Intervenção de Francisco Asseiceiro, Membro da CAE - Comissão das Actividades Económicas junto do Comité Central do PCP, Mesa Redonda «Energia e recursos na transição energética. Soberania, segurança, ambiente e desenvolvimento»

Energia e Transportes

Nos dois sectores de maior consumo energético, o sector dos transportes ultrapassou o consumo de energia da indústria transformadora, há precisamente três décadas.

Esta ‘ultrapassagem´ do sector dos transportes em 1992, reflete essencialmente o grande aumento do transporte individual que se verificou entre 1985 e 2000, que ocorre a par de duas outras vertentes da política de direita, sem deixar de as refletir:

  • No sistema ferroviário, o encerramento de 860 km de vias férreas em apenas em cinco anos, entre 1987 e esse ano de 1992, durante o X, XI e XII governos.
  • Na indústria, a política anti industrial, que se manifestou, sobretudo a partir dos anos oitenta, com desaparecimento ou retraimento de importantes sectores e empresas de produções básicas e estratégicas, de que designadamente se refere no sector dos transportes, a indústria de construção e reparação naval, a indústria metalomecânica e de material de transporte ferroviário, de que se destaca a Sorefame encerrada em 2004.

De 1985 até à entrada do euro em 2002, verifica-se que o consumo de energia aumentou 200% nos transportes e apenas 50% na indústria transformadora.

Este indicador também revela, entre 2002 e 2008, um período sem aumento de atividade nestes dois setores, a que se seguiu a retração no período da troica e depois, o ciclo de recuperação, também maior nos transportes que na indústria transformadora, que terá perdurado até à crise pandémica.

O consumo final de energia no sector dos transportes em 2017 foi de aproximadamente 38% do total, sendo residual o consumo de eletricidade no transporte rodoviário. Este modo, largamente dominante no sector dos transportes, passou de 83% em 1980 para 95% em 2017, período em que o seu consumo energético aumentou 175%, sendo responsável por quase 24% do total de emissões de gases de efeito de estufa.

Este aumento do transporte rodoviário também reflete o já referido processo de encerramento de vias férreas, que atingiu o total de 1250 km, e a subvalorização e desmembramento do que era a CP una e pública, resultando na redução do número de passageiros transportados por caminho de ferro, de 230 Milhões em 1988 para quase metade em 2013, em que ocorreu o mínimo de 125 Milhões de passageiros transportados.

No modo rodoviário os consumos de gasóleo e de gasolina eram semelhantes até 1993, embora com ligeiro predomínio do gasóleo. Mas entre 1993 e 2017 o consumo de gasóleo aumentou 125% e o consumo de gasolina reduziu 40%, variações que se traduzem, em 2017, em taxas de consumo de 85% para o gasóleo e 15% para a gasolina.

Nestas condições, a maior ameaça consiste na rutura do abastecimento de combustíveis fósseis, particularmente gasóleo, dada a dependência externa do seu fornecimento, condição agravada com o encerramento da refinação em Matosinhos e com a situação de conflito na Europa. Para além de urgentes medidas de prevenção, neste preocupante enquadramento, será também de equacionar a retoma do processo de prospecção e pesquisa de petróleo no país.

No modo ferroviário, a energia eléctrica tem vindo a substituir o gasóleo, numa evolução quase linear. A partir de 2001, o consumo de energia eléctrica passou a ser dominante e em 2017 tinha já o peso de 80 %, a que acresce agora o valor percentual decorrente da operação nas recentes eletrificações, na Linha do Minho e na ligação Covilhã-Guarda na Linha da Beira Baixa.

E apesar de 71% da extensão da nossa rede ferroviária estar electrificada, em 2019 foi transportado por comboio, relativamente ao modo rodoviário, apenas um terço da carga, 7,4 milhões de toneladas, e apenas um terço do transporte coletivo, 180 milhões de passageiros.

O sucesso da entrada em vigor do programa de apoio à redução tarifária em 21 de março de 2019 e a decorrente transferência do transporte individual para o transporte colectivo, que aumentou o número de utentes em mais de 30% nas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto, e que importa alargar e consolidar nas restantes regiões do país, revelam-se também medidas com impacto na redução de consumo energético. O alargamento do Passe Social Intermodal a todos os operadores, a todas as carreiras e a todo o território da área metropolitana de Lisboa permitiu recuperar e multiplicar os utentes regulares, retirando milhares de veículos individuais das estradas contribuindo para uma redução significativa de emissões de CO2.

Apesar disso continua a promoção do transporte individual, agora também com o veículo eléctrico, tendo a quantidade de veículos ligeiros aumentado entre 2015 e 2019 de 6 para 7 milhões. A maioria dos veículos eléctricos em circulação são-no na versão híbrida evidenciando certa precaução face a opções 100% eléctricas.

Substituir veículos com motores de combustão por veículos elétricos é a continuação da política errada da mesma opção pelo transporte individual, com novos e agravados problemas ambientais.

São relevantes vários desafios desde logo, mas não só, no que respeita às baterias, quanto ao custo, condições de carregamento e autonomia, mas particularmente quanto à dependência da UE, da cadeia de abastecimento de 12 materiais (nove deles metais, componentes das terras raras) usados nas tecnologias da energia de baixo carbono, como é o caso dos veículos elétricos.

Estes 12 materiais integram um conjunto de 22 matérias primas consideradas críticas na UE, sendo que esta condição de material crítico resulta da combinação da sua importância económica e estratégica com o risco de fornecimento ou disponibilidade, o que se traduz em bloqueio à transição energética no transporte individual na UE.

A resposta aponta na progressiva substituição do transporte individual pelo transporte colectivo público, na racionalização urbana e na garantia progressiva de que o transporte colectivo se realiza com frotas que não utilizem motores de combustão, desde logo apostando mais decididamente na ferrovia electrificada, e na promoção da transformação das frotas de autocarros e de táxi.

No triângulo: transportes, ambiente e energia, podem salientar-se duas vertentes:

  • O contributo do sector dos transportes, através da racionalização do seu próprio modo de funcionamento libertando-o dos interesses capitalistas que o parasitam, colocando-o ao serviço do povo, do país e da coesão territorial;
  • O contributo do sector dos transportes num processo exógeno de racionalização do modo de produção, do urbanismo e da gestão do território.

No primeiro caso refere-se, como exemplo, a reestruturação do sistema de transportes baseado no rebatimento do transporte rodoviário colectivo nos interfaces com o transporte ferroviário, em termos de complementaridade, em alternativa ao desperdício da concorrência entre modos. Recorde-se a propósito o âmbito nacional e estruturante da extinta Rodoviária Nacional e da CP una e pública, operadora e gestora da infraestrutura ferroviária.

No segundo caso refere-se a diminuição do consumo energético nos transportes com a aposta na produção e consumo de proximidade, e a prioridade à sustentabilidade a partir das economias locais, e não o inverso, a criminosa opção pela prioridade à sustentabilidade global que a concentração de capital impõe e que se traduz talvez na maior fonte de agressões ambientais.

Relativamente ao urbanismo, há que desbravar novas formas de o planear no sentido de limitar distâncias entre locais de residência e de trabalho com horizontes de médio prazo e obviamente de longo prazo.

E quanto à gestão do território é urgente uma profunda reflexão sobre a necessidade e os modos de reversão da crescente concentração das populações em grandes metrópoles, no caso do nosso país, nas duas áreas metropolitanas e faixa atlântica, situação típica imposta no que é dito como «mundo globalizado», com polos onde o grande capital necessita de concentrar trabalhadores e consumidores, sacrificando as zonas agrícolas e a biodiversidade, às monoculturas do agronegócio para alimentar os lucros e as concentrações populacionais de explorados.

É que hoje em dia, 65% da população portuguesa já vive em áreas urbanas, dez pontos percentuais acima dos 55% da média mundial. A concentração de população é tal que 45% dos portugueses vivem em cerca de 5% da área do país a que corresponde as áreas metropolitanas de Lisboa e Porto.

E já se perspetiva que em 2050 sejam já 80% os portugueses a viver nas áreas urbanas, com a média mundial a situar-se nos 68%.

De facto o capitalismo não é verde, e estranhamente, ou não, nas medidas ambientais que defende nada há sobre alteração nos modos de produção e de consumo, que implicam mais e mais necessidades de transporte e de consumos energéticos. O foco está colocado na busca de soluções alternativas aos combustíveis fósseis.

A necessidade da racionalização do sistema de transportes, do modo de produção, dos consumos e da dependência energética, a protecção da biodiversidade e a defesa da soberania, integram a luta pela política alternativa patriótica e de esquerda de que o país precisa.

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