Intervenção de Sandra Pereira, doutorada em Linguística e deputada do PCP no Parlamento Europeu, Conferência «Uma visão universal e progressista da História - A actualidade da Obra de José Saramago»

A defesa da soberania nacional e integração europeia, a partir das obras «Jangada de Pedra» e «História do Cerco de Lisboa»

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Boa tarde, camaradas e amigos!

É com muito gosto que participo nesta conferência sobre a obra de Saramago. Também no PÉ iremos assinalar, no próximo dia 16 de novembro,com uma exposição e um debate, o Centenário de José Saramago.

Um escritor universal, humanista e comunista cuja obra seria inevitavelmente diferente sem a visão do mundo que resulta dessa condição. E também um escritor profundamente português:

“Eu não tenho obrigação nenhuma de ser o mais patriota dos meus compatriotas, mas há uma coisa que me dá um certo gosto, uma certa satisfação, não direi vaidade ou orgulho, que são palavras excessivas: alguns livros meus, um ou dois, e a História do Cerco poderá vir a ser outro, terão levado lá fora, explicitamente digamos, uma imagem clara desta terra. Não se trata apenas do romancista que escreveu um grande livro, supondo que eu o teria escrito, que contasse uma história que pudesse ser daqui ou de qualquer outro lado. O que me dá gosto é que as minhas histórias são daqui, faço-as daqui porque quero que elas falem daqui. Assim - parece que é o que está a acontecer, e talvez o País ganhe alguma coisa com isso - os estrangeiros passam a ler uns livros em que se fala da gente concreta que nós somos.

No fundo, o que eu quero ser, que eu quero continuar a ser, é um escritor português, no sentido exacto que a palavra tem. Se os meus livros se tornam conhecidos lá fora, isso não me torna menos ligado aquilo que faço e aquilo que sou aqui. Gosto do que este País fez de mim: talvez seja isto que, no fundo, está nos meus romances.”.

E foi este escritor profundamente português, como o próprio se assume nesta entrevista dada ao Jornal de Letras em Abril de 1989, aquando da publicação da HCL, que contribuiu de forma inigualável para a afirmação da literatura portuguesa no mundo e para o reconhecimento do português como língua de referência importante na cultura mundial; o escritor para quem “o português é a mais bela língua do mundo” e que vê a língua como um elemento de afirmação nacional, representativo da cultura portuguesa e da sua identidade que a diversidade linguística só reforça; o escritor que, na sua obra, afirma a cultura nacional em todas as suas componentes, incluindo a linguística, como factor de resistência à hegemonia cultural e ao imperialismo cultural.

E isso revela-se na forma original como conta uma história, como usa a língua, a língua portuguesa, nas suas variedades, misturando discurso erudito com discurso popular. Este autor, os seus narradores e as suas personagens recorrem frequentemente a provérbios e a termos dialetais, elementos identitários da forma de ser e falar português, manifestando Saramago uma consciência linguística aguçada, consciência que se estende aos operários das palavras, dessa “poeira cósmica”. Ou não fosse a HCL também uma homenagem aos revisores, profissionais “dos mais mal pagos da orbe” (HCL). E nesse sentido, permitimo-nos também aqui fazer uma homenagem aos tradutores da obra saramaguiana, cujos desafios na tradução serão certamente abundantes, com português dialetal (JP: Oliveira cordovil, cordovesa ou cordovia p. 32…) e oral a conviver com português antigo, clássico e/ou Português padrão contemporâneo, com uma pontuação aparentemente estranha e que só quem domina a oralidade do Português consegue compreender. 

Para abordar a temática da soberania nacional e a integração europeia, parti de duas obras do Saramago: a História do Cerco de Lisboa e a Jangada de Pedra, publicadas na segunda metade da década de 80. Ambas partem de um contexto ou momento históricos que são alterados pelo autor, criando uma narrativa paralela em que o povo português assume as rédeas do seu destino. 

A HCL, publicada em 1989, conta a história de um revisor, Raimundo Silva, morador na Lisboa do final dos anos 80, que, ao rever um texto histórico sobre o cerco a Lisboa, em 1147, acrescenta um não (“terrível palavra é um NON”, já dizia o Pe. Antônio Vieira) e nega a ajuda dos Cruzados na conquista de Lisboa aos mouros: 

“é evidente que acabou de tomar uma decisão, e que má ela foi, com a mão firme segura a esferográfica e acrescenta uma palavra à página, uma palavra que o historiador não escreveu, que em nome da verdade histórica não poderia ter escrito nunca, a palavra Não, agora o que o livro passou a dizer é que os cruzados Não auxiliarão os portugueses a conquistar Lisboa, assim está escrito e portanto passou a ser verdade, ainda que diferente, o que chamamos falso prevaleceu sobre o que chamamos verdadeiro, tomou o seu lugar, alguém teria de vir contar a história nova, e como.” 

E é uma história nova que Raimundo Silva aceita escrever, após o desafio da sua superior e futura amada Maria Sara, passando de revisor a autor. Nesta outra história, D. Afonso Henriques recusa o auxílio dos cruzados na conquista de Lisboa e, assim, rejeita, ficcionalmente, desde os primórdios da nação, a “ajuda estrangeira a Portugal”, libertando os portugueses e Portugal dos constrangimentos e condicionalismos que essas ajudas implicam, como a história todos os dias nos mostra. 

“D. Afonso Henriques arenga às tropas reunidas no Monte da Graça, fala-lhes da pátria, já então era assim, da terra natal, do futuro que nos espera, só não falou dos antepassados porque verdadeiramente ainda quase não os havia, mas disse, Pensai que se não vencermos esta guerra, Portugal se acabará antes de ter começado, e assim não poderão ser portugueses tantos reis que estão por vir, tantos presidentes, tantos militares, tantos santos, e poetas, e ministros, e cavadores de enxada, e bispos, e navegantes, e artistas, e operários, e escriturários, e frades, e directores p.151 

Não deixa de ser curioso que esta passagem, onde o rei apela ao lado mais patriótico dos portugueses para que conquistem Lisboa, faça ecos em momentos da nossa história contemporânea quando são pedidos sacrifícios aos portugueses, em nome de um futuro ou de um bem maior que está para vir. Em nome do défice, da dívida, das contas certas, todos são chamados para cumprir os objetivos e interesses das classes dominantes, como se isso servisse a todos da mesma maneira. E, mesmo nesta história recriada, onde se conquistou Lisboa sem ajuda estrangeira e se lançou os fundamentos para a construção de um Portugal soberano, Saramago não podia deixar de ironizar sobre esta questão.

Na JP, publicada em 1986, no mesmo ano em que Portugal e Espanha aderem à então CEE (Comunidade Económica Europeia), conta-se a história de uma fenda que inesperadamente surge na cordilheira dos Pirenéus e acaba por separar a Península Ibérica do resto da Europa.

 “E não foi da França que a península se separou, foi da Europa, parece a mesma coisa, mas faz a sua diferença.”, como nos diz um dos personagens. 228

Simultaneamente, fenómenos inexplicáveis e igualmente possíveis indutores da separação da Península acontecem aos diferentes personagens: Joana Carda, com uma vara, fez um risco no chão que não desaparece de forma nenhuma; José Anaico, onde quer que va, acompanha-o um bando de estorninhos; Joaquim Sassa atirou uma pesada pedra ao mar que, saltitando, atingiu uma distância impensável; Pedro Orce sente incessantemente a terra a tremer debaixo dos pés; Maria Guavaira desmanchou umas meias azuis e o fio azul passou a ser infinito; e Constante, o cão - há sempre um cão nos livros do Saramago! -, fiel companheiro e guia que também sente a tremura da terra. 

Enquanto a já ilha vagueia pelo Oceano Atlântico e os personagens se procuram, se encontram, se conhecem e se amam, o narrador vai-nos mostrando como é que os povos (ibéricos e não só) reagem a tal acontecimento que mais se parecia ao fim do mundo:

“Quando se tornou patente e insofismável que a Península Ibérica se tinha separado por completo da Europa, assim já se ia dizendo, Separou-se, centenas de milhares de turistas, como sabemos era o tempo da maior sazão deles, abandonaram precipitadamente, e deixando as contas por pagar, os hotéis, as pousadas, os paradores, as estalagens, os hostales, as residências, as casas e quartos alugados, os parques de campismo, as tendas, as caravanas, imediatamente provocando nas estradas gigantescos congestionamentos de trânsito, que mais ainda se agravaram quando os automóveis começaram a ser abandonados por toda a parte, levou algum tempo mas depois foi como um rastilho, em geral as pessoas demoram a perceber e aceitar a gravidade das situações, por exemplo, esta de não servir um automóvel para nada, uma vez que as estradas para França estavam cortadas.” p.27

Mas depressa o povo se organizou - incluindo “filhos do povo como nós, este povo tão sacrificado que faz as casas e não as tem, que constrói hotéis e não ganha para hospedar-se neles”, 72. Organizou-se e em “Lisboa já havia nos edifícios ocupados comissões de moradores democraticamente eleitas, constituindo pelouros especializados, a saber, de higiene e conservação, de cozinha, de lavandaria, de festas e divertimentos, de animação cultural, de educação e formação cívica, de ginástica e desportos, enfim tudo quanto é indispensável à harmonia e bom funcionamento de qualquer comunidade.” 75

Um exemplo de afirmação da dignidade própria de um povo que, mesmo nas horas estranhas, sem ajuda, consegue organizar-se.

Os ricos e poderosos não gostaram dessas ocupações e foram embora. Mas diz-nos o narrador: 

“Um observador insciente dos factos e razões, que se deixasse iludir pela aparência de superfície, concluiria que portugueses e espanhóis tinham empobrecido subitamente, de uma hora para a outra, quando, afinal das contas, em termos próprios e rigorosos, apenas sucedera terem-se ido embora os ricos, quando eles faltam logo a estatística sofre.” 

“os governos europeus, que no passado nunca verdadeiramente mostraram querer-nos consigo,” acabaram por ceder perante a internacionalista solidariedade popular atingida com a frase “nós também somos ibéricos”, que, na atualidade teria correspondência com um hashtag viral nas redes sociais pré-anunciado por Saramago. 

E ficamos a saber pelas palavras do primeiro-ministro que “os países europeus mandaram saber como é que queremos ser auxiliados, ainda que, como de costume, tudo dependa de poderem as nossas necessidades ser satisfeitas pelas disponibilidades excedentárias deles”.155-156

Não somos nós que pedimos ajuda, ela é-nos oferecida mas pela mesma medida da solidariedade a que estamos habituados: só o que não lhes fizer falta!

O facto de a publicação da JP acontecer no mesmo ano da adesão de Potugal e Espanha à então CEE, não pode ser inocente já que a obra se afirma como uma alternativa, ainda que ficcional, ao processo de integração capitalista europeu que, em grande parte, se tem revelado como projeto de subordinação e entrega de soberania dos pequenos países às grandes potências e às multinacionais que, em muitos aspetos, Saramago denunciou desde o primeiro momento. Tal como o seu, o nosso Partido.

A JP expressa também essa possibilidade que os povos têm de resistir e de se organizar e, neste caso, em alternativa à CEE. É também essa ideia de libertação que aqui encontramos.

Depois de vaguear quilómetros e quilómetros, a Agora ilha estabiliza ao sul do Oceano Atlântico, digamos algures entre África e a América do Sul. Esta nova localização de Portugal e Espanha simboliza também as novas e necessárias relações de cooperação, amizade e respeito mútuo entre estes países e os povos por si colonizados, uma nova alternativa civilizacional afro-ibero-americana, oposta em tudo ao projeto de integração capitalista europeu. Ao mesmo tempo, imporia um certo equilíbrio geopolítico no Atlântico, desafiando o domínio sufocante que os EUA aí exercem. Nesta nova localização, entre América do Sul e África, cujos povos conhecem bem as consequências do colonialismo Económico e cultural, Portugal e Espanha teriam mais condições para também eles se libertarem do domínio cultural e econômico das grandes potências europeias, afirmando a rutura, a defesa dos seus valores e da sua soberania!

Talvez por tudo isto, a Jangada de Pedra seja considerada uma obra utópica…

Por isso e pela mensagem de esperança que transporta: no final, todas as mulheres engravidam. Há uma explosão demográfica e “houve de certeza uma explosão genesíaca, uma vez que ninguém acredita que a fecundação colectiva tenha sido de ordem sobrenatural.” 239, Este feito vai no sentido oposto ao das distopias modernas que nos apresentam as mulheres como inférteis e, portanto, uma finitude da humanidade próxima, o apocalipse.

Há, na JP, uma mudança (otimista, diria) de circunstâncias da forma como que se encara a vida e da ruptura com o quotidiano. No final, todos seguem a sua vida e todos têm nas suas mãos o seu destino. 

Na obra de Saramago, HCL e JP representam o expoente máximo dessa ousadia (um NÃO e uma península transformada em ilha distante) de colocar uma alternativa que é  tão  só a audácia de nós, enquanto país, tomarmos nas mãos o nosso destino. Recusarmos falsas inevitabilidades geoestratégicas e sabermos dizer NÃO.

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