O Euro é sustentado por uma densa e complexa teia de regras draconianas, castradoras do progresso social, da soberania e da democracia. Regras cujo cumprimento é imposto sob constantes chantagens e ameaças de sanções.
A primeira grande reforma da governação económica da Zona Euro dá-se no final da primeira década de circulação da moeda única. À época, três países - Grécia, Portugal e Chipre - estavam sob intervenção da Troika.
Nessa reforma, e apontando o dedo aos Estados-membros, as instituições europeias instituíam o Semestre Europeu, o Six-Pack e Two-Pack e o Tratado Orçamental.
À semelhança do que existia na Alemanha, os países signatários do Tratado Orçamental e que ultrapassassem o limiar da dívida de 60% do PIB teriam que ter um défice estrutural inferior ou igual a 0,5% do PIB. À semelhança do que acontecia anos antes com a introdução do Pacto de Estabilidade e Crescimento, era criado mais um Pacto feito à medida e à vontade da Alemanha. Os países submissos assinaram-no , perante a explicação elucidativa de que era preciso algo que assegurasse que, mesmo que mudassem os governos, não mudassem as políticas. Para assegurar que o mesmo era, de facto, aplicado, foram criadas redundâncias, com elementos do Tratado Orçamental a serem incluídos na legislação relativa à Governação Económica.
E assim se abria uma nova vaga de interferência política, de limitação da soberania, de aprofundamento do federalismo, de institucionalização do neoliberalismo e de desrespeito pela democracia. Não havia alternativa, diziam. Era necessário controlar e punir de forma mais veemente os países ditos “irresponsáveis” e introduzir rigor e contenção a quem “viveu acima das suas possibilidades”.
No início da segunda década do Euro, os trabalhadores e o povo perdiam cada vez mais poder de compra e direitos. As condições de vida endureciam e as economias da periferia do Euro estavam cada vez mais debilitadas. A esperança de que um futuro melhor era possível, porém, dava gás a lutas que impediriam maior perda de direitos e de rendimentos.
Mas a máquina de propaganda da UE estava bem oleada e a moeda única não poderia falhar. Tirando partido da crise e apontando o dedo aos Estados-membros e a um processo de integração incompleto — nomeadamente no que diz respeito ao euro, ao setor bancário e financeiro — as instituições europeias procuram ir mais longe no processo de integração capitalista.
Era preciso fazer aquilo que ainda estava por fazer. Diziam no Relatório dos Cinco Presidentes e no Livro Branco sobre o Futuro da Europa. Sem uma análise séria, honesta ou crítica às causas profundas e às soluções estruturais da crise, apresentam apenas uma fuga para a frente: a construção de uma União Europeia de Estados submissos e amputados na sua capacidade de dispor livremente dos seus recursos para assim garantir o domínio absoluto do grande capital sobre os povos.
De lá saíam propostas que mais não pretendiam do que a transferência de partes fundamentais das soberanias dos países-membros para instituições supranacionais diretamente controladas pelas multinacionais europeias e pelas suas principais potências. Destaco o esvaziamento do sentido das eleições e da soberania dos povos em decidir democrática e livremente sobre o seu futuro; a criação de conselhos de competitividade para intervir na política económica e na fixação dos salários; o reforço dos procedimentos que desencadeiam as sanções no âmbito do quadro de governação macroeconómica da UE; a limitação da atribuição de fundos estruturais aos Estados-Membros ao cumprimento das recomendações específicas por país e da implementação de reformas estruturais (neoliberais); a criação da função de estabilização macroeconómica comum; ou a criação de um regime europeu de resseguro de desemprego.... Umas propostas viriam a avançar, outras não. Todavia, a teia das regras orçamentais mantinha-se.
Entretanto, a crise não abranda. Perante a evidência dos efeitos sociais nefastos do Euro e, sobretudo, perante o alargamento do descontentamento e da disposição para a luta por parte dos que os sofrem na pele, é tirado da cartola o Pilar Europeu dos Direitos Sociais. Um pilar que fugindo à identificação das causas e a propostas concretas de efectivo progresso omite e não questiona a responsabilidade que a União Europeia e as suas políticas têm tido na degradação das condições laborais e sociais, no aumento da exploração, do desemprego e da pobreza, na redução de salários. Um Pilar que trouxe outra cor à teia do Euro e da governação económica da UE, mas que manteve a chantagem e os condicionalismos que emanam do Semestre Europeu. Um Pilar que em nada influenciou as draconianas regras do défice e da dívida e que, nas condições atualmente prevalecentes, antes conduzirá ao efeito perverso de nivelar por baixo condições de vida e de trabalho na Europa.
Passaram-se 20 anos desde a entrada em circulação do Euro...
A crise antecipada pela COVID-19 tornou evidente que o colete de forças da governação económica da UE não serve para responder às necessidades conjunturais e estruturais de crescimento e desenvolvimento. Por isso, o Pacto de Estabilidade foi suspenso, outra vez suspenso e novamente suspenso. Por isso, e porque países como a Alemanha, Itália e França estão também agora numa situação delicada, foi iniciado um processo de reforma das regras orçamentais.
Em Julho, deverá ser anunciada a tão esperada proposta de reforma. Sobre essa proposta pouco se sabe. A ideia seria simplificar a teia de regras e simular preocupação com o envolvimento dos órgãos soberanos dos Estados-membros na definição da sua própria política orçamental.
Do debate público que se tem desenvolvido surgem propostas como a introdução de uma regra de ouro para o investimento público, o abandono do conceito de défice estrutural, o aumento do teto para a dívida, a abordagem simétrica dos excedentes e dos défices no âmbito do Procedimento de Desequilíbrios Macroeconómicos, o tratamento mais favorável de despesas “verdes” ou o abandono das regras orçamentais em prol da criação de padrões orçamentais (se é que há alguma diferença) e a atribuição da avaliação do cumprimento desses padrões a uma entidade judiciária, o Tribunal de Justiça da União Europeia, a existência de um objetivo de rácio da dívida e uma trajetória descendente de ajustamento por país em direção a esse objetivo e a existência de uma regra relativa à despesa para os países com uma dívida superior ao objetivo do rácio da dívida, ou a introdução de uma cláusula de derrogação de âmbito geral baseada num parecer que tenha como fundamento uma análise e aconselhamento independentes.
Alguns Estados-Membros têm defendido estratégias de redução da dívida e do défice definidas consoante o contexto de cada país, por forma a que sejam compatíveis com o crescimento e a criação de emprego. Defendem ainda uma regra de despesa “simples” à qual esteja associada a cláusulas de derrogação no âmbito de acontecimentos “extraordinários” não controlados pelos governos. Sobre a exclusão do investimento público do cálculo dos limites do défice, os documentos conhecidos até agora são omissos. Sobre o sistema de sanções, afirma-se que a Comissão e o Conselho deverão continuar a ter poderes bem definidos para assegurar o cumprimento das futuras regras.
Daquilo que temos ouvido, por vontade das instituições da UE e de quem nelas manda, as sanções e o diktat serão para continuar. Também continuará o esvaziamento da democracia e da soberania.
É que às vezes é preciso que alguma coisa mude para que tudo fique na mesma.