As políticas energéticas em Portugal implementadas pelos sucessivos governos caracterizam-se pela afirmação e priorizar uma política energética neoliberal, de subordinação à ordem europeia, com profunda subestimação e subalternização dos interesses nacionais e da economia portuguesa.
Uma tal política tem impedido um necessário e sério planeamento estratégico ao serviço da economia nacional e do País e, contrariamente, tem permitido que as empresas do sector energético se orientem e desenvolvam prioridades e interesses de acordo com o grande capital financeiro nacional e internacional.
O processo da liberalização em curso teve início na década de 90 do século passado, com as primeiras diretivas de liberalização (o chamado “Primeiro Pacote da Energia”) a serem adotadas em 1996 (eletricidade) e 98 (gás) com dois anos para a sua transposição nos Estados-Membros.
Depois, em 2003, veio o denominado “Segundo Pacote” e os consumidores (domésticos e empresariais) passaram finalmente a “poder escolher livremente” os fornecedores de gás e eletricidade, mais competitivos e concorrentes, com promessa de manter a qualidade dos serviços a preços inferiores, o acesso às redes de comércio transfronteiriço da eletricidade e do transporte do gás - pelo menos, foi isto que nos foi vendido! -, criando, em simultâneo, uma agência de cooperação dos reguladores da energia.
Em 2009, veio o “Terceiro Pacote de Energia” que, para além de alterar aspetos do pacote anterior, prosseguindo a liberalização do mercado interno da eletricidade e do gás, constituiu a base para a realização do “mercado interno da energia”, cuja estratégia seria dada a conhecer em 2015.
Em 2016, a Comissão Europeia faz uma comunicação sobre “Energias limpas para todos os europeus”, onde estão os pressupostos daquele que será o “Quarto Pacote de Energia” que mais não fez do que aprofundar o caminho da liberalização com uma Diretiva (Eletricidade) e três regulamentos (Eletricidade; Regulamento Preparação para os Riscos e da Agência de Cooperação de Reguladores de Energia) - ACER. Esta é, aliás, uma agência que, pacote após pacote, tem usurpado competências dos reguladores nacionais, sob o pretexto de [e cito] “regulamentar transfronteiras quando existir o risco de fragmentação nacional e regional” .
Em 2021, foi anunciado o chamado “Quinto Pacote da Energia” - Concretizar o Pacto Ecológico Europeu, para alinhar as novas ambições em matéria de clima da UE (ou seja, uma redução das emissões de gases de efeito de estufa de, pelo menos 55% e impacto neutro no clima até 2050) com os objetivos energéticos das suas grandes potências e dos interesses económicos que defendem. Muitos aspetos deste pacote estão ainda em curso no âmbito do Pacote Objetivo 55 (Fit for 55), nomeadamente a revisão da Diretiva das Energias Renováveis e da Diretiva da Eficiência Energética.
Os resultados deste processo de liberalização do sector da energia são bem conhecidos de todos e demonstram que nem trabalhadores nem consumidores beneficiaram com a liberalização. Pelo contrário. Diminuiu o emprego com direitos, aumentaram os preços pagos pelos consumidores, desrespeitaram-se os interesses e a soberania energética dos Estados-membros, ignorando os problemas económicos, sociais e ambientais que alguns enfrentam, desprezando a defesa de um serviço público de qualidade, que sirva os reais interesses dos consumidores e o desenvolvimento e progresso social. O que aumentou foram os lucros dos grupos económicos do sector a par do crescimento da chamada "pobreza energética", ou seja, mais pessoas a terem dificuldade de acesso à energia. A prometida concorrência no setor acabou por resultar numa concentração de empresas de energia, contrariando o que diziam ser os objetivos da liberalização. Isto é, continuou a haver empresas monopolistas, só que em vez de monopólios públicos responsabilizados perante o Estado e os cidadãos, temos hoje monopólios privados ao serviço dos lucros do grande capital.
As opções tomadas pela UE, liberalizando, privatizando e desregulando o setor, favorecem a manutenção de mercados oligopolistas nos quais os preços são cartelizados e onde as metodologias adotadas garantem lucros astronómicos, com enormes diferenciais entre custos na produção e nos mercados, e, mais recentemente, da criação e funcionamento de um mercado do carbono que tem produtos derivados a serem transacionados em bolsa de forma especulativa.
Na atual configuração do chamado “mercado europeu energético”, o gás determina o preço global da eletricidade quando é utilizado, uma vez que todos os produtores recebem o mesmo preço pelo mesmo produto - a eletricidade - quando este entra na rede. Ou seja, as regras do mercado ditam que a última fonte de energia a entrar no sistema é que fixa o preço pago a todos os produtores. Essa última fonte de energia tem sido o gás natural, cujos preços estão em máximos, porque as energias renováveis, atualmente mais baratas, não têm sido suficientes para cobrir as necessidades do sistema.
Perante este funcionamento do mercado, verificam-se diferenciais brutais entre os custos na produção (por exemplo, associados às renováveis) e os preços ao consumidor, com enormes margens de lucro. Ora, as rendas garantidas ao setor não são indissociáveis da metodologia marginalista usada nos mercados grossistas, cuja lógica de funcionamento tem contribuído para a subida do preço da eletricidade.
Este modelo de fixação de preços agrada obviamente aos “mercados” mas, devido à subida de preços, que está a acontecer desde o ano passado - recentemente agravada pela guerra -, está a colocar uma enorme pressão nos países e está a motivar alguma discussão. O governo espanhol solicitou há uns meses a retirada do sistema europeu de formação de preços, para ter liberdade para os fixar, privilegiando as energias renováveis, adequando a formação dos preços à sua condição específica. O governo português na altura, no habitual papel de bom aluno, não se atreveu a pedir o mesmo.
A Comissão Europeia veio agora conceder um estatuto especial à Península Ibérica. Mas as condições que levaram a que, em tempo de crise, essa exceção fosse concedida temporariamente - ainda que não se saiba ainda muito bem em que consistirá - não existiram sempre? Serão os consumidores ibéricos compensados por estes anos no mercado em que andaram a pagar energia e lucros aos grupos oligopolistas, quando Portugal e Espanha até são grandes produtores de energias renováveis e estão privados de interconexões ibéricas com o resto do continente europeu?
Pelo menos, ficou exposto que os interesses nacionais estão subjugados aos interesses de Bruxelas e que a perda de soberania neste setor estratégico se paga cara. Mas, Camaradas e amigos, com uma tal política perdem todos: o povo, os consumidores, os trabalhadores do sector, a economia nacional e, em particular, as micro, pequenas e médias empresas e os sectores produtivos.
Só uma última nota sobre a agitação recente à volta do armazenamento do gás: para sancionar a Rússia, que é responsável por 45% do fornecimento de gás da UE, quer-se reduzir gradual ou totalmente a dependência do gás russo ao mesmo tempo que se estabelecem limiares para o armazenamento nos Estados-Membros. Segundo a recente proposta da Comissão Europeia, o objetivo é fixar em 80% o nível mínimo de reservas de gás em instalações subterrâneas de cada Estado até 1 de novembro de 2022, e em 90% para os anos seguintes.
Como no atual momento, o mercado não é atrativo para os capitalistas do sector comprarem gás natural (porque está caro e não permite lucros astronómicos) e a segurança do abastecimento fica posta em causa, então têm de ser os Estados a apoiar financeiramente o enchimento das reservas (na proposta legislativa da CE, não está estipulado financiamento europeu para este armazenamento obrigatório). Os Estados que, é como quem diz, o povo. E pagará duplamente: a conta final da energia, que indubitavelmente aumentará, e as compras do gás que os capitalistas não querem fazer.
A atual situação ilustra bem a importância da segurança do abastecimento energético que, pelo seu caráter essencial, não deve ficar dependente de contingências de mercado que, como está à vista, a ameaçam. Também ilustra bem quem são os principais atingidos pela política de sanções: os trabalhadores e os povos.
No Parlamento Europeu, o PCP rejeitou, desde o primeiro momento, este caminho de liberalização e privatização do setor energético e opôs-se a estes pacotes de privatização da energia, que não solucionam os problemas energéticos do abastecimento nem atenuam a dependência petrolífera. Em cada momento, os deputados dos PCP no PE reafirmaram firmemente a defesa da soberania energética, da segurança do abastecimento, preços acessíveis e ajustados à evolução das economias e um serviço público de qualidade, o que implica o reforço do papel do Estado e o respeito dos direitos dos trabalhadores e consumidores.
Para o PCP, a energia é um bem público e o fornecimento e acessibilidade energética são um serviço público essencial. O sector energético, como sector estratégico de um país, é vital para a sua independência e soberania e é fundamental a um desenvolvimento económico soberano do país, apoiado no conhecimento científico, no progresso tecnológico e na sustentabilidade ambiental. Razões mais do que suficientes para dever ser conservado na esfera pública, sob escrutínio e controlo democráticos. Subordinar o sector energético a interesses privados nacionais e transnacionais é uma afronta à soberania dos povos, aos direitos dos trabalhadores e das populações.