Intervenção de Ricardo Cabral, Debate «20 anos de circulação do Euro: passado, presente e futuro»

Uma perspectiva sobre a história da criação do Banco Central Europeu e da definição da sua política monetária

Uma perspectiva sobre a história da criação do Banco Central Europeu e da definição da sua política monetária

Em resposta ao último episódio de estagflação nos EUA nos anos 70 – i.e., taxas de inflação elevadas acompanhadas por taxas de crescimento económico real anémicas –, a partir de agosto de 1979, a Reserva Federal dos EUA, sob a presidência de Paul Volcker, adotou uma política monetária restritiva de inspiração monetarista, deixando aumentar a taxa de juro de referência (“Federal Funds Rate”) muito significativamente, com a política monetária a dar prioridade ao combate à inflação, em prejuízo do emprego e do crescimento económico, não obstante o mandato (pelo menos) duplo dessa instituição. Após uma curta, mas profunda recessão, a taxa de inflação iniciou uma tendência de queda, mantendo-se a níveis baixos durante mais de três décadas (entre meados dos anos 80 e 2021). Esse episódio “Volcker”, que se traduziu na crença generalizada que através de política monetária restritiva tinha sido possível controlar a inflação – uma perceção, afigura-se, dado a dificuldade em provar uma relação de causalidade e os eventos tectónicos que ocorreram nas décadas subsequentes –, terá contribuído para alterar o consenso dominante em relação à política monetária em diversas dimensões como: a figura do banco central independente, a definição de um objetivo para a taxa inflação (“inflation targeting”) e a aceitação de uma “fórmula mágica” de implementação da política monetária, que ficou conhecida como a regra de Taylor. A partir do início dos anos 90 vários bancos centrais do mundo desenvolvido alteraram os estatutos dos respetivos bancos centrais tornando-os formalmente independentes (do poder político) e adotaram uma política monetária com mandato único em que é definido um objetivo ou meta para a taxa de inflação (do inglês, “inflation targeting”). Também surge um novo modelo macroeconómico dominante – a nova síntese neoclássica, designação cunhada por Goodfriend e King num artigo de 1997, que mais não é que o modelo macroeconómico dos novos keynesianos –, que é desenvolvido de forma a fundamentar teoricamente, ex-post, a regra de Taylor de mandato único ou duplo, “explicando” o aparente sucesso da política da Reserva Federal de Paul Volcker em reduzir a taxa de inflação nos anos 80. Também em Portugal data de outubro de 1990 a nova lei orgânica do Banco de Portugal que o torna formalmente independente e que impõe “limites” ao financiamento dos défices do Estado, marcando o abandono do financiamento direto do Tesouro pelo Banco de Portugal, “resultado” que deve ser interpretado como requisito definido pelas autoridades europeias que Portugal teria de cumprir no contexto do processo de adesão à moeda única que então se iniciou. Na União Europeia (primeiro designada Comunidade Económica Europeia e com o Tratado de Maastricht designada Comunidade Europeia), o marco alemão era uma moeda forte que se vinha a apreciar ao longo de décadas. E o Banco Central da Alemanha – o Bundesbank – era percebido como independente do poder político, dando prioridade ao combate à inflação, e credível no combate à inflação porque a Alemanha gozava de uma taxa de inflação baixa. Esta perceção era, afigura-se, fruto das circunstâncias. A indústria da Alemanha era muito competitiva internacionalmente e a Alemanha seguia uma política mercantilista que resultava em excedentes sistemáticos da balança corrente (note-se, muito inferiores aos atuais), resultando na apreciação do marco alemão e pressionando a taxa de inflação em baixa. Alguns episódios, como a recusa do Bundesbank em 1996 em alienar reservas de ouro na sequência de instruções do Ministro das Finanças da Alemanha, Theo Waigel, ou o aumento das taxas de juro de referência na sequência da reunificação da Alemanha, ou os avisos de presidentes do Bundesbank nos anos 70 e 90, Karl Blessing e Karl Otto Pöhl, aos riscos da criação do euro, salientando, como refere Viriato Soromenho Marques, “para a necessidade de ter uma união fiscal e orçamental, bem como um governo europeu com um orçamento razoável, para poder fazer transferências entre regiões mais ricas e mais pobres, antes de avançar para a moeda única”, reforçaram a perceção de independência do Bundesbank. Contudo, várias políticas monetárias adotadas pelo Bundesbank, como monetização de dívida federal da Alemanha em 1967, a intervenção no mercado cambial dólar-marco em 1971 e em 1973, e a dependência dessa instituição do Governo Federal da Alemanha – atente-se o processo de nomeação dos respetivos presidentes – pintam um quadro mais complexo e menos ortodoxo do que geralmente entendido. De salientar ainda que a mitologia da criação da moeda única, alegadamente exigência de Mitterrand como contrapartida pelo assentimento da França à reunificação alemã, não se afigura credível. A Alemanha, sujeita a pressões comerciais regulares dos EUA em resultado dos excedentes comerciais desta, e a indústria alemã, em particular, que enfrentava a concorrência séria da indústria italiana e que necessitava de maiores economias de escala para poder competir com os EUA e no futuro com a China, estava fortemente interessada na criação da moeda única que iria beneficiar, como beneficiou a sua economia. Contudo, por razões de estratégia negocial e de forma a impor diversas condições à condução da política monetária e às regras de “disciplina orçamental”, posicionou-se como sendo contra a moeda única e acedendo relutantemente à sua criação. Atente-se, por exemplo, o papel da Alemanha, nas alterações ao modelo de financiamento pelo banco central de Estados como o italiano ou português. E, alegadamente, no papel de altos responsáveis políticos europeus, no afastamento pontual de um ou outro técnicos e decisores nacionais de Itália que se opunham à moeda única ou na promoção de outros (nomeadamente, em Portugal) que lhe eram favoráveis. É neste contexto que nasce formalmente o Banco Central Europeu, a 1 de junho de 1998, seis meses antes do lançamento da moeda única a 1 de janeiro de 1999. Como é óbvio, com este contexto e narrativa, o Banco Central Europeu foi criado como o Banco Central mais independente do mundo, nas palavras de, por exemplo, Willem Buiter, e adotou a estratégia de política monetária dominante da era de mandato único e de um objetivo para a taxa de inflação. E pretendeu-se criar o Banco Central Europeu à imagem do Bundesbank na expectativa que o euro se afirmasse como uma moeda forte tal como o marco alemão. Para os estados-membros da Europa do Sul como Itália, Espanha e Portugal o objetivo seria que através do euro fosse possível reduzir a taxa de inflação desses países e deixar para trás as desvalorizações cambiais. De salientar ainda na definição da política monetária do BCE e na arquitetura do Eurosistema o papel de Otmar Issing, primeiro economista chefe do Banco Central Europeu, “pai” da política monetária do BCE, segundo Paul de Grauwe, bem como do antigo Comité Monetário, representado do lado português, entre outros, por Vitor Gaspar e António Borges. A preocupação desses arquitetos da política monetária foi assegurar que o euro não seria utilizado para promover transferências orçamentais entre estados-membros ricos e estados-membros pobres. E, em resultado, o financiamento monetário dos estados-membros foi desenhado para ocorrer somente através da intermediação do sistema bancário privado de cada estado-membro, primeiro, sem quaisquer exigências a nível da, entre aspas, “qualidade” da dívida pública dos estados-membros, mas a partir de novembro de 2005, com exigências de rating por quatro agências de rating privadas internacionais. Ou seja, seria o sector privado a impor a disciplina orçamental necessária aos estados-membros. Esses arquitetos da política monetária da Área do Euro acreditariam que esses “vigilantes do setor privado dos títulos de dívida pública” evitariam o despesismo público e o endividamento público excessivo. O contraste com a arquitetura monetária dos EUA, em que a Reserva Federal assegura, em última instância, o financiamento da dívida federal dos EUA, é muito significativo. Acresce que a tese dominante da altura, defendida nomeadamente por vários académicos internacionais conhecidos e também por Vítor Constâncio no seu discurso de tomada de posse como Governador do Banco de Portugal em 2000, era que, com a moeda única, os desequilíbrios da balança de pagamentos dos estados-membros deixariam de importar. Vítor Constâncio referindo-se à introdução da moeda única, afirma então: “Ouvem-se também preocupações com a balança de pagamentos com a ideia algo confusa de que poderia vir a perturbar o crescimento da economia.” Note-se que o euro, como é reconhecido por um número crescente de académicos e, inclusive, pelo antigo Governador do Banco Central da Holanda, promove transferências orçamentais por regulação, quasi-impostos anuais que são invisíveis, dos estados-membros internacionalmente menos competitivos para os estados-membros internacionalmente mais competitivos. Isto porque o euro é uma moeda sobrevalorizada para os primeiros, prejudicando o seu setor de bens transacionáveis internacionalmente, enquanto é uma moeda subvalorizada para os segundos, beneficiando-os. Por conseguinte, o euro acentua a divergência das economias dos estados-membros, não sendo por acaso que o período das duas últimas décadas foi o pior de toda a sua história económica conhecida, em termos de indicadores macroeconómicos como o PIB per capita, para países como Itália e Portugal. Esta resenha histórica descreve o contexto da definição da política monetária do BCE nas primeiras duas décadas da sua existência, que resumiria assim. Uma estratégia de política monetária assente numa tese baseada num único episódio histórico de combate a estagflação. E um desenho inovador e sem precedentes da política monetária, que se traduz em transferências orçamentais significativas entre estados-membros em função da política monetária adotada no momento. Uma consequência desse desenho e da falta de soberania monetária é despesa orçamental adicional em juros e riscos acrescidos para a sustentabilidade das dívidas públicas. Por último, de salientar que dada a arquitetura da Área do Euro, sem transferências orçamentais de relevo entre estados-membros ricos e pobres, o euro e a política monetária da Área do Euro foi sempre um pouco a arte do impossível, uma solução monetária de segunda ou terceira ordem face a dogmas políticos intransponíveis, note-se, ao contrário do que sugere o dictum de Bismarck para o qual a política seria a arte do possível. Por outro lado, a política monetária adotada sobretudo até 2012, sob a capa da ortodoxia e das regras de política monetária, foi sobretudo discricionária e arbitrária, nomeadamente porque as regras eram alteradas ao sabor do momento. Durante as primeiras duas décadas, o BCE viu os seus poderes expandirem-se significativamente e assistimos a episódios sui generis e lamentáveis, como as missivas secretas de Trichet ao Ministro das Finanças da Irlanda, ao Primeiro-Ministro italiano Berlusconi, aos bancos portugueses e ao Governo de Portugal e aos ultimatos à Grécia. Vimos o BCE participar em troikas que definiram condicionalidade estrita à política orçamental dos estados-membros. O BCE tornou-se no supervisor único bancário a partir de 2014, com enormes poderes, cometendo erros na condução da política bancária da Área do Euro, que impuseram enormes custos às economias periféricas e às respetivas finanças públicas. A presidência de Mario Draghi traduziu-se numa melhoria inquestionável da política monetária, que teve sobretudo entre 2012 e 2019, um papel fundamental no evitar da desintegração da Área do Euro, na promoção do crescimento económico da Área do Euro e ao contribuir de forma decisiva para a sustentabilidade das dívidas públicas dos estados-membros, sem que possamos ignorar episódios menos abonatórios, como o papel do BCE na crise grega ou na instabilidade no sector bancário da Europa do Sul nesse período. A atual crise geopolítica e energética representa novo teste sério a este sistema frágil da arte do impossível que é o euro e a sua política monetária, após a crise do subprime, a crise do euro e a crise pandémica. A Área do Euro enfrenta o risco de estagflação, com a taxa de inflação mensal homóloga a atingir 7,5% em abril. Destacados membros do Conselho do BCE reconhecem que a política monetária é impotente para conter os aumentos dos preços da energia, que explica o grosso do aumento da taxa de inflação ao crescer 38% em termos homólogos em abril, mas têm vindo a público defender que os salários não devem ser atualizados à taxa de inflação, para evitar os designados “efeitos de segunda ronda”, em que os aumentos dos salários contribuiriam por sua vez para um aumento da taxa de inflação. Nessa abordagem, adotam a perspetiva de Paul Volcker em 1979, que os americanos teriam já empobrecido e que a política monetária (bem como a orçamental) seria impotente face a esse alegado “facto”. Ao autor afigura-se que agora, como então, as autoridades monetárias cometem um erro de interpretação do enquadramento macroeconómico que resulta da alta dos preços da energia. Ao não promoverem ajustamentos nos salários que permitam preservar o poder de compra das famílias, ao choque da oferta no sector da energia a política monetária e a política orçamental adicionam um choque negativo na procura direcionada para a atividade económica na Área do Euro que se traduzirá no curto prazo em maiores reduções da capacidade produtiva e uma menor competitividade das economias da Área do Euro. Por outro lado, o congelamento das reservas em euros da Rússia, em que o BCE terá tido um papel determinante, não obstante a sua independência formal, coloca em causa o papel do euro como moeda de reserva internacional, porque se constata que o euro não representa uma verdadeira diversificação de risco face ao dólar. Essa sanção económica terá contribuído para a depreciação do euro nos últimos meses, que parece ter já reflexos na condução da política monetária. A previsível queda do euro abaixo da paridade com o dólar resultará numa política monetária mais restritiva com o propósito de evitar precisamente essa trajetória de depreciação face ao dólar. Enfim, o euro e a política monetária do BCE enfrentam mais uma crise e mais um teste na história da sua curta existência, sem que os seus problemas estruturais estejam verdadeiramente resolvidos. A ver vamos até quando…

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