Intervenção de João Carlos Graça , Economista e Professor Universitário, Sessão Pública «Do pelotão da frente à cauda da Europa: Mitos e realidades - Soluções para um Portugal com futuro»

Algumas notas sobre Educação e não só

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1. Convidado amavelmente pelo João Ferreira para dizer umas palavras sobre educação num encontro promovido pelo PCP, devo antes de mais deixar pública uma declaração que é simultaneamente de interesse (em sentido amplo) e de, pelo menos, potencial viés. É que sou professor: há já mais de 4 décadas; e há mais de 3 décadas e meia sou docente do ensino universitário. E, para além disso, apesar de não ser militante do PCP, sou também votante habitual (embora nem sempre, acrescente-se) de formações eleitorais integradas pelo PCP. Os chamados “comentadores políticos” habitualmente não fazem declarações destas, em parte por causa da convicção, muito enraizada no “grande público”, de que o chamado “espectador imparcial” seria aquele que estaria nas condições ideais para dizer a verdade; e tentando obviamente ocupar eles mesmos o lugar imaginário do tal “espectador imparcial”, insuflando assim uma maior respeitabilidade, ou pelo menos uma aparência disso, às suas opiniões. 

Não sei (francamente, não sei mesmo…) se a tal posição de espectador imparcial é alcançável por alguém. Mas entendo que, pelo menos como “norma reguladora”, a ideia é relevante; e, em princípio, merecedora de ser defendida. O que se passa é que existe um abuso recorrente dessa posição. Vivemos num ambiente de impostura generalizadíssima e ininterrupta, a um nível tal que, para não contribuir para o agravamento da situação, me parece importante começar pelas declarações de interesse (pelo menos os interesses conscientes) de cada um, como base para conversas onde se procure ser construtivo, visando obter algo que possa ter pretensões, se não duma imparcialidade absoluta, pelo menos duma parcialidade e de um viés menores, porque os vieses e as limitações de cada um podem, através da conversa, ser corrigidos pelos dos demais, e os interesses de cada um ser pelos interesses dos outros (pelo menos parcialmente) compensados.

Estas questões relativas a vieses, interesses, ideologias, etc. interpelam-me há muito, dado que, para além de professor e investigador, sou professor e investigador das chamadas “ciências sociais”: trate-se oficialmente de sociologia, de economia ou de outro qualquer rótulo disciplinar. O que será legítimo transportar, para a atividade docente, de juízos de valor? E será possível produzir um discurso docente e (para além mesmo deste) um discurso científico, como diriam os outros, “wertfrei”, “value-free”, isto é, livre de carga e de implicações valorativas? Bom, a ciência, segundo se me afigura, não pode ser totalmente livre de valores, desde logo porque corresponde a uma atividade humana, que impõe esforço, nalguns casos obviamente “desutilidade”, pelo que, para a fazer “valer a pena”, algum sentimento, alguma paixão é incontornavelmente necessária como “combustível” para a ação; e essa tal paixão é em boa medida alimentada por convicções e por valores. Há oficialmente, no terreno académico, um grande valor que se supõe ser coletivo e superiormente orientador da atividade daquela configuração social: a obtenção da verdade. Ou seja, há a persuasão muito generalizada de que existe tal coisa como “a verdade” factual, suscetível de ser obtida ou detetada através da investigação; e de que o “jogo” da tal obtenção é o jogo de todos, o processo e o esforço coletivo em que todos estão (ou devem estar) empenhados. Com diferenças de opinião pelo percurso, como é evidente. Algumas das quais fundadas no simples erro involuntário; outras, nos interesses (inclusive “interesses” ideológico-doutrinários) e nos vieses de cada um. Mas, ainda assim, com “regras de trânsito” suficientemente claras para poderem ser voluntariamente aceites e habitualmente obedecidas, para que do esforço coletivo dos académicos resulte realmente um grau adicional de conhecimento, de obtenção da tal verdade factual, que é norma imprescindível à organização e ao funcionamento da academia.

É inegável que esta ideia de “verdade” enquanto norma organizadora da vida académica tem, ela mesma, sido alvo de variados ataques e objeto de muita discussão, reconheço-o. Por exemplo, alguns têm, com base em assunções filosoficamente muito elaboradas, proposto a necessidade da sua substituição pela simples ideia de plausibilidade coletivamente reconhecida e, nesse sentido, sociológica e pragmaticamente caucionada. Ou seja, tratar-se-ia de reconhecer que o que procuramos não é realmente a verdade, mas aquilo que disso nos parece, em determinado momento, ter a forma. Buscaríamos, em suma, não o verdadeiro, mas o que tem condições para ser socialmente caucionado como tal. Admito que isto dá discussões interessantíssimas, mas parece-me que as pessoas que argumentam desta forma não abandonam a luta pela verdade, antes a levam (dialética e contraditoriamente, se quiserem) mais alto e mais longe, porque é realente em nome dum princípio de exposição/denúncia que procedem, tal como é em nome dum princípio de exposição/denúncia que procedem, por exemplo, os chamados “whistleblowers”, que levam mais alto e mais longe a sua missão como jornalistas e como cidadãos opondo-se a um consenso momentâneo, ao qual voluntariamente sacodem, e a um grupo de poderes a que desafiam (e, por vezes, com que custos!...), desmascarando como imposturas assunções que até então tinham sido consideradas como verdades pragmaticamente caucionadas, mas aos tais jornalistas campeões-da-verdade se revelam como imposturas danosíssimas, que se impõe categoricamente denunciar como tal. Da noção de verdade, enquanto norma reguladora, nunca nos vemos, portanto, livres. E, se calhar, ainda bem que assim é… 

Obviamente, os critérios para ajuizar a conduta dos académicos não são os mesmos que os que oficialmente orientam a dos jornalistas. Dos académicos espera-se menos imediatismo, por exemplo. E, por isso, habitualmente dá-se-lhes mais tempo para as suas tarefas do que aos jornalistas. Se quiserem, a variedade de jornalismo com a qual os académicos têm maior afinidade corresponde ao chamado “jornalismo de investigação” – o qual, por outro lado, também é aproximável ao trabalho do detetive... Em todo o caso, de uns e de outros (académicos e jornalistas) se espera que investiguem, que descubram e que exponham a tal verdade – embora com critérios de relevância que, sim, são diversos dum caso para o outro. De uns e de outros se espera não só que descubram, mas que digam a verdade: quer aos poderes constituídos (económicos, políticos, militares, mas também académicos, jornalísticos…), quer mais amplamente ao público. Mesmo que a tal verdade seja inconveniente ou desagradável aos tais poderes constituídos. De uns e de outros se tem de aceitar que tenham vieses e preconceitos, claro – porque isso é inevitável, faz mesmo parte da condição humana. Mas de uns e de outros se espera que o valor supremo da obtenção da verdade sobrepuje tudo o mais. A obtenção da verdade, acrescente-se, e também a sua exposição, porque a transparência ou publicidade são igualmente, numa democracia, valores de primeiríssimo plano.

2. Com isto convivem, é evidente, outros valores. Por exemplo, a formação de cidadãos dotados de um espírito crítico, que a instrução (pelo menos a pública) a todos os níveis deve promover; e o jornalismo deve aliás, à sua maneira, contribuir também para manter vivo e aguçado, ao longo das trajetórias de vida dos cidadãos. E, com isso, as coisas inegavelmente complexificam-se, porque o espírito crítico e a livre indagação obrigam também à disciplina, sobretudo autodisciplina, correspondente à aceitação, mesmo que provisória, das normas ditadas pela indagação científica. Ora bem, estando esta outra, pelo seu lado, condicionada pela interferência de interesses patentemente não-científicos, nalguns casos mesmo grosseiramente anticientíficos, como proceder exatamente? Ou, se preferirem, e de forma mais singela: que fazer? Nalguns casos, tudo isto tem uma relevância imediata e enorme. Pensemos, por exemplo, na COVID e no leque de reações que ela suscitou. Indiferença e “business as usual” por parte de poderes políticos interessados sobretudo em não lesar o ritmo dos negócios? Aproveitamento político, para efeitos de controle ainda mais perfeito das opiniões públicas, às quais se trataria de induzir à aceitação mais ou menos acéfala do chamado “great reset”? Mas o aproveitamento principal terá consistido realmente nisso?

Adentro da enorme variabilidade de reações políticas que o tema COVID suscitou, registemos aqui: a direita “libertária”, que em muitos países viu na ingerência estatal (confinamentos, obrigatoriedade das máscaras, idem das vacinas) uma violação grave das liberdades individuais supostamente fundamentais; a direita “liberal” (ou “liberista”), que nisto tudo viu sobretudo uma tremenda lesão ao negócio que devia, por isso mesmo, ser ignorada tão cedo quanto possível; a esquerda a que me atrevo a designar como “libertária-conspirativa”, que ecoou os argumentos da sua imagem invertida à direita, com a nuance porém de que se trataria aqui de obter o controle das massas inocentes pelas elites perversas; o “grande centrão” que foi procedendo em função em parte dos dados médicos, em parte das sondagens e da maior ou menor popularidade de cada uma das trajetórias políticas possíveis. Tudo isso foi adicionalmente azedado pelo ambiente das relações internacionais, com atitudes absolutamente inadmissíveis por parte designadamente dos EUA e da “União Europeia”, que foram das acusações ligeiras mas violentíssimas e ultrajantes (e sempre improvadas) dos EUA à China quanto à génese da doença, à rejeição sobranceira da ajuda pelos países ocidentais, sempre que aquela fosse russa, chinesa ou cubana, até à manutenção de sanções já antes criminosas (e com a COVID, claro, muito mais ainda), lançadas sobre países oficialmente considerados “maus” (“rogue states”), passando pela recusa consistente do levantamento das patentes, mesmo tratando-se estritamente de auxiliar as populações de países mais pobres. No fim de tudo, ainda tivemos que levar com as suspeições gravíssimas, suscitadas pelo facto de a chamada “União Europeia” não somente não ajudar nenhum dos estados seus membros, não somente interferir na vida deles, se quisessem ou pensassem (ou sequer sonhassem) aceitar ajuda russa, chinesa ou cubana, como mais duma vez lembrou o sinistro “comissário” Josep Borrell – mas estar enfim, verdadeira cereja em cima do bolo, comprovadamente na cama (quase sem metáfora alguma) com as grandes farmacêuticas, em particular a Pfizer, designadamente através da relações conjugais ou para-conjugais da não menos sinistra “comissária” Ursula von der Leyen.

É neste ambiente de enorme descrédito – de justificado descrédito, acrescente-se - que temos de proceder, por um lado sem deixar de expor as misérias (políticas e morais) destas condutas, mas evitando por outro lado contribuir para aumentar o descrédito público generalizado: quer relativamente a aspetos da atuação política que em princípio seriam merecedores de consensos muito amplos, como acontece com tudo o que envolva questões sanitárias; quer relativamente à ciência em geral, e em particular a tudo o que se liga com a medicina e a atividade farmacêutica. Que dizer disto tudo? Que o capitalismo lesa a ciência ao mesmo tempo que a promove, pelas inflexões danosas que impõe ao seu curso? Claro que sim. Mas também, indiscutivelmente, pelo descrédito que de forma direta ou indireta faz recair sobre ela, as populações sendo induzidas – e com plena razoabilidade, sublinhe-se – a duvidar da boa-fé das deliberações políticas, condicionadas que ficam estas pelas pressões dos grandes interesses económicos instalados, muito mais do que pelo propósito de consecução do interesse geral. E tudo, registemo-lo, em ambiente pelo menos formalmente democrático. Como é isto possível? Como é viável aviltar a este ponto o funcionamento das instituições democráticas, sem que as elites venham a sofrer com esse aviltamento? Aliás, sublinhemos que bem pelo contrário. Durante o período dos confinamentos foi o estado democrático a assegurar o funcionamento da economia, como de resto era imperioso que acontecesse. Mas note-se como foi rapidamente erradicado da memória do grande público – sobretudo através dos “mass media” predominantemente privatizados e pela prática dum jornalismo descaradamente serventuário e manipulador - esse facto económico tão importante! Se ainda há pouco tempo quase toda a gente clamava por “mais estado” como resposta aos problemas, rapidamente fomos todos induzidos a esquecer isso, regressando-se à exaltação constante do privado que é inegavelmente uma das características do nosso panorama mediático. E em Portugal, no fim do período COVID e da maioria da chamada “geringonça”, quem parece ter ganho com tudo isto? A esquerda? Decerto que não, arrasados que foram pelo medo os eleitorados da CDU e do Bloco. À custa destes cresceu primeiro o PS do “costismo”… e hoje em dia esse movimento geral continua, com transferências do PS para o PSD e os demagogos à direita deste: seja a direita “liberista” da Iniciativa Liberal, seja a direita “étnica” do Chega.

3. Mas regressemos a questões mais estritamente limitadas à academia. Quanto a esta, alguns aspetos preocupantes são aqui merecedores de destaque. Para além da acima aludida busca da verdade, e da promoção do espírito crítico (que é, de resto, condição quer da investigação científica, quer da vivência plenamente democrática), é usualmente e mesmo oficialmente atribuída entre nós ao ensino superior a tarefa de promoção da prosperidade material e do crescimento económico. Parece-me que é, pelo menos em parte, justo que assim seja. A academia deve formar cidadãos e indivíduos capazes de almejar a sua “cultura integral”, para utilizar a expressão de Bento Caraça? Sim, sem dúvida. Mas não podemos esquecer que também deve, para além disso, promover a riqueza material da sociedade, que é condição necessária de tudo o mais. Quanto a isso, pode haver conflitos e tensões, os quais devem ser sanados adentro dum espírito de compromisso, porque se trata de conflitos e tensões que existiriam mesmo numa sociedade muito melhor do que a nossa; mesmo que Portugal fosse, por hipótese, um país socialista. Por exemplo: devemos propiciar mais a formação de engenheiros? Ou de licenciados da chamada área das humanísticas e das ciências sociais? São questões legítimas, que creio deverem ser dirimidas no âmbito do tal compromisso entre “cultura integral do indivíduo”, de um lado, e sua formação-especialização profissional, do outro. Em suma: nem só filósofos e historiadores, num extremo; nem só engenheiros químicos e informáticos, no outro.

Entre os dois objetivos não existe, porém, fundamentalmente uma oposição (ou um “tradeoff”, uma disjunção exclusiva), mas uma conjunção e um reforço recíproco. Num prazo mais dilatado, a formação cultural integral propicia e potencia as capacidades dos cidadãos também do ponto de vista “técnico-profissional”. Mais aulas de história e de filosofia na sua infância e juventude melhoram as capacidades profissionais dos engenheiros – também dos engenheiros - no seu período de vida adulta. Produzem, como diz o jargão dos economistas, enormes “externalidades positivas”, as quais, porém, tendem a ser erodidas no caso de o sistema de ensino ser deixado entregue à chamada lógica “do mercado”, isto é, à lógica capitalista. E, todavia, qualquer sistema de ensino num país capitalista sofre permanentemente esta pressão no sentido de se “tornar útil”, no sentido de se poder “aplicar” a algo: não somente induzir o aumento da produtividade do sistema económico no seu conjunto, mas cada vez mais, hoje em dia, ser “produtivo” no mais imediato e circunscrito dos sentidos: o de ocorrer no âmbito duma “parceria público-privada”, dum qualquer convênio estabelecido entre uma escola, o mais das vezes pública, e um grupo empresarial, geralmente privado.

As capacidades culturais de fundo dos cidadãos eram, mesmo na experiência política limitada que foi o chamado “socialismo real”, designadamente na Europa de Leste, muito maiores do que em países ocidentais de níveis próximos de desenvolvimento económico. Posteriormente à chamada “transição para o mercado”, como se sabe, essas capacidades foram largamente lesadas. Mas ainda assim alguma coisa delas sobrevive, da qual o capitalismo se continua aliás a alimentar e aproveitar hoje-em-dia, predominantemente sem o reconhecer, e sem que sejam realizados os investimentos de fundo, não imediatamente rentáveis, mas necessários à manutenção da produtividade global do sistema. É ver, por contraste, como a educação pública foi destruída, reduzida ao mínimo dos mínimos, ou mesmo nunca exatamente promovida, num país como os EUA, que através de vários dispositivos mantém ainda uma dominação económica global, se bem que vastamente contestada. Quando existe excelência, neste outro contexto social, é visando a apropriação imediata, mirando o aumento da produtividade adentro daquilo a que Eisenhower chamou “complexo militar-industrial”, e que na verdade veio em tempos mais recentes a ser ampliado para o que o ex-agente da CIA Ray McGovern designou como MICIIMAT, ou complexo “military-industrial-congressional-intelligence-media-academia-think tank”. Mais amplamente, porém, em capitalismo os esforços com instrução, mesmo que almejando a estrita produtividade, tendem a desembocar numa situação que a teoria dos jogos identifica como “dilema do prisioneiro”: embora fosse vantajoso aos diversos agentes cooperar num esforço coletivo, cada um deles tende a esperar que sejam os demais a realizar o dito esforço ou investimento, limitando-se a recolher os proveitos do mesmo… pelo que a disponibilidade para levar a cabo empreendimentos de fôlego, e com retorno incerto e apenas a prazo muito longo, é nula ou quase nula.

4. A questão do imediatismo, e da tendencial incapacidade das sociedades capitalistas para lhe resistir, é um vetor absolutamente crucial na avaliação da funcionalidade e/ou defensabilidade de um qualquer sistema de ensino. A título de exemplo, em Portugal, se o 25 de Abril de 1974 e o seu legado (aliás em parte vertido no texto constitucional) apontaram genericamente no sentido da formação integral dos indivíduos, consubstanciada por exemplo no aumento da instrução pública universal, gratuita e obrigatória, já a conduta das várias maiorias e dos vários governos (quer os de “centro-esquerda” quer os de “centro-direita”) tem apontado sobretudo para a ênfase na importância da ligação direta à produtividade, aferida por critérios estritamente mercantis, e nas ligações à atividade económica privada. Esta trajetória, porém, tem predominantemente desembocado num impasse, cujas razões parecem remeter sobretudo para as dinâmicas associadas à integração europeia. De facto, as elites políticas portuguesas aderiram por completo, aliás de forma completamente acrítica, aos pressupostos da chamada “Estratégia de Lisboa”, a qual postulou que, havendo um esforço crescente dos vários países na chamada “I&D” (“investigação e desenvolvimento”), o que evidentemente tem a ver com despesas de educação, mas não só, deveriam os ditos países prosperar mais rapidamente. E, investindo Portugal mais intensamente em “I&D”, deveria isso vir a expressar-se, em particular, numa trajetória do PIB português correspondendo a uma convergência quer com os países mais ricos da UE, que com a média desta. 

Ora bem, esta aposta “desenvolvimentista”, relativamente à qual se deve sublinhar que foi simultaneamente muito limitada e muito imediatista quanto às expectativas associadas, saldou-se por um fracasso que é necessário ser muito piedoso para não qualificar como flagrante. Não apenas a economia portuguesa não convergiu com a média da UE, como dela se afastou neste período consistentemente, não decerto por causa da “estratégia de Lisboa” em sentido estrito, mas porque esta supunha a confiança na tendência para o mercado “espontaneamente” produzir a convergência dos europeus mais pobres com os mais ricos. Pelo contrário, tendo esta aposta coexistido temporalmente com o processo de integração monetária que produziu o Euro, a economia portuguesa ficou impossibilitada de proceder a desvalorizações cambiais para poder competir com estrangeiros e, para além disso e muito mais amplamente ainda, foram os dirigentes políticos portugueses induzidos a deixar de intervir de forma deliberada, em sentido propriamente político, no decurso dos acontecimentos decorrendo na esfera económica. As restrições orçamentais sem fim (e sem outro propósito que não o fetiche neurótico do combate aos défices orçamentais) e o “rule of law” europeu passaram a ser as verdadeiras vacas sagradas contra as quais não poderia nada a soberania democrática de qualquer nação europeia; e em particular nada poderia a de Portugal. Assim, apesar de continuarmos constitucionalmente a ser uma república soberana assente na vontade popular da nação portuguesa, passámos de facto a ser uma mera região periférica, e cada vez mais periférica, duma “União Europeia” cuja estrutura de todo não é democrática, que visa muito conscientemente garantir o predomínio da lógica dos “mercados” sobre a da vontade democrática das nações – e que, por isso, produz desigualdades crescentes, inclusive territorialmente. E, em particular, produziu um novíssimo ciclo português de subdesenvolvimento, como aquele em que estamos profundamente atolados já desde o princípio deste século. 

No contexto duma aposta em instrução e em investigação que foi, apesar de tudo, parcialmente prosseguida, isso significou desde logo gerações mais novas consistentemente mais instruídas, mas com desemprego sempre muito mais provável, com emprego sempre mais precário e quase sempre menos bem pago; e significou também, por isso mesmo, tendência para o “brain drain”, o êxodo consistente de mão-de-obra qualificada. Do esforço português com mais instrução e mais “I&D” ficam a beneficiar, portanto, sobretudo os sistemas económicos de outros países, enquanto Portugal tende pelo seu lado a vegetar na nova dependência do turismo e da especulação imobiliária. Há qualquer coisa de inegavelmente paradoxal nesta evolução, registemo-lo aqui. Ao mesmo tempo que se intensifica o viés “economicista” do esforço das políticas públicas em instrução e em investigação, este esforço é impedido de produzir resultados económicos palpavelmente positivos: não por deficiência ou culpa do próprio esforço, notemo-lo; mas sobretudo por causa da camisa-de-força em que o país foi ao mesmo tempo induzido a meter-se, via integração europeia, com tudo o que esta significou, em particular de culto do “mercado”, de impedimento consciente da possível intervenção do estado nacional enquanto estratega económico (completo tabu, verdadeiro “Monstrengo” económico contra o qual toda a filosofia da “construção europeia” foi induzida a eriçar-se alergicamente de imediato e por completo); e também de desnacionalização das mentalidades, em particular, registemo-lo, pelo uso e pelo abuso do inglês.

5. Permita-se-me que destaque, quanto a isto, algumas inovações do quadro jurídico em se move o ensino em Portugal; e em particular o ensino universitário. Nos tempos do ministro Mariano Gago - que entre nós tanto contribuiu conscientemente, entre outras coisas, para o desvio do financiamento público das universidades para a FCT (Fundação para a Ciência e Tecnologia), e que foi um proponente destacado e um verdadeiro paragão das noções de ligação estreita da universidade à investigação, e de ambas à atividade económica, e também um destacado campeão da ideia de “internacionalização” acelerada da academia portuguesa, supostamente como veículo para a rápida modernização desta - foi mudado de forma substancial o quadro jurídico em que a Universidade e os universitários portugueses se moviam. A título de exemplos: a) foi aberta a possibilidade de as universidades públicas se transformarem (e elas foram realmente induzidas de várias formas a isso mesmo) em universidades ditas “fundacionais”, mais propensas a ligações várias e multímodas “ao privado”; b) ficou consagrada através do RJIES a figura dos “trustees” (escrito assim, em inglês, num diploma legal da república portuguesa), ou seja, dos supostos representantes da “sociedade civil”, sobretudo dos interesses económicos e empresariais, que assim ficaram reconhecida e oficialmente com uma palavra importante a dizer nos assuntos da política interna de cada uma das instituições universitárias portuguesas, mesmo das que permaneceram públicas; c) foi encurtada a carreira da docência universitária, a qual deixou de incluir os antigos assistentes, que antes tinham o direito de ser contratados como professores auxiliares se e quando fizessem o doutoramento, começando a carreira agora apenas depois deste grau obtido e já com a posição de professor auxiliar, à qual foi entretanto retirada a possibilidade de obtenção da “nomeação definitiva”, que agora passou a ser designada oficialmente no ECDU como “tenure” (de novo, escrito assim, em inglês, num diploma legal da república portuguesa…) e ficou cuidadosamente limitada aos professores associados e/ou catedráticos. Entretanto, apesar da inegável multiplicação do número de doutorados, continua a haver muita docência que nas universidades portuguesas é garantida por não-doutorados: bolseiros, assistentes convidados, etc., mas tendo todo esse pessoal perdido agora o direito a um mínimo de garantias de carreira, desde logo porque foi formalmente colocado de fora desta.

De um total de 3 concursos e 4 provas antes necessários ao cumprimento de todo o antigo “cursus honorum” universitário (concurso de entrada, como assistente estagiário, concursos para associado e para catedrático, provas de mestrado e de doutoramento, pedido de nomeação definitiva, provas de agregação), passou-se a 3 concursos e 2 provas (concurso de entrada, como professor auxiliar, concursos para associado e para catedrático, pedido da “tenure” e provas de agregação). Em geral, a carreira foi assim modificada, fazendo diminuir a segurança do vínculo contratual dos docentes (o mesmo sendo válido, “mutatis mutandis”, na carreira dita da investigação); e foi enfraquecido o peso relativo das provas e aumentado o dos concursos, o que induz os docentes, “tudo o mais permanecendo igual”, a competir mais acentuadamente com os outros. A isto acresce o aumento oficial da importância das publicações (ou do “publishing”, como sói dizer-se), da publicação em revistas adentro do conjunto das publicações, e sobretudo da publicação em revistas indexadas internacionalmente – indexação em índices que são, note-se, propriedade de empresas comerciais, as quais ficam assim com uma enorme massa laboral muito qualificada disponível para trabalhar para elas de forma completamente gratuita: aliás pagando mesmo para ter artigos publicados, e até, por vezes, para ter artigos submetidos à simples apreciação por árbitros formalmente competentes, ignorantes de quem avaliam e vice-versa (“double-blind referees”), cuja escolha fica entretanto completamente entregue ao arbítrio dos diretórios das revistas.                            

A este panorama geral, já de si contendo inegavelmente vários elementos legitimamente suscitadores de preocupações, acresce ainda, quanto a vários aspetos, a inegável inclinação para a politização cada vez mais imediata do ambiente. Por exemplo, nos EUA, hoje-em-dia, quem na academia se manifesta de alguma forma contra Israel e as suas políticas fica imediatamente impedido de exercício da atividade docente universitária, seja via pressão do “board of trustees” ou doutra qualquer forma, mesmo com derrogação explícita da “tenure”. Imagine-se agora como é a vida de quem nem sequer tem esta… Num ambiente que permanece, ainda assim, significativamente diverso, entre nós e já hoje é praticamente impossível, por exemplo, publicar numa revista um texto cujo viés seja identificável como “antieuropeísta”. Uma verdadeira censura fática está já, pode dizer-se, instalada; embora com repercussões por enquanto menores do que as que ser “anti-Israel” acarreta nos EUA. Entretanto, se em Portugal a censura descarada se impôs já no terreno dos media no período da guerra da Ucrânia, em particular com o grotesco caso da proibição da cadeia pública russa “Russia Today”, uma cavaleiríssima reintrodução da censura quase 5 décadas depois do 25 de Abril, face à qual quase ninguém “de bem” nos nossos meios políticos ou mediáticos levantou sequer um dedo para proceder a um tímido protesto (decerto com medo de ser rotulado como “agente de Putin”…), desde logo via imposição da “União Europeia”, é claro, mas também por genuína inclinação “endógena”, e tendo em conta a tradição de servilismo (político, jornalístico, académico…) português face à chamada “UE”, e desta face aos EUA, reconheça-se que o panorama lusitano, que podemos considerar como já verdadeiramente aterrador no caso dos “mass media”, é pelo menos digno de suscitar inquietações e apreensões razoáveis no que diz respeito ao ambiente nos meios académicos…

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