dos quais cerca de 7 milhões em países da União Europeia e cerca de 158 mil em Portugal (Eurostat, 2018), em regra em situações gravosas que vão desde o subemprego e a precariedade sistemática às questões da autoria e dos direitos de autor ou da compressão e mesmo anulação das margens de autonomia relativa do trabalho intelectual. Finalmente por este sector tender a absorver todas as esferas da criação e da actividade cultural, nomeadamente pequenos produtores, promotores e editores das várias áreas de expressão artística, também eles elementos da diversidade cultural do País.

2.2. A instrumentalização da Cultura para a dominação e a guerra. O próprio capitalismo reconhece no processo de generalizada mercadorização uma dimensão de poder. Designa-o como “poder suave” (soft power). Mas, tal como sucede com o seu poder mediático global, insere-se e frequentemente abre caminho a formas mais violentas do exercício da sua dominação. As acções em torno da actual situação no Leste europeu revelaram este facto em toda a sua dimensão, gravidade e alcance, com a generalizada tentativa de condicionamento e instrumentalização - por parte do  imperialismo, particularmente dos EUA/NATO/UE - de todo o universo da Cultura, enquanto meio privilegiado de inculcação ideológica e frente global de combate político.

Contra a instrumentalização por parte do sistema dominante, a nossa tarefa é lutar para abrir o campo da Cultura ao exercício da vontade e do interesse dos povos e em benefício da paz. Nunca ao serviço da dominação e da guerra, sempre espaço privilegiado e insubstituível de entendimento entre indivíduos e comunidades humanas, sempre construtora de liberdade e de paz, sempre factor essencial de progresso e emancipação humana.

2.3. Subalternização e a colonização cultural. O PCP defende um desenvolvimento cultural em diálogo com outras Culturas, o intercâmbio com os outros povos da Europa e do mundo, a abertura aos grandes valores da Cultura da humanidade e a sua apropriação crítica e criadora, o combate à colonização cultural, na formulação do Encontro de 2007. Isso implica necessariamente uma política de desenvolvimento enraizado na realidade, nos valores e nas potencialidades nacionais, sem o qual o diálogo entre culturas não poderá ser um diálogo entre iguais.

Uma política em aspectos essenciais diferente e contrária àquela que sucessivos governos de PS, PSD e CDS puseram em prática. E também uma política diferente da adoptada no quadro da UE, que conduz a que os países que a integram vejam, por exemplo, o seu espaço audiovisual esmagadoramente preenchido por produtos com origem no universo anglo-saxónico e em particular nos EUA, mas também de outros centros de difusão capitalista.

Apontá-lo não significa a defesa de qualquer bloqueio do acesso a obras em tantos casos de grande qualidade, mas de constatar que esse muitíssimo desequilibrado preenchimento de espaço esmaga a diversidade, formata e afunila padrões de consumo, age como veículo de aculturação e colonização cultural, desempenha uma função ideológica de grande impacto. Não se trata do acesso a uma Cultura como qualquer outra. Trata-se da difusão de produtos cuja origem são potentados que integram os escalões superiores do capital monopolista, cujos valores são não os deste ou daquele povo mas os da classe dominante de um capitalismo em crise sistémica. Que ainda por cima ganha milhões ao fazê-lo.

A questão política que se coloca é a de contrapor diversidade à homogeneização. A de alargar o espaço para a imensa riqueza e as múltiplas articulações da Cultura universal. A de fazer desenvolver em cada indivíduo um criador, não um consumidor passivo e rotineiro de mercadorias culturais.

2.3. Cultura, factor e componente de emancipação social e nacional

2.3.1. Cultura e identidade. A Cultura nos seus múltiplos âmbitos é campo de conservação e de invenção de identidade. Acolhe, define, estabelece, exercita, revê e reinventa práticas, hábitos, códigos, vocabulário e regras no território material e imaterial comum de grupos sociais. Nesse sentido, a Cultura como factor de identidade abrange as tradições, os costumes, a língua, as narrativas, as técnicas, os saberes informais e as práticas artísticas, tanto considerando as modalidades próprias ou originais dessa comunidade, como o acolhimento e conformação de influências alheias ou abrangendo um universo social maior.

Como factor de identidade, a Cultura não é a-histórica, ou seja, pressupõe o desenvolvimento e a renovação, a afirmação e a negação dos elementos desse chão comum. Requerendo a prática, requer invenção e evolução constante. Essa dialéctica exerce-se em relação a eixos, preceitos ou formas comuns e esses asseguram um certo grau de coesão interna da comunidade ou do grupo. Sempre em mutação - que é o garante da sua própria continuidade - a Cultura enquanto factor de identidade oferece à comunidade os elementos para a sua apreensão, exercício, compreensão e discussão, sendo assim sempre coisa de todos e não coisa de indivíduos ou de elites.

A Cultura não é apenas território de identidade de nações ou de grandes grupos ou classes. Gera elementos de identidade relativamente autónoma em comunidades regionais ou locais, rurais ou urbanas, periféricas ou centralizadas; em sectores do trabalho, em empresas ou locais de trabalho; em associações, colectividades ou grupos informais, culturais, desportivos ou recreativos; e em partidos, movimentos e outras formas de associação social e política.

A Cultura enquanto factor de construção de identidade pode ser por isso factor de resistência à cultura dominante, prepotente, hegemónica e globalizadora, classista e alienante. 

Os comunistas, na medida em que integram o próprio movimento das massas, dele participando e a elas ligando o seu Partido, não só estão interessados no exercício dessa acção criativa e autónoma, como têm sido o garante, nos bons e maus momentos, da sobrevivência da autonomia cultural e da preservação dos elementos mais democráticos, vivos e ricos dessas formas de identidade e das organizações e realidades que as permitem.

Também o Partido, enquanto organização, instrumento e projecto da classe operária e dos trabalhadores portugueses, cria, desenvolve e activa ao máximo os elementos da sua identidade, da sua Cultura, em múltiplas formas, como factor essencial de formação integral de cada comunista. Sem concepções sectárias, os comunistas não devem abdicar da activação e mobilização do melhor património progressista, humanista e revolucionário, na realização das suas iniciativas e programas culturais.

2.3.2. Cultura, terreno de combate, de resistência, de criação.

Para o PCP é essencial o entendimento de que a Cultura e a arte acrescentam vigor e identidade à luta dos trabalhadores e do povo, fazem ouvir mais alto a voz e as aspirações dos explorados e oprimidos. Tal como no tempo do fascismo, tal como nos anos da Revolução de Abril, assim continua a ser no tempo de resistência dos dias de hoje, procurando dar corpo ao que a Constituição da República Portuguesa (CRP) consagra.

Para o PCP a luta dos trabalhadores é o motor essencial para a transformação, sendo necessário o contributo dos trabalhadores da cultura para, a partir da sua luta concreta, pela superação dos seus problemas, convergir para uma luta mais geral por um serviço público de cultura.

Há muito que a noção de «resistência cultural» é parte integrante da luta dos povos. Não se trata de uma contraposição entre culturas mas, pelo contrário, de uma apropriação de tudo o que possa contribuir para a sua libertação. Essa noção de resistência permanece válida, se se tiver em consideração todas as dimensões que envolve a emancipação individual, social e nacional no nosso país. A apropriação, por parte de uma dinâmica resistente e plural, de todos os meios e instrumentos disponíveis à criação e à difusão cultural – incluindo os poderosíssimos meios hoje operados pelas “indústrias culturais” – será uma das condições para uma profunda transformação do panorama cultural no nosso país.

3. Uma estratégia de luta – a luta em defesa da Cultura

3.1. A luta no plano unitário. Os últimos anos foram de grande desenvolvimento na tomada de consciência, na organização e na dinamização da luta dos trabalhadores da Cultura. O Manifesto em Defesa da Cultura tem desempenhado um importante papel, de discussão e divulgação de grandes linhas programáticas - do cumprimento da Constituição da República Portuguesa, a par da promoção da unidade dos diversos sectores e do envolvimento dos trabalhadores e do povo português nesta batalha. O seu contributo para o alargado reconhecimento da consigna da atribuição de 1% do OE para a Cultura ficará na história da luta pela Cultura no nosso país.

Verificaram-se importantes avanços na organização dos trabalhadores da Cultura, particularmente na sua organização sindical de classe, nomeadamente com a criação de dois sindicatos: o Cena-STE (resultante da fusão dos dois sindicatos do espectáculo e audiovisual existentes) e o Sindicato dos Trabalhadores em Arqueologia-STARQ. O surgimento destas estruturas e o crescimento e o alargamento da influência do Movimento Sindical Unitário decorrem da persistente batalha na defesa dos direitos dos trabalhadores, avançando em importantes sectores a luta em torno da necessidade de contratos de trabalho, da redução e da definição de horários e do aumento de salários. Reivindicações que no plano dos trabalhadores da Cultura significaram um avanço extraordinário, combatendo e dando passos largos para derrotar a tese até então dominante da naturalidade e da inevitabilidade, nestas áreas, da inexistência de quaisquer destas aspirações.

Também é de salientar, como expressão das contradições materiais existentes, o surgimento nos últimos anos de movimentos de diverso tipo em vários sectores da Cultura.

A frequência com que a Cultura saiu à rua demonstra a elevação da consciência social e até política dos seus trabalhadores: a luta por 1% para a Cultura e os protestos contra os sucessivos OE foram realidades incontornáveis no sector. Novidade, e de grande alcance, foi a convergência na luta de amplos sectores, como as grandes manifestações de Abril de 2018 e Junho de 2020, com expressão em diversas cidades e regiões, onde as palavras de ordem expressavam todo um novo projecto político para a Cultura: 1% do Orçamento, trabalho com direitos, um Serviço Público de Cultura.

A dimensão, a combatividade, a afirmação de um outro rumo para a Cultura no nosso país obrigou o Governo do PS a procurar ensaiar falsas soluções para os problemas colocados, nomeadamente com a disponibilização de verbas que antes dizia não existir e com a promessa de medidas para os elevados níveis de precariedade e desprotecção social sem, todavia, responder às necessidades. Ficou à vista então a força da luta, bem como o facto de as decisões da política de direita para a Cultura serem no essencial fruto de uma opção política e ideológica.

Pelo seu impacto, pela expressão de unidade demonstrada, até pela sua persistência e firmeza, são de salientar lutas desenvolvidas em diversos locais de trabalho: nos museus, na Fundação Côa Parque, dos trabalhadores em arqueologia da DGPC, na Plural, no CCB e, sobretudo, nas estruturas integrantes do Opart – Teatro Nacional de São Carlos e Companhia Nacional de Bailado e na Casa da Música.

3.2. Intervenção própria do Partido

O património ímpar do PCP na defesa da Cultura parte do trabalho da organização e dos seus militantes, reflectindo-se na intervenção institucional na Assembleia da República e no Poder Local Democrático, bem como no campo do trabalho unitário. Entre 2007 e o momento presente, o PCP interveio de modo crescente com propostas para resolver problemas concretos, imediatos ou de fundo.

De destacar ainda a importante contribuição do PCP durante a epidemia, não só apresentando alternativas ao confinamento da Cultura, como no exemplo que deu, nomeadamente com a realização da Festa do Avante!, de como era possível combater a epidemia e simultaneamente manter a actividade cultural em segurança. Festa do Avante! que é a maior iniciativa política e cultural do país, pela diversidade de expressões artísticas, pelo que tantas vezes proporciona de primeiro contacto com a criação, por pôr no mesmo plano de acesso a todos a fruição da cultura popular e da cultura erudita, pelo que estimula e valoriza a criação, pela forma como envolve os trabalhadores - os seus construtores - na sua preparação.

3.2.1 Na Assembleia da República. O Grupo Parlamentar do PCP foi sistematicamente o mais activo na fiscalização da acção dos sucessivos governos relativa à Cultura, através da apresentação de centenas de perguntas e requerimentos (cerca de 500 entre a X e a XIV Legislaturas), propondo dezenas de audições parlamentares ou o agendamento de debates temáticos. Apresentou numerosas iniciativas legislativas, em forma de Projecto de Lei, de Projecto de Resolução ou de Apreciação Parlamentar, entregando também dezenas de propostas de alteração aos vários Orçamentos do Estado. Realizou centenas de encontros, reuniões e visitas por todo o país.

Durante o período da nova fase da vida política nacional, apesar de insuficientes, foi pela intervenção do PCP e pela luta dos trabalhadores, que se conseguiram alguns avanços na Cultura, de que destacamos: gratuitidade de acesso aos Museus, aos Domingos e feriados e a retoma de programas para a sua valorização; apoio à criação artística com a reposição das bolsas de criação literárias; redução do IVA dos espectáculos e dos instrumentos musicais; criação na Fortaleza de Peniche do Museu Nacional da Resistência e da Liberdade.

O trabalho do Grupo Parlamentar do PCP destaca-se, mais do que pelo seu expressivo aspecto quantitativo, pelo seu nível qualitativo, sendo sempre um trabalho ligado às realidades concretas e aos problemas do País na área da Cultura, feito na Assembleia da República e fora dela, mesmo nos distritos onde o PCP não tinha deputados eleitos.

3.2.2. No Poder Local Democrático. Um dos aspectos políticos mais relevantes no Poder Local Democrático saído da Revolução de Abril é o seu papel na democratização cultural. E se esse facto é justificado motivo de orgulho na gestão de autarquias com a participação do PCP, não deve ignorar-se que se trata de uma realidade muito alargada à generalidade das autarquias. Independentemente da orientação política maioritária em cada autarquia, a reivindicação popular à Cultura generalizou-se e enraizou-se em todo o lado. Conduziu a um notável crescimento em equipamentos e iniciativas, a uma acrescida responsabilização – que mais do que duplica a da Administração Central - da Administração Local no financiamento das actividades culturais. Um quadro que reflecte a progressiva desresponsabilização da Administração Central, que conheceu novos passos com o falso processo de descentralização, alijando responsabilidades e competências para os municípios sem transferir os meios para lhes dar cumprimento. Sendo as autarquias as principais programadoras do país, com o que isso comporta de trabalho no sector, seria redutor reduzir a sua intervenção na cultura à mera programação, em muitos casos apenas reprodutora do que está já estabelecido e consagrado. O projecto do PCP inclui o acesso em todo o país aos grandes espectáculos mas promove e valoriza também aqueles que criam noutras bases, que apresentam novos projectos e propostas de intervenção artística e cultural.

O potencial de realização do Poder Local é muito grande. Mas a democratização da Cultura requer a superação de barreiras sociais, económicas, regionais que se colocam no plano nacional, e que apenas nesse plano podem ser efectivamente superadas.

O papel do Poder Local, assente na proximidade com as populações, com as suas práticas, vivências, memórias, projectos, dinâmica própria e singular, é insubstituível. No dar resposta e em ajudar a colocar a um nível cada vez mais ambicioso e exigente a fasquia cultural. No contrastar das mercadorias da cultura mediática de massas com outras expressões de raiz muito mais diversa, criativa e popular. No valorizar toda a Cultura que procura o diálogo humano, e no olhar criticamente expressões culturais que fragmentam e guetizam deliberadamente a fruição, seja em termos geracionais ou outros. E será talvez essa a ideia-guia fundamental: a de fazer progredir na acção local o “olhar crítico”, indispensável para que a Cultura assuma, em todas as circunstâncias, o papel que Bento de Jesus Caraça lhe atribuiu: “o de dar a cada homem a consciência integral da sua própria dignidade; desenvolver o espírito de solidariedade com todos os outros homens de todo o mundo; construir a pátria humana.”

3.2.3. O movimento associativo popular

O Movimento Associativo Popular desempenhou, ao longo da sua história, e fá-lo na actualidade, um importante papel na criação e fruição cultural dos trabalhadores e do povo. É relevante o seu papel na transformação social que defendemos e na correspondente democratização cultural. É um sector negligenciado e atingido pelas políticas económicas, sociais e culturais: na ausência de apoios e incentivos financeiros correspondentes ao reconhecimento do seu papel; no plano das políticas públicas para a habitação, com a Lei das Rendas; no plano fiscal; no que sofrem os seus dinamizadores com os baixos salários, a precariedade e a desregulação dos tempos de trabalho, particularmente no que isso implica na participação de mulheres e jovens, sem que sejam tomadas medidas, particularmente com a necessária revisão do Estatuto do Dirigente Associativo Voluntário, a par do reconhecimento e discriminação positiva do associativismo e do seu movimento, tal como prevê a Constituição da República.

Apesar da política em muitas autarquias de apoio estrutural ao Movimento Associativo Popular, os ataques sucessivos ao Poder Local e a transferência de encargos em curso, fruto das políticas e acordos parlamentares PS/PSD, auguram dificuldades acrescidas para esta importante área de intervenção e participação democrática.

No Movimento Associativo Popular de Cultura – Associações e Colectividades, com cerca de 18.000 entidades, 2 milhões de praticantes e dirigidas por cerca de 170.000 dirigentes voluntários e benévolos, numa intervenção não profissional, regular e generalizada a todo o território, estão identificadas as principais necessidades e propostas para as cerca de 750 Bandas Filarmónicas, 1200 Escolas de música, 50 Orquestras, 1300 Ranchos Folclóricos; para além de incontáveis Coros, Cineclubes, Bibliotecas, Teatro de Amadores, Dança. Também aqui se fazem sentir as políticas de classe dos Governos PS, PSD e CDS, resistindo às propostas apresentadas, sobre a legislação e indispensáveis apoios à prática cultural que este sector desenvolve em substituição ou complemento do Estado. 

3.2.4. O desprezo da política de direita pela Cultura e pelos seus trabalhadores

Desde o anterior Encontro verificou-se uma aceleração das políticas de direita, que já tivera um significativo impacto na redução da estrutura do Ministério da Cultura, e confirmou a desvalorização da cultura nas políticas públicas. Com o governo PSD-CDS passou mesmo à condição de Secretaria de Estado. 

Nos dois Governos do PS que se seguiram aos de PSD/CDS/troika estrangeira a Cultura recuperou o estatuto ministerial, mas não recuperou os meios e recursos que tal designação implicaria. Em nenhum aspecto o rumo seguido foi alterado: prosseguiu o processo de desmantelamento da estrutura do Estado, nomeadamente através da sangria de trabalhadores e consequente incapacidade de responder às necessidades; continuou um rumo de privatização, de delapidação de património público, de subalternização cultural, de submissão aos grupos económicos nacionais e estrangeiros. Um caminho onde o que deixou de existir ou foi impossibilitado de surgir e onde a estagnação e o atraso são a marca. Onde se verifica uma cada vez maior assimetria regional na oferta e nos meios culturais. Onde um gritante e asfixiante subfinanciamento, as extremamente precárias condições laborais e salariais dos trabalhadores da Cultura, o afastamento de um objectivo de democratização da criação e da fruição cultural são por demais evidentes, como se verificou nas sucessivas dotações para a Cultura nos orçamentos do Estado e na flagrante exposição que a epidemia proporcionou.

A atitude durante a epidemia de cancelamento das actividades culturais – mas sintomaticamente sem deixar de proteger os grandes festivais de música mas não os seus trabalhadores -  evidencia o carácter subalterno e descartável que o Governo atribui à cultura em contraponto com outras actividades.

Procurando mascarar o desinteresse público na cultura, de que o OE para 2022 é exemplo, aplica o PRR, cuja estrutura  corresponde à transposição mecânica das prioridades impostas pela UE: Transição digital; Transição Energética e Climática; Coesão e resiliência. Salvo raras excepções, nomeadamente no que diz respeito ao cinema e ao património, nenhuma dessas prioridades corresponde a uma prioridade real da situação existente. Os 243 milhões atribuídos à Cultura são subdivididos em dois investimentos: Património Cultural, 150 milhões de euros; Redes Culturais e Transição Digital, 93 milhões de euros. Verba manifestamente insuficiente para a recuperação do património material, perspectivada por uma visão de estreita rentabilidade económica. Nenhuma área da Cultura dispensa uma relação material com uma acção, um objecto, um acontecimento concreto. A transição digital coloca, efectivamente, possibilidades alargadas de conhecimento, difusão e contacto. Mas só será inteiramente válida no plano cultural como factor de enriquecimento de experiência e participação pessoal e activa, nunca como substituição desta.

É este o quadro em que se cria e trabalha na Cultura no nosso país. Em que se procurou aceitar como normal o trabalho gratuito em diversos sectores, em que se banalizou a precariedade, a instabilidade e a incerteza, chamando-lhe intermitência, em que se coloca aos artistas e trabalhadores da Cultura escolher entre ter trabalho e salário, rendendo-se aos objectivos de homogeneização cultural da ideologia dominante para assim poderem entrar na lógica do mercado, ou pugnarem pela sua criatividade, originalidade, leitura da vida e do mundo.

O abandono da profissão por impossibilidade de sobrevivência afastou do trabalho na Cultura centenas de trabalhadores. Isso já se verificava em grande escala e atingiu níveis e consequências dramáticas com a epidemia de covid19. Os que se mantêm defrontam-se com instabilidade e incerteza quanto ao seu futuro, muita das vezes com acumulação de vários empregos, com consequências no presente nas suas vidas mas também no seu trabalho de criação artística ou de estudo e reflexão sobre o património material e imaterial do povo português.

3.2.5 O Estatuto do Profissional da Cultura: falsas soluções não resolvem problemas

Em 2021, forçado pela intensa luta dos trabalhadores e pela centralidade que ela deu à precariedade das relações laborais no sector que, com a epidemia da Covid19, era já impossível mascarar, o Governo apresentou uma proposta de Estatuto do Profissional da Cultura. A proposta conheceu, desde logo, um amplo conjunto de críticas dos trabalhadores, dos sindicatos e das associações, que consideraram que o documento não responde aos problemas principais que estão colocados aos trabalhadores das artes e da Cultura.

Conforme o PCP foi denunciando em múltiplas ocasiões, este Estatuto comporta estruturalmente uma visão em que a precariedade é mantida, normalizada e, em alguns casos, até aprofundada; em que continua a ser mais vantajoso para quem contrata recorrer a recibos verdes; em que a presunção de existência de contrato de trabalho está longe de conhecer um verdadeiro reforço; em que o equilíbrio da Segurança Social pode ser comprometido por via da constituição de um fundo autónomo sem garantias de auto-sustentabilidade; e em que são incluídas normas ainda mais gravosas do que as que existem no Código do Trabalho, nomeadamente da lei 4/2008.

Num sector em que a maioria dos trabalhadores aufere baixos salários e cachês, a resposta efectiva aos trabalhadores que mais necessitam de apoio social é extremamente limitada, prevendo o subsídio por suspensão da actividade cultural montantes baixos e a possibilidade de recurso, na prática, a apenas uma vez por ano.

Quando a tudo isto se adiciona o subfinanciamento crónico de uma grande parte das companhias e estruturas de criação artística que prestam serviço público e as enormes limitações da Autoridade para as Condições do Trabalho, bem como a necessidade urgente de alteração da acção inspectiva, facilmente se constata que estão reunidos todos os ingredientes para que a precariedade estrutural nas artes e na Cultura não seja alterada.

4. As várias áreas da Cultura

4.1. Património cultural. A política de direita procura desresponsabilizar-se ainda mais em relação ao Património Cultural. Durante décadas votou à incúria, ao abandono, ao subfinanciamento, à gravíssima falta de trabalhadores nos Museus, Palácios, Monumentos Nacionais e Sítios Arqueológicos. Em vez de um Plano de Emergência para o Património Cultural que investisse fundos públicos na salvaguarda e recuperação, o Governo PS preferiu encetar um processo de desresponsabilização da Administração Central, passando encargos para as autarquias, nomeadamente de património construído degradado, inviabilizando a sua salvaguarda, valorização e manutenção na esfera de serviço público. Seguiu a linha mercantilista e privatizadora consubstanciada no Programa REVIVE, iniciada já no Governo PSD/CDS. Ainda  em desenvolvimento, representa a maior espoliação e entrega a privados de património cultural alguma vez feita no nosso país. Não inviabilizando a utilização do Património para outros fins que contribuam para a sua dinamização, o PCP rejeita que seja a tutela da Economia e do Turismo a gerir a história, a memória e a Cultura do País, elemento ilustrativo das opções ideológicas seguidas que, ao invés de garantirem a conservação, a preservação, o acesso público, a entregam à exploração de grupos hoteleiros.

4.2. O teatro e a dança sobrevivem numa situação de grande precariedade e permanente instabilidade. O fecho de dezenas de estruturas ao longo dos anos, a sua cada vez maior concentração nos grandes centros urbanos, afastando uma grande parte do país destas formas de expressão artística, são elementos de empobrecimento cultural e de impedimento de acesso à criação e fruição. O modelo de apoio às artes e o baixíssimo financiamento às estruturas estão há muito identificados como a raiz do problema. Necessita de ser alterada a lógica concursal, competitiva, burocrática, ignorando a importância do apoio às estruturas, ao seu percurso e projecto artístico, ao seu papel nos territórios e na formação de profissionais, à necessidade de estabilidade e previsibilidade na vida dos trabalhadores e das companhias. A luta dos últimos anos permitiu a criação de um estatuto do bailarino profissional, ainda insuficiente, mas resultado da luta destes trabalhadores.

Na música, onde dita a chamada “lei de mercado”, seja na divulgação radiofónica, na programação artística ou na edição discográfica, verificam-se cada vez mais baixas remunerações, muitas vezes dependentes da bilheteira, do consumo ou mesmo do sistema “chapéu na mão”, numa total desvalorização dos trabalhadores, e menos espectáculos, em grande parte pelos cortes orçamentais impostos às autarquias, principais promotores de espectáculos musicais. As orquestras regionais e locais padecem também de sub-financiamento, não se valorizando o importante papel que poderiam desempenhar e promovendo também, desta forma, a precariedade e limitados direitos e condições de trabalho.

Em todas as áreas a insuficiência da oferta, o preço ou mesmo a inexistência de espaços com condições técnicas para a realização de ensaios ou gravações, para a criação e a experimentação, tal como para a apresentação desses trabalhos fora do circuito comercial, que não os acolhe, são um real obstáculo à criação artística diversificada e inovadora.

Soma-se o trabalho de milhares de técnicos de grandes eventos e espectáculos musicais, onde a pandemia expôs a sua condição de precariedade e falta de protecção social. Muitos realizam horários com mais de 12 horas, não raras vezes com longas viagens. Muitos destes trabalhadores estão expostos a altos riscos, como o trabalho em altura ou média tensão, sem qualquer protecção social em caso de acidente.

4.2. Cinema. No cinema prosseguiu a ausência ou enfraquecimento de políticas públicas e a gritante insuficiência de verbas e de trabalhadores, com as especificidades necessárias, seja no Instituto do Cinema e Audiovisual (ICA), seja na Cinemateca e no seu Arquivo Nacional da Imagem em Movimento (ANIM), sendo particularmente grave a falta de investimento na preservação, em particular do património do cinema português. 

O Plano Nacional de Cinema, que podia e devia ser um importante projecto educativo, padece de falta de verba, estratégia e recursos. Acentuou-se o estrangulamento da distribuição, promovido pela concentração num grupo económico que é um dos maiores operadores de televisão por cabo e que hoje detém a maioria quase totalidade das salas de cinema, nomeadamente em centros comerciais dos grandes centros urbanos. Essa distribuição exclui assim parte significativa do país, configura e promove o consumo massivo dos produtos (e sub-produtos) de origem norte-americana, marginalizando outras origens, linguagens e estéticas. Inviabiliza praticamente a projecção da grande maioria do cinema português, que existe, circula em festivais e aí é reconhecido mas ao qual o acesso, em Portugal, é praticamente impossível.

A máquina burocrática para acesso a apoio público à produção é de uma complexidade tal que a principal actividade de quem a ela se dedica é não a produção de filmes mas a resposta a essa máquina, o que dificulta o acesso ao financiamento por parte de estruturas de produção que não sejam a priori detentoras de capital capaz de manter equipas de secretariado permanente, e acrescenta obstáculos à execução dos próprios projectos apoiados pelo ICA. A sua liquidez, sempre intermitente e pensada ano a ano, é incompatível com a plurianualidade da actividade cinematográfica.

A nova lei do cinema – aprovada apenas com os votos contra do PCP e com ampla contestação no sector, em Outubro de 2020, consagra a submissão política, económica e ideológica do Governo do PS às multinacionais de streaming.

O audiovisual assume particular importância no contexto cultural, como expressão da ofensiva ideológica. Em Portugal este sector tem crescido, com o surgimento de novas produtoras e a transformação de produtoras de publicidade em ficção, assentes numa lógica competitiva onde a redução do custo do trabalho está sempre presente.

4.3. Livro e leitura. Não existe política pública do livro e da leitura. Mas ainda houve recuos. Com medidas como a fusão de serviços e direcções-gerais e o respectivo corte de pessoal; a ausência de recursos para a renovação dos fundos documentais das bibliotecas – hoje com uma vasta rede pelo país - e para a dinamização, por parte destas, de medidas de divulgação e promoção da leitura. Deixou de existir há  vários anos o financiamento do Plano Nacional de Leitura para a renovação de fundos para a Rede de Bibliotecas Escolares. Medidas positivas, como as itinerâncias, foram canceladas e nunca retomadas.

O “mercado” regula a política de edição, distribuição e comercialização. As medidas impostas pelas grandes editoras e suas distribuidoras no plano da comercialização, a par da avassaladora Lei das Rendas, têm levado ao fecho de dezenas de livrarias. Estas, bem como as editoras não dependentes dos grandes grupos editoriais, são um oásis no panorama do livro e da leitura em Portugal e, objectivamente, são quem garante a diversidade no plano editorial não totalmente subjugado aos interesses monopolistas. Papel relevante deveria ter a Imprensa Nacional, no quadro de uma política pública de edição e de promoção do livro e da leitura de grandes obras nacionais.

Raros são os escritores que vivem da escrita. Acrescendo as dificuldades com que se deparam para beneficiarem de direitos de autor sobre as suas obras, eis as condições para a criação literária com que se deparam os escritores. Foi importante a retoma das Bolsas de Criação Literária, proposta do PCP que permitiu já a vários autores trabalhar na sua obra.

4.4. Artes Plásticas. A situação nas Artes Plásticas é sobretudo marcada por um processo de mercantilização e financeirização. As obras de arte são valorizadas enquanto “activos” de investimento aos quais é atribuída uma cotação de mercado que se supõe sustentada. É significativo que uma das consequências da eclosão da crise financeira de 2007-2008 tenha sido o acréscimo exponencial da transação internacional de obras de arte (e de outros “objectos culturais” como joias e ourivesaria). Boa parte dos galeristas, críticos de arte e curadores funcionam como instrumentos nesse processo de valorização financeira, escolhendo, seleccionando e excluindo nomeadamente - seja qual for o seu mérito - qualquer expressão artística que assuma uma visão crítica da realidade dominante.

4.5. Ensino Artístico. Ensino artístico significa, quase em absoluto, aprendizagem musical, permanecendo residual o ensino especializado da Dança, das Artes Visuais e Audiovisuais e do Teatro (cujo curso básico acaba de ser criado). 

O elevado nível de preparação destes trabalhadores não encontra correspondência no mercado de trabalho. No plano das qualificações estão criadas todas as condições para o alargamento da rede pública, democratizando o acesso ao ensino artístico especializado, para a integração de jovens profissionais na carreira docente, para a solução de assimetrias, para a revitalização de estruturas formais e informais de actividade artística. 

Contudo, perante a ausência de iniciativa de criação de escolas por parte de sucessivos Ministérios da Educação foram surgindo, um pouco por todo o lado, sem qualquer planificação, instituições privadas de ensino artístico, sobretudo de Música mas também de Dança e das Artes Visuais e Audiovisuais, às quais foram entregues 144 das 162 escolas artísticas do continente português. 

Nos ensinos Básico e Secundário as áreas da formação artística, há longo tempo subalternizadas, tendem a diluir-se por completo, num modelo de ensino voltado para uma formação elementar, “prática” e esvaziada dos valores da expressividade humana, da Cultura e do pensamento reflexivo.

5- Outro rumo para a Cultura

5.1. Orientação estratégica: Por um Serviço Público de Cultura

5.1.1. O Encontro Nacional de 2007 declarava: “A democratização no acesso à fruição e a democratização no acesso à criação exigem uma decidida e clara prioridade orçamental e política, e uma responsabilização determinante do Estado. Exigem uma política de profissionalização e, em simultâneo, um largo apelo a uma participação militante na aventura cultural”. Essa exigência não só não foi atendida como todas as políticas seguidas pelos sucessivos governos foram em sentido contrário. Agravaram em todos os aspectos a situação da Cultura no nosso país. Dão razão acrescida a que essa exigência seja retomada, assumindo no imediato a forma de uma reivindicação específica, dirigida aos trabalhadores e ao povo, a todos os trabalhadores da Cultura: a construção de um efectivo Serviço Público de Cultura, elemento central de responsabilização pública pelo desenvolvimento, democratização e liberdade cultural, construção do projecto de Abril a que a CRP dá corpo.

A proposta pelo PCP de um Serviço Público de Cultura constitui, mais do que a agregação e funcionamento articulado e sustentado de um conjunto de estruturas, instituições, entidades, recursos e meios, uma proposta de viragem nas políticas para a Cultura.

A responsabilidade pública pela Cultura nunca significará qualquer dependência administrativa ou de tutela cultural sobre companhias e estruturas existentes ou a criar. Será, pelo contrário, garantia de independência e de ampla autonomia, hoje severamente cerceadas tanto pela engrenagem dos reduzidíssimos apoios públicos como pela entrega a um mercado fortemente condicionador.

O Serviço Público de Cultura recuperará, de algum modo, a notável dinâmica que, nas décadas posteriores ao 25 de Abril de 1974 concretizou enormes progressos no acesso à cultura, no desenvolvimento cultural, em termos de equipamentos. Em certos aspectos foi uma das dinâmicas de Abril – constitucionalmente consagrada - que se repercutiu durante mais tempo. É certo que, como outras, foi bloqueada e revertida em parte. Mas deixou uma memória e sobretudo uma base material e humana a que um Serviço Público de Cultura trará novo ímpeto.

5.1.2. Democratização da Cultura, estabilidade e desenvolvimento Cultural. O Serviço Público de Cultura deverá constituir um dos factores de democratização, de garante do acesso de todos a toda a Cultura. De superação de condições de desigualdade – social, geográfica ou outra - no acesso à Cultura.

O Serviço Público de Cultura dará aos trabalhadores da Cultura seguras condições de estabilidade e de desenvolvimento do seu trabalho. Ao contrário da Cultura mercantilizada, que coloca os criadores ao serviço da encomenda, da estratégia de mercado ou mais prosaicamente do volume de vendas, garante condições de efectiva liberdade de criação.

5.1.3. Uma participação a todos os níveis. A configuração do SPC assenta, antes de mais, em dar voz ao povo, num processo de discussão democrático, para apurar os anseios, as carências, as realidades existentes e as potencialidades, simultaneamente ao nível nacional, regional e local.

Em dar voz aos trabalhadores da Cultura, artistas, técnicos e investigadores, tanto ao nível da produção e acção dos organismos das funções culturais do Estado, como nos sectores de produção independente, profissional e/ou popular.

Na intervenção do Estado através das suas instituições próprias, designadamente o Ministério da Cultura e os organismos na sua dependência. Em todas as entidades activas e de interesse no trabalho cultural e artístico: estruturas de produção, programação, dinamização e divulgação; colectividades de Cultura e recreio e outras organizações do movimento associativo popular; escolas, autarquias. No movimento sindical.

5.1.4. Presente em todo o território. O princípio geral do SPC é o de ser um instrumento político de democratização, da responsabilidade do Estado central que garante, em todo o território, o acesso de todos à Cultura enquanto produtores da Cultura do seu tempo e fruidores da Cultura de todos os tempos.

O SPC assume a garantia de serviços, meios e bens de carácter geral, que estão ou devem estar acessíveis em todo o território. Serviços e meios logísticos de produção, de apresentação, de ensino, de preservação e de estudo de artes performativas, artes visuais, cinema e audiovisual, televisão, património histórico, cultural, arquivístico, documental e literário e outros.

O SPC garante que esses serviços e meios atendem também a realidades, potencialidades e necessidades específicas de cada região (produção artística, Cultura popular, tradições culturais locais). É formulado em resultado de um levantamento integral, acompanhado de discussão pública, das realidades, potencialidades, necessidades, bem como das estruturas, meios e quadros existentes em cada região, cruzando-a com carências e desigualdades no plano nacional.

O Serviço Público de Cultura que o PCP propõe é uma estrutura dinamizadora de uma política cultural, de carácter nacional e profundamente democratizadora, integrando, promovendo e apoiando as forças, iniciativas e meios existentes no território e provendo outros em falta.

5.1.5. Meios do Serviço Público de Cultura. O SPC é formulado como uma rede orgânica que assegura a implementação e o acompanhamento da política de serviço público, a integração e articulação das suas componentes, serviços e meios, dependente do Ministério da Cultura, dotada de missão e meios financeiros adequados, e contando com uma participação alargada de entidades diversas do ponto de vista institucional, regional, e das áreas em que intervêm.

O SPC comporta uma rede de Centros de Criação, equipamentos ou conjuntos de equipamentos capazes de acolher a produção e a programação de diversos tipos de projectos e produtos artísticos (ensaios e apresentação de projectos de teatro, dança, música, cinema, artes visuais e multidisciplinares, programas educativos, conferências, etc) de raiz local, nacional ou estrangeira, geridos por uma equipa técnica e apetrechados com os meios logísticos, técnicos e financeiros necessários ao seu funcionamento permanente;

O SPC assume um sistema de financiamento dos programas plurianuais e pontuais de apoio às artes, por via de concursos, de contratos-programa ou de outras modalidades, munido de um plano a quatro anos;

O SPC gere um sistema de partilha de meios logísticos e técnicos ao nível nacional e regional.

5.1.6. Apoio integral ao trabalho cultural e artístico. O sistema de apoio às artes passará a constituir parte integrante do SPC. Será ampliado com diversas modalidades de acesso ao financiamento, com os benefícios logísticos e técnicos enunciados anteriormente, munido de um plano plurianual de financiamento que proporcione o apoio adequado a toda a actividade artística de qualidade reconhecida, em todo o território nacional, com acesso às bonificações e isenções fiscais próprias do sistema e promovendo uma política de preços acessíveis.

Porá fim ao paradigma do modelo competitivo de financiamento na criação artística, assumindo um modelo de estabilização e regularidade dos apoios, com a definição de objectivos de serviço público, assegurando a descentralização cultural.

O sistema de apoio às artes promoverá a constituição de equipas permanentes onde elas se justificam, o trabalho com direitos, a remuneração integral e justa do trabalho realizado, incluindo o tempo de concepção e preparação.

O SPC assumirá uma responsabilidade particular na defesa do património cultural e do património arquivístico, bem como no apoio à rede nacional de bibliotecas.

5.2. Propostas do PCP para romper com esta política, abrir caminho à emancipação e ao progresso

5.2.1. A democratização e desenvolvimento cultural no nosso país, causa comum de todos os que desejam um Portugal democrático, desenvolvido, livre e soberano.

A democratização e o desenvolvimento cultural são condição para que os trabalhadores da Cultura possam realizar plenamente a sua actividade e vê-la devidamente reconhecida e assegurada. Mas não podem ser alcançadas sem uma intervenção determinante e igualmente criadora de todos os outros trabalhadores, de todo o povo. Têm repercussão directa e generalizada numa nova e ainda mais sólida presença colectiva em tudo o que lhes diz respeito, na concretização de todos os seus direitos, nas suas legítimas opções de futuro. Sem a criação das necessárias condições económicas e sociais para o pleno exercício dos direitos culturais de toda a  população, como no plano dos salários, dos horários de trabalho e da existência de transportes públicos, entre outros, o acesso dos trabalhadores à Cultura não é passível de ser efectivamente concretizado. É dirigindo-se aos trabalhadores da Cultura, e igualmente a todos os trabalhadores e ao povo que o 2º Encontro Nacional do PCP sobre Cultura aponta cinco orientações:

  1. O objectivo básico fundamental da política de democratização cultural é o acesso generalizado das populações à criação e à fruição dos bens e actividades culturais. Para tal objectivo cabe uma responsabilidade central ao Estado – a instituição do Serviço Público de Cultura.  
  2. A Cultura é um universo cuja riqueza não pode ser confinada a regras do mercado capitalista, demasiado diverso e plural para ser limitado nas suas opções temáticas e estéticas ou nos objectivos da sua criação. Nenhum verdadeiro desenvolvimento cultural pode ser concretizado impondo limitações à liberdade de criar e de difundir a criação. Da efectiva imposição de temáticas até à marginalização com base na “ausência de público” ou incapacidade de se auto-financiar, do que se trata é de um processo generalizado de condicionamento ideológico e estético e de coarctação de liberdade. Apenas uma intervenção pública respeitadora da liberdade cultural está em condições de a assegurar, e essa exige um financiamento adequado, garantindo  1% do OE no caminho para a atribuição de 1% do PIB, conforme recomendação da UNESCO.
  3. A função social dos criadores e dos trabalhadores da área cultural deve ser inteiramente reconhecida e valorizada, e deve ser assegurada a melhoria constante da sua formação e condições de trabalho. A política de direita despreza os direitos dos criadores e trabalhadores da Cultura. Uma política de democratização e desenvolvimento reconhece-os e promove-os. Combate a precariedade, os baixos salários, a insegurança no presente e no futuro, as relações de trabalho desreguladas. Combate as falsas soluções contidas no Estatuto do Profissional da Cultura do governo PS. Combate a ideia de que uma imaginária excepcionalidade do trabalho nestas áreas justifica todas as arbitrariedades instaladas. Reconhece o papel dos dirigentes associativos na cultura não profissional e os direitos dos trabalhadores desse sector.
  4. Todo o património cultural – material e imaterial, nacional, regional e local – é factor de salvaguarda da identidade e da independência nacional. Os homens e mulheres do presente são depositários de um legado destinado a outros que virão depois, legado perante o qual têm uma fidelidade activa. É um legado que se insere no processo histórico da construção da identidade nacional, processo que tem um passado, um presente e um futuro. A sistemática desvalorização e desresponsabilização da política de direita em relação às várias dimensões do património cultural é o resultado do trajecto histórico de sucessivas classes dominantes: nenhuma esteve ou está em condições de defender o interesse nacional. Sempre foram as camadas populares a defendê-lo, e é necessário que o assumam no presente com ainda maior determinação. Porque, tratando-se da defesa da identidade nacional, trata-se a defesa de um elemento essencial num projecto colectivo transformador e de progresso, num mundo de igualdade entre os indivíduos e entre os diferentes povos.
  5. A democratização e a aquisição de Cultura, factor de emancipação, causa comum de todo o povo.  Social e individual, a emancipação de que falamos supõe o enriquecimento das relações colectivas, o equilíbrio entre as relações de pertença, o reconhecimento da singularidade própria, e da dignidade de cada um e do seu papel para a transformação social, uma consciência crescente da nossa posição na sociedade e no mundo. Tal como no anterior Encontro Nacional, justifica-se evocar palavras de Álvaro Cunhal: “A defesa dos valores culturais e artísticos é tarefa dos artistas mas é também tarefa comum da classe operária, dos trabalhadores, de todos os democratas”.

É sobre estas palavras e linhas de orientação que o PCP reitera o seu compromisso de sempre. Compromisso de combate pela emancipação dos trabalhadores e do povo de todas as formas de exploração, de dominação e de opressão, incluindo as culturais. Não se trata apenas de assumir um compromisso. O PCP tudo fará, pela sua acção política e institucional, e sobretudo pelo apelo e apoio à mobilização do mundo da Cultura, do mundo do trabalho, de todo o povo português, para que seja posto fim, tão cedo quanto possível, ao rumo por que se orienta a actual política. A democracia e o desenvolvimento cultural são parte essencial do processo de progresso e emancipação social e nacional, tal como se encontra definido no Programa do Partido – Uma democracia avançada, os valores de Abril no futuro de Portugal. Quando o futuro estiver efectivamente nas mãos do povo, serão então realidade concreta todas as portas que Abril abriu.