Intervenção de Duarte Caldeira, Investigador , Seminário «Do papel e política do Estado aos meios necessários – O que falta fazer na Protecção Civil?»

Incêndios de 2017: Cinco anos depois, o que falta fazer na Proteção Civil?

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Percorrendo aquele que é o texto fundamental do nosso ordenamento jurídico, a Constituição da República Portuguesa (CRP), nesta são raríssimas as referências à Proteção Civil. 

Estamos perante um não reconhecimento constitucional daquela que é uma questão crucial para a segurança dos cidadãos e, até mesmo, do próprio Estado. No entanto, tal não retira a importância que à Proteção Civil deve ser reconhecida. 

É dever do Estado garantir a segurança de todos nós. O artigo 27º da CRP determina que «Todos têm direito à liberdade e à segurança». Esta “segurança” deve ser aqui entendida numa dimensão ampla. 

Há hoje a consciência de que, o conceito de Segurança sofreu alterações profundas que já não permitem considerá-la apenas como a segurança do Estado face aos inimigos externos. A segurança deve ser atualmente entendida numa perspetiva mais abrangente, associada à existência de 3 Pilares: 

  • Pilar da Defesa Nacional relacionado com a segurança externa; 
  • Pilar da Segurança Interna relacionado com a atuação das Forças e Serviços de Segurança e ligada à garantia e proteção dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos;
  • Pilar da Proteção Civil associada à ideia de Segurança Comunitária.

As crises humanitárias, os desastres naturais, os ciberataques, entre outras ameaças, impõem um novo sistema valorativo da Segurança, no qual se insere a Segurança Comunitária.

É neste contexto que se enquadra a Proteção Civil. Pela sua dimensão permanente, multidisciplinar e plurissectorial, ela constitui um domínio da responsabilidade política transversal do Estado, tanto ao nível central como local. 

Os desafios contemporâneos impõem um sistema de proteção civil inovador, moderno e assente num pensamento estratégico

Ao longo dos últimos 30 anos, o sistema português de Proteção Civil foi objeto de várias experiências legislativas e organizacionais, fundamentalmente inspiradas pela sucessão de governos ou pela eclosão de ocorrências extremas.

Depois do ciclo de instabilidade política vivido nos primeiros cinco anos deste século marcado por ocorrências de particular impacto – do colapso da Ponte Hintze Ribeiro, em março de 2001, aos incêndios florestais de 2005 – no período de 2006-2007 foi concretizada uma ampla reformulação do sistema de proteção civil, com um novo ordenamento jurídico e um modelo integrado de organização, desenvolvido e plasmado na Lei n.º 27/2006 de 3 de julho, que aprovou a Lei de Bases da Proteção Civil.

A proteção civil passou a ser designada como “a atividade desenvolvida pelo Estado, Regiões Autónomas e Autarquias Locais, pelos cidadãos e por outras entidades públicas e privadas com a finalidade de prevenir riscos coletivos inerentes a situações de acidente grave ou catástrofe, de atenuar os seus efeitos e proteger as pessoas e bens em perigo quando aquelas situações ocorram”.

Nesta definição podemos encontrar justificação para uma formulação, embora simplista, bastante esclarecedora dos fins do sistema: proteção civil, por todos, com todos, para todos.

A proteção civil ganhou mais espaço na agenda dos eleitos, em especial ao nível das responsabilidades dos órgãos municipais. Estes últimos passaram a ter um quadro legal específico, que estabeleceu o “Enquadramento Institucional e Operacional da Proteção Civil no âmbito Municipal, Organização dos Serviços Municipais de Proteção Civil e Competências do Coordenador Municipal de Proteção Civil”. 

A implementação de um modelo constitui uma atividade continua que obedece a uma sequência de ciclos de aprendizagem e de lições que são deduzidas da vivência e análise de sucessivas crises. 

Este processo contraria o experimentalismo irresponsável que tem caracterizado o sistema português de proteção civil, ao longo de muitos anos. Esta circunstância tem impedido a definição doutrinária do modelo de sistema, bem como a sua inserção e o devido reconhecimento como pilar essencial da política de segurança interna.

Na sequência da catástrofe provocada pelos incêndios florestais de junho e outubro de 2017, voltaram a fazer-se diagnósticos e estudos casuísticos e aplicaram-se terapêuticas jurídicas parciais e descontextualizadas, na sua maioria, e uma vez mais, de dimensão reativa.

Não foram identificadas as vulnerabilidades existentes nem a sua resolução foi encarada com um programa de medidas de natureza qualificada – institucionais, jurídicas, financeiras e operacionais – com a correspondente alocação de recursos e alicerçado numa base técnica e científica, envolvendo os vários agentes e as instituições académicas, na sua implementação.  

Na legislatura anterior e na que está em curso, o caminho escolhido para a ação governativa tem sido marcado por uma alteração parcial do modelo sistémico existente. 

Mais importante do que insistir na histeria legislativa que tem imperado no sistema de proteção civil, impõe-se que a decisão política se foque em alguns objetivos específicos, de natureza prioritária, em particular no patamar municipal, uma vez que é no patamar municipal que reside a principal debilidade do sistema de proteção civil no nosso país. 

Sem se fortalecer a base do sistema, será uma missão inglória pretender melhorar a eficiência de todo o seu restante “edifício” institucional. Esta é uma evidência reconhecida por muitos, embora ainda com insuficientes consequências práticas.

Deste modo, uma estratégia política consistente alicerçada num conceito estratégico de proteção civil, implica necessariamente:

  1. Estruturar os serviços municipais de proteção civil e dotá-los de recursos humanos qualificados; 
  2. Promover estratégias de envolvimento da população na construção da sua resiliência; 
  3. Definir uma consistente informação publica sobre os perigos identificados no território; 
  4. Dinamizar uma reorganização do setor operacional dos Bombeiros, bem definir um quadro de financiamento dos corpos de bombeiros, enquanto pilares do sistema de proteção civil; 
  5. Instituir medidas de valorização e dignificação dos profissionais ao serviço do sistema, nomeadamente os Bombeiros e os Técnicos de Proteção Civil; 
  6. Apoio ao investimento em investigação aplicada no domínio dos riscos, entre outros.

Estes são alguns domínios instrumentais que não dependem de mais ou menos legislação, mas apenas das escolhas políticas, quanto às prioridades de ação que garantam e potenciem a proteção das comunidades e o seu qualificado desenvolvimento.

É imperativo promover uma sólida reflexão sobre o sistema de proteção civil que o país possui, identificar as suas vulnerabilidades e definir um plano de ação a médio prazo, neste domínio.

Urge dotar o sistema dos necessários meios de concretização dos seus desígnios, nomeadamente meios humanos qualificados, dignificados e motivados.

Este objetivo só poderá ser atingido, anulando gradualmente o empirismo na produção de decisões, substituindo-o pelo conhecimento sustentado, devidamente articulado com a experiência, garantindo a participação ativa de todos os intervenientes, através dos seus legítimos representantes.

Importa ainda tipificar lideranças, através da definição de perfis ajustados ao grau de exigência dos correspondentes cargos, estabilizando as pessoas no exercício da sua missão, através da avaliação dos seus desempenhos, como único e exclusivo fator para a sua nomeação ou não renovação dos cargos em causa.  

Concluo na convicção firme e empenhada de que é tempo de emancipar a proteção civil no contexto das políticas públicas de segurança interna, dando-lhe a devida atenção, envolvendo os órgãos de soberania, as autarquias e os cidadãos, estes enquanto destinatários e atores num sistema que visa reforçar a sua segurança,  através de estruturas sólidas do Estado, orientadas por conceitos doutrinários coerentes e servidas por politicas responsáveis, esclarecidas e executadas com competência e coerência sistémica, por governantes exclusivamente inspirados pelo interesse público e pela salvaguarda da segurança de Portugal e dos portugueses.

 

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