Intervenção de Carina Infante do Carmo, professora universitária, doutorada em Literatura e Cultura Portuguesas, Conferência «Uma visão universal e progressista da História - A actualidade da Obra de José Saramago»

O «Memorial do Convento» e a conquista da notoriedade do escritor José Saramago

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Numa resposta dada em entrevista a Carlos Payás, em 2006, José Saramago evoca o impacto que teve na sua trajectória a exoneração do cargo de director-adjunto do Diário de Notícias, em Novembro de 1975, levando-o a um decisivo salto no escuro que foi procurar ser escritor. Nessa data, «[…] tinha livros, mas não tinha uma obra. Tinha livros, mas não era um escritor»(apud Aguillera, 2008, p. 69). Em 1975, tinha efectivamente vários livros publicados, de poesia, de crónica e até um romance, mas faltavam-lhe leitores. E é a conquista deles que lhe permitirá identificar-se em pleno como escritor.

Em 1982, dá-se o verdadeiro nascimento do escritor José Saramago, quando começavam a assegurar-se as condições materiais decorrentes do contrato com o Círculo de Leitores que, no ano anterior, publicara Viagem a Portugal. Como pano de fundo, em 1982/83, a literatura portuguesa vive uma transmutação assinalável: é um momento de safra soberba para o romance português: de 1982 são, desde logo, A Balada da Praia dos Cães, de José Cardoso Pires, e Rio Triste, de Fernando Namora. E é também o ano do marco pessoano, da publicação do Livro do Desassossego, e da republicação de Cerromaior, de Manuel da Fonseca, reconstituindo um texto que a Censura mutilara na sua primeira edição, de 1943. Nesta temporalidade múltipla, de tão diversos andamentos e protagonistas, estão Saramago e o seu Memorial do Convento (1982), o que nos leva a considerar a dimensão institucional e comunicativa do fenómeno literário. Nesse âmbito irei analisar-se, de seguida, o impacto das suas declarações públicas nas posições de prestígio que então conquista, sendo um participante activo na construção da sua notoriedade literária.

Memorial do Convento é, para Saramago, um ponto-charneira na sua trajectória de escritor. As entrevistas que dá por ocasião do lançamento do livro são relevantes, cruciais até, para a forma como exprime um entendimento estruturado e desafiador sobre a obra até então publicada, sobre o género romance e a sua evolução na entrada dos anos 1980 e sobre as tradições literárias com que dialoga e em que se inscreve. Não que o leitor, o de 1982, ou o de hoje, 40 anos passados, se tenha de ater às opiniões e intenções autorais de Saramago. Todavia, não é negligenciável que, através de declarações públicas e publicadas, tenha procurado regular ou, pelo menos, conduzir as condições e os termos da recepção da sua obra e da sua consagração no campo literário.

Pressuponho aqui a ideia de campo literário como um lugar de configuração sistémica, tensional e evolutiva, na linha do que defendeu o sociólogo francês Pierre Bourdieu. Aí se confrontam princípios diversos de fazer e comunicar o literário e também forças e critérios de ordem ética, política e económica, cuja interferência na autonomia relativa do literário, afirmada no Ocidente desde meados do século XIX, se foi manifestando de modo mais ou menos premente, conforme os contextos históricos. No campo literário, está sempre em jogo uma correlação de forças: é desigual o peso dos seus intervenientes, enfrentam-se diferentes juízos de valor sobre o literário e intervêm, de forma decisiva, mediações institucionais, organismos e agentes na produção e reconhecimento de obras, autores e movimentos literários.

Tal é o caso do campo literário português de 1982 em que inevitavelmente uns lutam por conquistar e outros por manter a consagração literária de que são parte as já referidas mediações, com especial destaque para a crítica e os prémios literários. Também graças a elas, nesse ano, o vento muda em definitivo para José Saramago: Memorial do Convento chega a muitos mais leitores, ascende à condição, evidenciada por Eduardo Lourenço, logo em 1984, de “clássico” e “obra-prima de ironia dialéctica” (1994, p. 300), cuja temporalidade alegórica participa na reinvenção do presente e do passado nacionais.

Para esta situação contribui a demora na entrega a Saramago do Prémio Cidade de Lisboa, instituído pela Associação Portuguesa de Escritores (APE) e patrocinado pela Câmara Municipal de Lisboa. O prémio atribuído aLevantado do Chão (1980), sob a chancela da Editorial Caminho, fora anunciado no final de 1981, mas só é entregue ao autor a 1 de Junho do ano seguinte. O impasse acaba por potenciar o interesse de certa crítica por Levantado do Chão, destacando-se, aliás, dois nomes brasileiros: Maria Lúcia Lepecki1 (1981, pp. 12-13 e 1982, pp. 12-13), no JL e no Diário de Lisboa, e Lélia Parreira Duarte (1982, pp. 6-7), em o diário. Meses depois, a 4 de Novembro de 1982, é lançado Memorial do Convento: a sua redacção fora rápida — iniciara-se em Janeiro e fora concluída no Verão do mesmo ano — e acaba ultrapassando um projecto anterior, O Ano da Morte de Ricardo Reis, idealizado em 1978, mas só publicado seis anos depois. O êxito de Memorial do Convento dá, inclusive, o impulso necessário para Saramago concluir essa sua entrada ficcional no universo pessoano.

Se perde o Prémio Romance da APE de 1982 para Balada da Praia dos Cães, Memorial do Convento é galardoado com o Prémio PEN Club Português e verá renovado o (renomeado) Prémio Literário Município de Lisboa, desta feita ex-aequo com Cais das Merendas, de Lídia Jorge. Além disso, tem uma sequência impressionante de edições em Portugal, é editado no Brasil (1983) e traduzido em Itália (1984), Espanha (1986), República Federal Alemã (1986), EUA (1987), Inglaterra e Suécia (1988).

O entusiasmo da recepção justifica-se pela apetência do público por um romance desafiador do ponto de vista formal e ideológico. Em tempos ainda fortemente tocados pela energia popular da Revolução dos Cravos, o Memorial reclama outra memória colectiva que não a da versão oficial dos vencedores: em vez de se ficar pelo rei que mandou erigir o Convento de Mafra, fala dos seus construtores, vítimas de exploração, dor e morte para cumprir uma promessa do tal rei despótico que vira garantida a descendência. Reportando-se ao longínquo século XVIII, de pesada repressão inquisitorial e miséria, o livro conta uma história de amor e de sonho humanos, simbolizada na relação entre Blimunda Sete-Luas e Baltasar Sete-Sóis, no poder libertador da música de Scarlatti e, sobretudo, na passarola do padre Bartolomeu de Gusmão que se movia pelas vontades de uma humanidade secularmente oprimida.

Luís de Sousa Rebelo, no prefácio à 2ª. edição de Manual de Pintura e Caligrafia, em 1983, redige um primeiro ensaio de compreensão global e enquadramento histórico-literário da obra saramaguiana e, por força, evidencia Memorial do Convento. Saramago é parte grada do “annus mirabilis” (Rebelo, 1983, p. 9) de 1982-1983 em que ressurgem a ficção e a criatividade nacionais, potenciadas pela festa revolucionária e o seu efeito democratizador. Em contrapartida, segundo o prefaciador, punha-se o problema da “inapreensão” (idem, p. 11) da crítica, de escassa expressão em suplementos literários, incapaz de escrutinar e ajuizar o crescimento exponencial da edição literária e das ciências sociais, remetida para dentro da esfera da Universidade e abstendo-se, em grande medida, de enfrentar a nossa endémica fragilidade dos hábitos de leitura. No caso de Saramago, sabemo-lo, essa inapreensão crítica tinha o factor agravado do preconceito ideológico, suscitado pela sua militância comunista.

Quanto ao Memorial, importa evidenciar o empenho da editora, também ela em fase de crescimento, a Editorial Caminho, na projecção pública da obra e do escritor, nomeadamente através do jornal o diário que a ela estava associado. Forma-se, nesse âmbito, um corpo significativo de reflexão sobre Saramago, muitíssimo mais forte do que se proporcionara com Levantado do Chão. Além do prefácio já referido de Luís de Sousa Rebelo, sucedem-se os artigos publicados sobre Saramago em o diário (Cf. Carvalho, 1983, p. 5; Rebello, 1983, pp. 4-5; e Rodrigues, 1983, p. 3). Sob o impacto da entrevista de José Jorge Letria a Saramago, publicada a 21 de Novembro de 1982, o entusiasmo pela novidade do romance, lançado no início desse mês, traduz-se, de imediato, num debate entre jornalistas daquele jornal em que já são preponderantes citações de Saramago (cf. Serrano et al., 1982, pp. 6-7). A abrangência, extensão e consistência daquela entrevista a o diário confirma até que ponto a voz autoral determinava já a composição da sua imagem pública e a formulação de um projecto literário. Assim acontecerá daí para a frente, na sua longa e prodigiosa carreira literária, não só sob a forma de entrevistas, mas igualmente de discursos, ensaios ou escritos autobiográficos, especialmente diarísticos.

À entrevista de José Jorge Letria seguem-se as de Fernando Dacosta, no JL-Jornal de Letras, Artes e Ideias, a 18 de Janeiro de 1983, e de Francisco Vale, em O Jornal, a 28 de Janeiro de 1983, por sinal realizadas em conjunto no espaço do Convento de Mafra. Ambas contribuem para e dão sinal de como Saramago transpunha já barreiras políticas e estéticas e estava chegar a um público alargado. Fernando Dacosta não podia ser mais explícito quanto ao êxito impressionante do Memorial: “Em terceira edição, a sair dentro de dias, o último livro de José Saramago tornou-se já um monumento angular na nossa cultura.” (1983, p. 16).

Neste trio de entrevistas Saramago aborda, no essencial, três tópicos de reflexão. Em primeiro lugar, a “libertação do escritor dentro da própria escrita” (Letria, 1982, p. 6) que o 25 de Abril tornou possível. Com a democratização da sociedade e a supressão da censura e da autocensura, abrira-se campo a um verdadeiro ressurgimento do romance português que Saramago identifica em O Separar das Águas (1981), de Hélia Correia, e O Dia dos Prodígios (1980), de Lídia Jorge (idem, p. 6; Dacosta, 1983, p. 17; Vale, 1983, p. 12). Ora, nesse contexto, impunha-se, a seu ver, o reconhecimento do estatuto profissional do escritor. Em causa estava, afinal, o que a nova sociedade portuguesa quereria ou não fazer com e do escritor: a valorização da actividade literária como trabalho e instrumento de formação colectiva, assim como a viabilidade da profissionalização de quem escreve e de que dependeria a renovação da nossa produção romanesca. A atitude reivindicativa desta posição compagina-se com as palavras que o autor de Levantado do Chão enunciara, em nome próprio e dos seus pares, no discurso de entrega do Prémio Cidade de Lisboa. Nada que se estranhasse se considerarmos outras intervenções suas, desde 1974, inclusivamente dentro da organização intelectual do PCP, e em consonância com o teor de muitas comunicações do II Congresso de Escritores Portugueses, realizado nesse mesmo ano, entre 3 e 5 de Março de 1982.

Na entrevista dada a Fernando Dacosta, no JL, Saramago associa a sua condição de escritor ao rumo tomado pela jovem democracia portuguesa e mesmo às feridas (as colectivas e as suas) do processo contra-revolucionário de 25 de Novembro de 1975. Concebe-as como “purgatório para começarmos outra vez já noutras bases” (Dacosta, 1983, p. 16), a que, apesar de tudo, pode suceder um “projecto comum de felicidade possível” (idem, ibidem), um pouco à semelhança do significado que, no seu entender, a passarola tem no Memorial do Convento:

Continuamos a viver no tempo e no reino dos possíveis e é bom que não percamos esse ponto de vista porque as utopias são boas mesmo para pôr o padre Bartolomeu de Gusmão voando quando ainda não se voava.” (idem, ibidem)

Com a força alegórica do seu romance, Saramago visa, efectivamente, o presente: alude aos revezes e frutos do ciclo de mudança mais intensa da história contemporânea portuguesa que pôs fim à ditadura e ao ciclo imperial e afirmou a viragem revolucionária e democrática. E entre os embates políticos, económicos e sociais da entrada da década de 1980, impunha-se-lhe contradizer os usos do passado e as políticas de memória do regime democrático, comandados hegemonicamente pelos vencedores da contra-revolução, não obstante a energia persistente da organização popular e a marca democrática e nacional da Constituição Portuguesa, aprovada em 1976 e revista nesse ano de 1982.

Um segundo tópico-chave das entrevistas, concedidas aquando do lançamento de Memorial do Convento, acentua a sua necessidade “quase voraz de apreensão da História” e de resposta a uma generalizada “fome de mitos” (Letria, 1982, p. 7), por sinal em tempos de suposto fim da História, acrescento eu. A História, para Saramago, é parcial e parcelar e, “enquanto forma do viver social dos humanos no tempo” (Gusmão, 2011, p. 281), exigia, reclamava a presença e a memória da tradição dos oprimidos, para usar a expressão de Walter Benjamin em “Teses sobre a Filosofia da História” (1940). Sem excluir a historiografia, a sua ficção excede-a e integra configurações de correcção e invenção do discurso historiográfico, longe, portanto, de qualquer propósito passadista; antes pelo contrário. Por esse motivo, nas palavras de Manuel Gusmão, em Saramago, a “historicidade da ficção é transtemporal, não apenas no sentido em que viaja ou permite viajar no tempo, mas na medida em que a relação entre escrita-e-leitura constitui uma travessia dos tempos.” (idem, p. 282).

Não admira que, na entrevista a Francisco Vale, o tempo histórico lembre ao escritor a figura de um harmónio em que passado e presente se interligam e se tornam “contíguos uns dos outros. É como se 1720 tivesse sido ontem, agora mesmo, ali naquele salão.” (Vale, 1983, p. 12). Esta concepção histórica repercute-se na inovação da técnica narrativa que muda constantemente de ângulo, tornando o autor, conforme declara, “um pouco como espectador do que faço, espectador múltiplo que se desloca para os vários locais da acção” (idem, ibidem). Em conversa com Fernando Dacosta, o escritor acrescenta um argumento complementar: “Então o país começou a surgir-me, todo ele, como um gigantesco convento, um convento cujos limites não eram só as fronteiras geográficas pois prolongava-se para dentro das pessoas” (Dacosta, 1983, p. 17), em tempo de despotismo régio e Inquisição. Ao invés dos pressupostos do romance histórico oitocentista, a memória do século XVIII é indissociável da travessia trans-histórica e da reclamação explícita da História pela ficção: “Não se trata de regressar ao romance histórico, mas sim de meter o romance na história.” (idem, ibidem).

Acresce, depois, o valor que atribui a um realismo “de portas abertas” (idem, ibidem), já que “[o] mundo tem mais para nos dizer do que aquilo que somos capazes de entender” (idem, ibidem). Afinal de contas, “[d]a mesma maneira que penso que não há nada fora da história, penso também que não há nada fora do realismo.” (idem, p. 17) Na entrevista a José Jorge Letria, essa definição alargada de realismo implicara uma capacidade expandida de representação: “[…] os olhos com que observo a realidade não excluem nenhum elemento dela e a poesia é um dos elementos que a integram.” (Letria, 1982, p. 6). O outro dado a considerar era, com efeito, o maravilhoso. Nessa medida, Saramago vê-se afim do contar da velha cepa ibérica e do “modo amplo de respirar” (idem, p. 7) do realismo fantástico latino-americano, embora, neste segundo caso, a afinidade não se estendesse às personagens desse filão romanesco de tanto impacto entre os leitores portugueses no início da década de 1980. Recusa mesmo falar em influência latino-americana porque a raiz por si reivindicada, para Levantado do Chão e Memorial do Convento, é, acima de tudo, portuguesa:

Penso que estes livros são muito da nossa raiz e do nosso chão. São livros que remexem, que revolvem com as camadas profundas do nosso ser. No fundo, é como quem mete a relha do arado na terra e traz à superfície as camadas escondidas e põe ao ar e ao sol o que está oculto, longe, mas presente em nós.” (idem, ibidem)

Mesmo se se associa à categoria do realismo, é natural que José Saramago divirja dos “tempos heróicos do neo-realismo” (Vale, 1983, p. 12) de Soeiro e Redol, quando, em Memorial do Convento, explora o “elemento mágico não explicado” (idem, ibidem) de Blimunda e acentua a agilidade irónica e auto-reflexiva da narração. Em todo o caso, no que toca a Memorial do Convento, menos distante estaria a sua posição face ao movimento neo-realista, sobretudo se tivermos em conta a efabulação apocalíptica e fantástica do velho latifundiário em decomposição, no “Livro das Horas Absurdas”, de Barranco de Cegos (1961), ou a metáfora telúrica e agrícola da escrita, tal qual a lemos na citação acima transcrita. De alguma maneira, naquela resposta a José Jorge Letria, Saramago está a medir-se com o legado romântico que desagua, entre outros, nos escritores neo-realistas que, segundo Carlos de Oliveira, acharam ser “preciso tocar de vez em quando a terra para não sucumbir” (Oliveira, 1979, p. 126), pondo o tesouro ao sol das tradições de fundo popular e comunitário para poder criar o novo.

E assim chegamos ao terceiro e último tópico de auto-reflexão literária que as entrevistas em estudo levantam: a modelação da língua saramaguiana. Na entrevista a o diário dirá: «Escrevo no fundo, como se escrevesse a língua que gostaria que se falasse» (Letria, 1982, p. 6) e que tem por referência o Padre António Vieira, a beleza caudalosa e o rigor da língua portuguesa dos séculos XVI e XVII (o que declaradamente virá atenuar em obras seguintes), e também a fala do povo.

O labor estilístico de Memorial do Convento significa, entretanto, uma mudança face a Levantado do Chão. Na sessão de lançamento reportada em o diário, de 6 de Novembro de 1982, a diferença é assumida, sem rodeios, pelo romancista: «Este é um livro muito menos lírico, que rejeita a emoção [incorporada, em Levantado do Chão, na evocação da brava caminhada camponesa pelo século XX]. Sempre que pressinto que o leitor se vai emocionar, corto pela ironia ou pelo sarcasmo, qualquer veleidade lacrimal.» (An., 1982, p. 21). As razões de tal viragem, expõe-nas depois Saramago na entrevista dada a José Jorge Letria: por diferença da “comoção constante” (1982, p. 7) da obra de 1980, concentrado que estava na opressão e resistência ao latifúndio e movido pelas memórias das origens camponesas do seu autor, Memorial do Convento faz um “ajuste de contas, de contas minhas, não no plano da ideologia religiosa e do uso da fé” (idem, ibidem), sob uma pretensa veia anti-clerical. A diferença irónica e sarcástica do Memorial concretiza, sim, um protesto contra a responsabilidade histórica do aparelho eclesiástico de setecentos, com fundas repercussões no viver português dos séculos seguintes até ao presente.

A subversão irónica de Saramago faz-se igualmente pela re-invenção da pontuação que convida à leitura em voz alta da prosa, como se de uma pauta de música se tratasse. Desse modo o romance procura amplificar as potencialidades linguísticas dos seus leitores, em tempos que o escritor teme serem de emudecimento iminente da maioria, “limitada a ouvir, não entendendo muito bem o que escuta” (Dacosta, 1983, p. 17), pelo efeito padronizador dos meios audiovisuais de comunicação.

Acresce que a voz coloquial do narrador saramaguiano mostra e exibe a sua actividade enunciativa, a dicção passada a escrita reconstitui a magia da narrativa oral e faz a orquestração dialógica de vozes de uma comunidade. Daí a “língua que uso nos meus romances faz[er] corpo com aquilo que conto. Estou, afinal, a exprimir aquilo que somos.” (Letria, 1982, p. 7). No fundo, Saramago procura dar corpo, e declara-o abertamente, a uma voz individual que é sempre um diálogo, ao misturar narrador e personagens e ao participar como parcela na ininterrupta cadeia verbal da terra portuguesa e da comunidade humana, sempre mergulhada no devir histórico.

Assim o comprovamos em Memorial do Convento, cujo desenlace trágico consome, num auto-de-fé, o corpo de Baltasar e de outras vítimas anónimas da Inquisição junto do escritor António José da Silva, o Judeu. Também nesta cena derradeira irrompe a centelha da memória e da voz dos vencidos, ajustada ao desígnio que Saramago associa ao seu projecto literário: “Escrever é fazer recuar a morte, é dilatar o espaço da vida” (Dacosta, 1983, p. 17). Daí também o poderoso significado alegórico, de resistência e busca inconformada de Blimunda, com o pé bem assente na paisagem portuguesa, atravessando tenazmente os séculos até nós:

Milhares de léguas andou Blimunda, quase sempre descalça. A sola dos seus pés tornou-se espessa, fendida como uma cortiça. Portugal inteiro esteve debaixo destes passos, algumas vezes atravessou a raia de Espanha porque não via no chão qualquer risco a separar a terra de lá da terra de cá, só ouvia falar outra língua, e voltava para trás. Em dois anos, foi das praias e das arribas do oceano à fronteira, depois recomeçou a procurar por outros lugares, por outros caminhos e andando e buscando veio a descobrir como é pequeno este país onde nasceu, Já aqui estive, já aqui passei, e dava com rostos que reconhecia, Não se lembra de mim, chamavam-me Voadora, Ah, bem me lembro, então achou o homem que procurava, O meu homem, Sim, esse, Não achei, Ai pobrezinha, Ele não terá aparecido por aqui depois de ter passado, Não, não apareceu, nem nunca ouvi falar dele por estes arredores, Então cá vou, até um dia, Boa viagem, Se o encontrar. (Saramago, 1986, p. 356)


Bibliografia citada

Anónimo 1982. José Saramago apresentou Memorial do Convento. o diário, nº. 2198, 06/11, p. 21.

Carvalho, Armando da Silva 1983. As nuvens fechadas. o diário. Suplemento Cultural, nº. 79, 06/02, p. 5.

Dacosta, Fernando 1983 (entrev.). José Saramago: “Escrever é fazer recuar a morte, é dilatar o espaço da vida”. JL-Jornal de Letras, Artes e Ideias, nº. 50, 18-31/01, pp. 16-17.

Duarte, Lélia Parreira 1982. Um livro «levantado do chão», o diário. Suplemento Cultural,nº. 40, 09/05, pp. 6-7.

Gómez Aguillera, Fernando 2008. José Saramago a Consistência dos Sonhos. Cronobiografia. Lisboa: Caminho.

Gusmão, Manuel 2011. O sentido histórico na ficção de José Saramago. In Uma Razão Dialógica. Ensaios sobre Literatura, a sua Experiência do Humano e a sua Teoria. Lisboa: Avante!, pp. 279-311.

Lepecki, Maria Lúcia 1981. Levantado do Chão: história e pedagogia. JL, nº. 18, 27/10-09/11, pp. 12-13.

Lepecki, Maria Lúcia 1982. Levantado do Chão Espaços e movimentos. DL-Diário de Lisboa. Ler/Escrever. Suplemento Literário, nº.46, 28/01, pp. 12-13.

Lepecki, Maria Lúcia 1983. Arquitectura e música. Expresso. Revista, nº. 550, 14/05, p. 35.

Letria, José Jorge 1982 (entrev.). José Saramago fala de Memorial do Convento: “A língua que uso nos romances faz corpo com aquilo que conto”. o diário. Suplemento Cultural, nº. 68, 21/11, pp. 6-7.

Lourenço, Eduardo 1994 (1984). Literatura e revolução. In O Canto do Signo. Existência e Literatura 1957-1993, Lisboa, Presença, pp. 292-301.

Oliveira Carlos de 1979. O tesouro ao sol. In O Aprendiz de Feiticeiro. 3ª. ed. corrigida. Lisboa: Sá da Costa, pp. 97-126.

Rebelo, Luís de Sousa 1983. Os rumos da ficção de José Saramago. In José Saramago, Manual de Pintura e Caligrafia. 2ª. ed. Lisboa: Caminho, pp. 7-38.

Rebello, Luís Francisco 1983. Para uma leitura de Memorial do Convento. o diário. Suplemento Cultural, nº. 83, 06/03, pp. 4-5.

Rodrigues, Miguel Urbano 1983. Mafra, a explicação de Portugal e o Memorial de Saramago. o diário, 31/08, p. 3.

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Serrano, Miguel, Letria, José Jorge, Rosado, Pedro Garcia e Melo, A. 1982 (debate). Memorial do Convento na(s) leitura(s) de 4 jornalistas. o diário. Suplemento Cultural, nº. 71, 12/12, pp. 6-7.

Vale, Francisco 1983 (entrev.). José Saramago: “O mundo é um enigma constantemente renovado”. O Jornal. 2º. Caderno, nº. 414, 28/01, pp. 12-13.


 

1 É da autoria de Maria Lúcia Lepecki (1983, p. 35) o primeiro artigo sobre José Saramago e sobre Memorial do Convento publicado, em 14.05.1983, no jornal Expresso, sob o título “Arquitectura e música”.

 

 

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