Intervenção de Rui Namorado Rosa, Mesa Redonda «Energia e recursos na transição energética. Soberania, segurança, ambiente e desenvolvimento»

A questão dos recursos

Os recursos naturais são a base material do funcionamento da sociedade. E o progresso ou retrocesso social repousa na disponibilidade e boa gestão desses recursos.

Ao longo do século passado, verificou-se uma acelerada diversificação e acelerado volume de consumo de materiais, incluindo bens alimentares, matérias-primas energéticas, e elaborados produtos industriais. Um variedade e volume em acelerada transformação quer em variedade de materiais quer em funcionalidade social.

A dimensão dos consumos, suportados seja na expansão populacional seja na intensidade de capitação, gerou impactos na relação Homem-Natureza, impactos claramente identificados como limitantes a montante ou ameaçadores a jusante dos ciclos de vida de produtos alimentares e industriais. Faz 50 anos que “Limits to Growth” formulou de forma integrada o sistema de interdependências e uma primeira modelação computacional, simulando cenários de crescimento mas também evoluções conducentes ao colapso.
A evolução no mundo real, se atendermos ao aprovisionamento energético, constatou-se a multiplicação dos consumos de combustíveis fósseis, com protagonismo tomado pelo carvão, depois pelo petróleo e gás natural, cuja origem e ocorrência são afins, e encontram muito diversificadas aplicações. Mas os recursos recuperáveis de hidrocarbonetos (do carvão ao gás) são finitos A partir da década de 70, o esgotamento de origens convencionais de aprovisionamento de petróleo e gás, conduziu à diversificação de variedades geológicas de hidrocarbonetos, e de suas proveniências geográficas. Mais fundamentalmente, a captação de recursos menos acessíveis e mais complexos - offshore profundo, areias e xistos betuminosos, etc. - corresponde a agravado custo energético de extração. Tal que, presentemente, a energia consumida na produção de hidrocarbonetos líquidos representa já 15% da energia bruta obtida; e a projecção aponta para que atinja 50% em 2050. A era dos hidrocarbonetos como fonte energética caminha para seu termo.

A radiação solar é um manancial que esteve na base do aprovisionamento da sociedade pré-industrial, e oferece a possibilidade de continuar a ser de grande importância para o futuro. A energia solar alimenta o movimento dos ventos na atmosfera, as correntes e ondas nos oceanos, e a fotossíntese que suporta a biosfera.

A energia solar e a energia eólica têm merecido maior atenção e são já filões económicos estabelecidos. A sua adopção coloca a questão da conversão dos fluxos naturais de energia em energia eléctrica, como vector para consumo local ou para integração na rede eléctrica.

Em relação a estas, há que considerar a captação e o armazenamento de energia. Dada a baixa densidade de energia e a variabilidade/intermitência desses fluxos naturais, vastas áreas colectoras e amplos reservatórios de armazenamento são necessários. A multiplicação de área colectora pode atenuar a variabilidade/intermitência, porém à custa de investimento acrescido e de desperdício de energia nos períodos de fluxo solar ou eólico elevado. A adição de capacidade de armazenamento tira melhor partido do fluxo solar ou eólico disponível e assegura a disponibilidade continua da energia eléctrica.

Coloca-se aqui a disponibilidade técnica de meios de armazenamento, que são variados, alguns já familiares, como sejam barragens com turbinas reversíveis e outras soluções electro-mecânicas. Como também várias soluções electroquímicas, como seja a bateria de fluxo redox de vanádio.

O grande enfoque colocado na electricidade como vector energético, está particularmente patente na evolução recente na mobilidade terrestre, que tem promovido a inovação e a produção massiva de viaturas individuais, e tem colocado pressão sobre as matérias-primas especiais para tal necessárias.  
 
Metais críticos são vitais para a funcionalidade de várias tecnologias emergentes, porém eles têm oferta futura potencialmente incerta. Essa condição exige planeamento com base na procura antecipada a longo prazo do fornecimento desses metais e implicações conexas.

Uma revisão sistemática de quase uma centena de estudos, explorando o status projetado a longo prazo de vários materiais críticos, cobrindo a procura global de meia centena de elementos até 2050, constata a larga margem de incerteza que enfrentamos.

Não estão disponíveis estudos sobre a procura a longo prazo de vários metais de alta criticidade. As implicações sociais e ambientais induzidas pelo crescimento dessa procura estão largamente negligenciadas. A divergência espacial entre países consumidores e produtores na cadeia de oferta global não está ainda ponderada. Além do que, estratégias de economia circular ainda não estão adequadamente incorporadas na actual modelagem, posto que, por enquanto, somente a reciclagem em fim de vida é considerada.

Acrescem as complexas interligações químicas, entre elementos presentes quer nos minérios quer em produtos finais. A interligação entre ciclos de vida desses elementos, deixa em dúvida a disponibilidade futura de matérias-primas especiais para alimentar as cadeias de produção. Falta ainda a vontade política colaborativa e pesquisa para projectar o status dos metais críticos a longo prazo, o que aliás se quadra nos objetivos de desenvolvimento sustentável das Nações Unidas.
  
Um automóvel convencional exige quase cinco dezenas de metais diferentes. Alguns desses, como tântalo, índio, nióbio, terras raras, são considerados críticos pela Comissão Europeia e outras entidades. Acresce que a sua reciclagem funcional tem sido praticamente ignorada. A transição para veículos totalmente elétricos exigirá ainda mais dispositivos elétricos e eletrónicos, motores e baterias, que vão solicitar quantidades adicionais de metais escassos.

O estudo do sector automóvel permitiu identificar os elementos estratégicos para o seu desenvolvimento futuro, como projectado pela “transição energética”. Ponderando a necessidade de cada elemento em relação à sua produção mundial, os recursos geológicos conhecidos face à respectiva procura acumulada, e o risco associado à sua disponibilidade de fornecimento, foram analisados 50 metais utilizados pelos diferentes tipos de motorizações de veículos.

A avaliação assim feita da procura futura de metais para a indústria automóvel, daqui até 2050, considerando as projeções de vendas de veículos e os stocks da frota circulante, os metais mais críticos para esta indústria serão Ni, Li e Co (usados em baterias), Nd e Dy (magnetes), Tb (injetor e ignição), Sb, Bi e B (ligas de aço e pintura), Au e Ag (eletrónica), In (ecrãs) e Te (ligas de aço, eletrónica). A procura de sucedâneos e a reciclagem funcional desses elementos deverão ser prosseguidos. E a viabilidade material e ambiental de cenários suportando o transporte individual, carece ser seriamente questionada. 
   
A indústria mineira e a metalurgia extractiva são chamadas a desempenhar uma tarefa enorme, na identificação e seleção de jazidas, investimento na extração e processamento de minerais, para abastecimento de indústrias metalúrgicas, químicas e outras. Certos elementos são objecto de complexos processos separativos, caso notório das terras raras (que abarcam 14 elementos químicos). Indústrias especializadas em diferentes ramos serão então abastecidas de matérias-primas específicas para a produção de componentes, equipamentos, produtos, para inúmeros fins – informática, mobilidade, ópticoelectrónica, etc.

Certos componentes têm forte presença em múltiplos ramos. Exemplo evidente são motores/geradores electro-mecânicos, microprocessadores, componentes electro-ópticos. Através destes e outros, certos elementos químicos têm ampla procura, outros têm aplicações muito particulares mas insubstituíveis. Certos produtos técnicos repousam em metais ou metaloides cujo mercado é muito limitado, e cuja disponibilidade será assim crítica.

No computo global, a disponibilidade de todos os elementos para todos os sectores repousa sobre elaborados circuitos comerciais e no consumo intensivo de energia, em particular na metalurgia extractiva e refinação. Um clima de comercio internacional hostil tem o potencial de gerar inúmeras contrariedades para todos os actores. 

A Agência Internacional de Energia (IEA) e a União Europeia estão inteiramente cientes das dificuldades que se colocam na “transição energética” que procuram promover como “fatalidade” ditada por Alterações Climáticas e “oportunidade” oferecida pelo progresso científico e tecnológico.

Quanto às soluções técnicas enfocam-se baterias eléctricas, células de combustível, aerogeradores, motores e geradores eléctricos, células solares, robots, drones, impressoras tridimensionais, microprocessadores. E, naturalmente, o aprovisionamento viável de praticamente a totalidade dos elementos da tabela periódica. Para que fins? As finalidades mais relevadas são a captação e armazenamento de energias renováveis, mobilidade eléctrica, e também indústrias de defesa e aeroespacial, digitalização informática.

A transição energética aumentará a procura de recursos considerados críticos, porque essenciais e insubstituíveis em várias tecnologias de energia renovável. A redução da extração de combustíveis fósseis também afetará directamente o acesso a certos elementos que são produzidos conjuntamente com os combustíveis fósseis, ou que acompanham um elemento hospedeiro presentemente usado em cadeias de abastecimento ou consumo desses combustíveis.

Recursos importantes produzidos conjuntamente com os hidrocarbonetos fósseis incluem o hélio, enxofre, germânio, gálio, vanádio; e vários outros enquanto coprodutos de elementos utilizados no processamento ou na utilização de combustíveis fósseis. A transições para as energias renováveis irá, pois, simultaneamente aumentar a procura e reduzir a oferta de certos elementos críticos.

Que aprovisionamento de energia primária? Para já dependemos massivamente dos combustíveis fósseis.

Na União Europeia a Transição Energética é muito propalada, contudo a sua fundamentação e concretização parecem obscuras. Descarbonização é palavra-chave, uma orientação pela negativa. A solução energia renovável a toda a velocidade tem conduzido a anunciadas opções surpreendentes, mesmo nos países do núcleo duro, fundadores da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço, e também da EURATOM, que veio depois agregar a CEE e depois a UE.

Falta uma formulação concreta de políticas fundamentadas a propósito de vectores e redes de energia. E a opção nuclear, lamentavelmente preservada na sua ameaçadora vertente militar, tem, na sua vertente civil, perspectivas errantes, não obstante competências acumuladas por vários estados-membros.

Capital produtivo operacional é descartado – como centrais termoelétricas ou refinarias funcionais – para adiantar uma indeterminada transição energética. A urgência colocada nessa transição parece ignorar que tal esforço terá de ser suportado sobretudo pelo recurso massivo aos próprios combustíveis fósseis, para o fabrico de inovadores equipamentos complexos, de elevada intensidade energética e incorporando numerosos metais críticos. Ao longo da segunda fase do corrente ciclo de vida dos hidrocarbonetos fósseis, irá justapor-se um outro ciclo, o das energias renováveis (gratuitas), mas em cujo necessário hardware será incorporada energia comparável à energia proporcionada pelos combustíveis fósseis.

Para já teremos de subsistir com petróleo e gás natural. De que o Médio Oriente e a Comunidade de Estados Independentes (incluindo a Rússia) presentemente detêm as maiores reservas e são os maiores exportadores; enquanto a Ásia-Pacífico e a Europa são os principais destinos importadores.

Entretanto os EUA, líder histórico que foi da produção e comercialização de petróleo e seus derivados retomou, ao longo da década passada, elevado volume de exportação, suportada na produção de petróleo e gás não convencionais (tais como shale gas/tight oil), com que EUA e Canadá se têm reafirmado no mercado internacional.

Um plausível confronto parece ter emergido no plano das relações comerciais em que se insere e deixa condicionado o aprovisionamento Europeu. As sanções ditadas pelos EUA à Rússia, como também já antes à Venezuela e ao Irão, sendo acompanhadas pela UE, constrangem o abastecimento europeu em petróleo e gás natural. Abastecimento essencial para a transição energética, mas antes de tudo o mais essencial para suportar, agora, o funcionamento básico da economia europeia. As tensões diplomáticas (incluindo boicotes a sanções) complicam e agravam as interdependências e relações comerciais.

O governo português deixou-se aprisionar num contexto de conflito em que não somos parte interessada e em que interesses vitais para a nossa economia ficaram, no mínimo, ameaçados. Sem contar com o risco de alargamento desse conflito. A superação do impacto económico-financeiro das sansões, bem como das respostas para contorná-las, é incerta. Certo é ser a disponibilidade para alcançar soluções equitativas e a fruição partilhada dos bens naturais, condições para alcançar a paz e a prosperidade por nós desejadas.

Nesta ocasião, solicitados para os graves eventos na Europa, não poderemos alhearmo-nos do nosso relacionamento e interesses partilhados com os povos dos demais continentes. Incluído a esfera lusófona em que se inserem importantes exportadores de petróleo e gás.

ANEXO A - Na União Europeia, a opção nuclear, lamentavelmente preservada na sua vertente militar, tem na sua vertente civil perspectivas presentemente errantes. Todavia, Reino-Unido, França, Alemanha, Itália, e não só, acumularam considerável experiência na ciência e tecnologia nucleares desde meados do século passado. Todavia:

O Reino Unido mantem apenas 7 GWe de capacidade electronuclear, cerca de 15% do total instalado. Porém, decorre um processo de avaliação de conceitos de reatores e sua localização, e a primeira de uma nova geração de centrais nucleares está em construção. A anunciada privatização da produção e a liberalização do mercado da electroprodução poderão inviabilizar esses investimentos.

A Alemanha, com 20 GWe em 2011, obtinha então um quarto da sua eletricidade por via nuclear. Opinião pública pouco favorável, opções governativas hesitantes e o acidente de Fukushima ditaram o seu retrocesso. Hoje, restam 4 GWe apenas.

A França, com 61 GWe instalados, obtém 70% da sua eletricidade por via nuclear. Em 2022, após oito anos de hesitação, foram anunciou seis novos reatores e opção para mais oito, retomando a opção nuclear na base de sua política de segurança energética. Apoiada no baixo custo de produção e na segurança de fornecimento, a França é o maior exportador líquido de eletricidade do mundo, enquanto mantendo histórico protagonismo no desenvolvimento de tecnologias nucleares.

Framatome, propriedade do Grupo EDF (75%) e da Mitsubishi Heavy Industries (20%), reúne meios e competências, publicas e privadas, do sector electroprodutor, com reconhecimento internacional e histórico comprovado. Concebe e constrói reactores, componentes e instrumentação, fornece combustível e serviços nucleares.

A Rússia tem assumido largo protagonismo no âmbito da energia nuclear, incluindo o desenvolvimento de reatores de neutrões rápidos e a reciclagem e fecho do ciclo de combustível. A exportação de bens e serviços nucleares, através da Rosatom, constitui uma política e objetivo económico da Rússia. Mais de 20 reatores nucleares estão confirmados ou previstos na linha de construção para exportação.

Rosatom é uma corporação estatal que actua no mercado de tecnologia nuclear. Incorpora 350 empresas e organizações de todas as fases da cadeia tecnológica, desde a extração e enriquecimento de urânio, a fabricação de combustível nuclear, engenharia e fabrico de equipamento, operação de centrais nucleares, gestão de combustível e resíduos nucleares.

Num quadro europeu de hesitação e protelamento, França e Rússia mantêm importantes frotas electronucleares. Enquanto mantendo no plano internacional, através da Framatom e da Rosatom, importante indústria de equipamentos, combustível e serviços nucleares.

ANEXO B - Quanto ao aprovisionamento de energia fóssil, Comunidade de Estados Independentes, Médio-Oriente e Norte-América detêm os mais extensos recursos.

A Rússia, um dos maiores produtores mundiais, depende acentuadamente das receitas do petróleo e gás natural, que em 2021 atingiram 45% do orçamento federal.

A Rússia tem para o efeito vasta capacidade de exportação que permite enviar grandes volumes de petróleo diretamente para a Europa e para a Ásia. O sistema de oleodutos Druzhba, transporta 750.000 bpd sobre 5.500 km para refinarias na Europa Central e Oriental. Atualmente, abastece 20% de ramas processadas em refinarias europeias.

Em 2012, foi lançado o oleoduto ESPO, que envia 1,6 milhões de bpd sobre 4.700 km diretamente para mercados asiáticos na China e Japão, visando satisfazer a crescente procura asiática. A Rússia também exporta ramas através de portos do Golfo da Finlândia, do Mar Negro, e no Extremo Oriente.

A Rússia tem ainda as maiores reservas de gás natural do mundo, sendo 80% da sua produção oriunda do Ártico. Segundo maior produtor mundial, atrás dos Estados Unidos, é o primeiro exportador. Em 2021, produziu 760 bcm de gás natural e exportou 210 bcm via gasoduto. Para o efeito, dispõe de ampla rede de gasodutos para exportação, quer através da Bielorrússia e Ucrânia, quer diretamente para outros países (Nord Stream, Blue Stream e TurkStream). O gás natural russo satisfez 45% das importações de gás da União Europeia em 2021.

Em 2019, foi lançada um novo gasoduto com 3.000 km de extensão, para enviar gás do extremo oriente diretamente para a China. Em 2021, a Gazprom exportou assim 10 bcm através do Power of Siberia, prevendo quadruplicar esse volume nos próximos anos.

Só recentemente a Rússia instalou capacidade de liquefação de gás natural (GNL), com o que entrou em competição na exportação naval de GNL face aos Estados Unidos, Austrália e Qatar. Em 2021 exportou 40 bcm de GNL, o 4º exportador mundial. O plano visa quintuplicar essas exportações até 2025.

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