Intervenção de Domingos Lobo, escritor e encenador, Conferência «Uma visão universal e progressista da História - A actualidade da Obra de José Saramago»

O poder e a violência em «Ensaio sobre a Cegueira»

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«A mesma esquizofrénica humanidade capaz de enviar instrumentos a um planeta para estudar a composição das suas rochas, assiste indiferente à morte de milhões de pessoas pela fome. Chega-se mais facilmente a Marte do que ao nosso próprio semelhante. Alguém não anda a cumprir o seu dever. Não andam a cumpri-lo os governos, porque não sabem, porque não podem, ou porque não querem. Ou porque não lho permitem aquelas que efectivamente governam o mundo, as empresas multinacionais e pluricontinentais cujo poder, absolutamente não democrático, reduziu a quase nada o que ainda restava do ideal da democracia.»

Palavras corajosas, proferidas por José Saramago em Estocolmo, a 10 de Dezembro de 1998, aquando da cerimónia da entrega do Prémio Nobel de Literatura e que tocam fundo nas questões centrais do nosso tempo: que poder têm os governos neoliberais da Europa (e os partidos fascistas, ou fascizantes) para travar o domínio quase planetário das multinacionais, esse poder subterrâneo e tentacular que decide as guerras, a pobreza, as doenças e a fome, que impõe as ideias e o pensamento único, que estabelece as regras da governança e seus limites, que coloca em tronos de enxofre os seus chefes de fila e lhes retira o mando quando estes deixam de servir, de serem úteis.

Saramago, pelo novo que a sua escrita transporta, pela lucidez das suas reflexões, pelos conteúdos que habilmente criticam e questionam “o estado do mundo” e as grandes questões da humanidade, não é autor de fácil abordagem, nem particularmente acarinhado pelo conservadorismo dos poderes instalados, (como poderia, caros camaradas, como poderia), que sempre encontraram pretextos para limitar a divulgação, interna e externamente, da sua obra, embora, em tempo de homenagem, alguns sectores disfarcem o incómodo perante as pertinentes questões colocadas pela sua obra, nas entrelinhas das cínicas discursatas a que a circunstância obriga.

Obra difícil será, como tudo que é inovador e raro, que o digam os inúmeros ensaístas de renome, nacionais e estrangeiros, que lançaram à nossa reflexão, sobre a escrita de Saramago e o que ela revela e contém de engajamento social e político, importantes pistas de abordagem e interrogação; que se meteram em trabalhos sobre os códigos de uma escrita que reconstrói genialmente os modos de construção romanesca, ao mesmo tempo que reinventa a estrutura gramatical, a própria linguagem em que esses códigos se plasmam, criando um fecundo território imagético, sensorial e lúcido, em que o jocoso, o épico, o real e o fantástico se entrelaçam de modo conceptualmente modelar. A partir de Levantado do Chão, Saramago transporta para a nossa narrativa contemporânea envolventes semânticas de estranheza e sedução inusitadas, a renovação estética e ética de uma escrita autónoma, em desassombro e mutação das práticas narrativas dominantes, ensaiando uma voz única e com preclara identidade. Aprofundando a experiência discursiva já presente nesse notável Manual de Pintura e Caligrafia, acrescentando-lhe, segundo José Manuel Mendes, uma «linguagem flexuosa, inventiva, plena de cambiantes, que foi, será sempre, uma cintilante ousadia».

Considerando-se assim, em definição conjuntural, a sua obra, a que se prospetiva inquiridora do real e do histórico, textos que na sua singularidade configuram os métodos de incisão analítica de transfiguração e agilização linguística, numa perspetiva de enquadramento crítico da realidade no discurso; o percurso das componentes sincrónicas, hipodiegéticas e intertextuais que estruturam o ingular modo literário, como lhe chamou Maria Alzira Seixo, ou seja, as plurais dominantes estéticas que configuram a narrativa saramaguiana e a sua marca ontológica, a qual, a partir desse poderoso romance que é Ensaio Sobre a Cegueira, de 1995, se encontram plenamente definidos.

Com Ensaio sobre a Cegueira, Saramago irá encenar a utópica ambição, que todo o criador de génio persegue, de explicar, mesmo numa perspetiva pessimista, de tornar menos absurdo o volátil existencial, esse magma que nos cola, mente e vísceras, a este cósmico chão – a interrogação dialéctica do homem com o seu tempo, a necessidade de tornar, através da arte, da pintura ou das palavras, perene o que é efémero e dar algum sentido ético e moral, a competência ideológica de Saramago, no dizer de Philipe Hamon, à absurdez do nosso tempo e ao seu caos imanente.

A arte narrativa de Saramago transporta esse semental de ideias, de que nos fala Luís Rebelo de Sousa, para esse prodigioso romance-ensaio, em que as inquietações humanistas do autor expresso em processos narrativos que percorrem, com subtileza estilística, alguns dos formulários do noveau roman, o tempo denso da reflexão existencial, enxuto e relativo e em processo distanciador de herança brechtiana; o brilhante exercício que Saramago encena sobre a linguagem e seus limites, patente de modo superior nos Ensaios da lucidez e da cegueira, misturando-se com os referentes sociais e políticos da desordem e da cupidez, o trágico, o visionarismo progressista da sua amarga concepção das sociedades contemporâneas, a preocupação com o homem e o seu lugar no mundo, ungidos nessa tarefa constante de, num mundo de cegos, nos fazer ver, como diria Conrad, levando aos limites de especulação antropológica um grupo de humanas criaturas às quais um fenómeno raro conduz à cegueira branca, que é, como sabemos, o contrário das trevas, simbologia que neste obra maior de Saramago não é despicienda, a descrever um processo de degeneração gradual do humano, as relações de poder e a opressão, dos cegos entre si, enclausurados num manicómio como se estivessem em Auschwitz, e a violência do governo que os descrimina e quer vigiados de perto (a uma distância que impeça o contágio com os “ainda não cegos”), por militares com dedos nervosos no gatilho, tocados pelo pavor do contágio, medo do outro tornado de súbito um estranho, o inimigo que ao mínimo deslize é preciso abater, matando sem remorsos (o remorso é um luxo descartável nesta parábola da irracionalidade que o medo produz, também ela cega) quem se atreva, mesmo tropeçando em cadáveres e imundície, vir à soleira do hospício gritar que tem fome. É a metáfora mais absoluta da humanidade enredada nos seus labirintos, no absurdo kafkiano, a metamorfose do homo sapiens, no animal primitivo que o habita.

Olhar e ver, diz-nos Saramago, como condição essencial para entender o mundo, e entendendo, poder mudá-lo. Mesmo quando o autor de Levantado do Chão descreve com o seu proverbial cepticismo a usura, a abjecção e as perversões do poder, como acontece nos seus dois Ensaios, o da Cegueira e da Lucidez, atinge, pela sua prodigiosa arte narrativa, pelo humanismo da sua visão do mundo, o patamar mais largo da literatura universal, a que, como Ensaio Sobre a Cegueira descreve a “omnipotência do mal e a rejeição ou pelo menos a relativização das teorias da bondade natural do ser humano”, emparceirando nessa reflexão com Kafka, Camus, Dostoievski, Thomas Mann, Primo Levi e Golding.

Inventor de utopias lhe chamou Ana Paula Arnaut, síntese feliz de uma obra e de um escritor cuja matriz põe em cena, através das palavras levantadas, um discurso literário superlativo, onde tudo cabe: os cardos, o telúrico, os húmus, o popular, os prodígios, a violência, o mal kantiano, o pessimismo, a descrença, as religiões

e os enigmas que fecundam a vida, essa comunhão de perceptividade, afectos e emoções, sem as quais a nossa humanidade se perderá num vazio que se atrela à barbárie.

Também criador de personagens incontornáveis como o cão das lágrimas. Os uivos do cão das lágrimas, alertam-nos para a necessidade de ir à luta, de uivarmos contra este estado das coisas, uivemos para recusar o que não cremos e nos sufoca. Oiçamos Saramago: «No fundo o uivo é a presença do cidadão na vida em sociedade, na vida do país, fora dessa rotina cinzenta em que, mais ou menos, estamos. Quando eu digo “uivemos”, estou a pretender dizer “digamos, reclamemos, protestemos.»

Ora, o mal absoluto de Kant, que Saramago glosa na obra-prima que é Ensaio Sobre a Cegueira, nasce da própria condição-limite em que os cegos se encontram, fechados num manicómio, perdidos nos seus labirintos, enclausurados num espaço estranho e irreconhecível, acantonados sobre lixo, excrementos, putrefação, atingindo o estágio mais abjecto da nossa condição, onde apenas o animal que somos poderá sobreviver. Mesmo quando alguns ousam uivar, existem lá fora armas que disparam e matam.

Mas não são apenas os perigos externos, o medo dessa peste branca que percorre a cidade, também o perigo, a vileza do mal, o mal extremo porque exercido sobre criaturas que vivem a mesma condição, que se instala nos insalubres pavilhões de um manicómio abandonado: o grupo dos cegos malvados, os que possuem uma arma e isso lhes basta para dominar centenas de outros cegos: em terra de cegos quem tem uma arma tem poder, eis mais uma lúcida parábola de Saramago. Um poder, dir-se-ia primitivo e mesquinho, porém de uma sordidez absoluta e degradante: o de recolher a parca ração que o governo distribui aos enclausurados; o poder de lhes exigir em troca os parcos haveres que ainda possuem e, por fim, o poder de exigir das mulheres horas de prazer, ou seja, condená-las, a elas e aos companheiros, à suprema humilhação. Saramago não moraliza o que descreve, apenas nos alerta para os perigos a que estamos sujeitos quando vemos não vendo. É a própria luta de classes que Saramago encena neste jogo de poderes dentro da mesma condição. Mesmo nesse extremo abastardamento, existem gradações: embora cegos, a luta de classes mantém-se e é preciso estar vigilante. Sempre.

A mulher do médico vê, mas só perante a extrema ignomínia a que foi sujeita, entenderá. E entendendo, se dispõe a agir, enfrentado o chefe dos cegos malvados. Também ela, vendo, estava cega, e é preciso que tudo arda para que a liberdade aconteça e a busca da dignidade perdida se estabeleça. É deste modo que a mulher do médico, personagem central do romance, a não cega, conduzirá um grupo de sete cegos, os que resistiram ao caos; levá-los-á para casa, comerão o que é ainda possível encontrar, lavar-se-ão com as águas da chuva, a que, lavando, purifica; despirão os andrajos e os sapatos, vestirão roupa limpa, num processo gradual de retorno ao humano. Há nesta forte metáfora da desumanização algo de simbólico, de parábola bíblica, tão comum nos processos narrativos do ateu José Saramago.

O cão das lágrimas lamberá as lágrimas dos que regressam à memória dos dias do medo, outros começarão a ver; Por que foi que cegámos, perguntará a mulher do médico e este responderá, Não sei, talvez um dia se chegue a conhecer a razão, Queres que te diga o que penso, Diz, penso que não cegámos, penso que estamos cegos, Cegos que vêem, Cegos que, vendo, não vêem.

Toda a obra de Saramago existe para que com ela abramos os olhos, para que podendo olhar, ver, e vendo, reparar.

É nos “sinais da vida” e no profundo humanismo, nessa “competência ideológica” que a ficção de Saramago se definirá, dentro e fora de fronteiras (literárias e ideológicas), rasgando preconceitos e impondo-se como um dos mais geniais criadores literários contemporâneos, tornando universal uma Literatura que parecia condenada a ser periférica.

Na obra singular que nos legou, na sua pluralidade imagética, no humano que a edifica, encontramos a certeza, como em Defoe, Rousseau e Yourcenar, de que “toda a verdade é ficção” ou ficcionável; a questão da verdade (a dualidade verdade/histórica vs. verdade/ficcional, presente em História do Cerco de Lisboa e O Ano da Morte de Ricardo Reis) - os teoremas de uma escrita poderosa e única, esse gosto/gozo de jogar no cerne das palavras e das ideias transgressoras, como acontece na evocação de O Lusíadas num dos seus mais brilhantes e inquiridores textos dramáticos, Que Farei com Este Livro?

O modo narrativo de Saramago, é assim, no seu avassalador criativo, simbólico e crítico, utilizando um verso de Herberto Helder, uma extensão da terra.

Que faremos nós, hoje e aqui, com este legado único, com este património de palavras lúcidas e intemporais que os livros de José Saramago, constituem? Partir com eles numa nova, exaltante viagem, dado que o fim duma viagem é apenas o começo doutra. Olhar e ver e vendo, agir. Uivemos, portanto!

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