Tal como dizemos no Projecto de Resolução Política, o essencial das alterações que se verificam no modo como o sistema capitalista encara e integra a cultura é inseparável das características da sua corrente hoje dominante - o neoliberalismo –, da sua tendência mercantilizadora de todas as esferas do viver humano e de todos os produtos da actividade humana, do seu carácter intrinsecamente anti-democrático, da sua aversão à intervenção pública, do sistemático desvio de recursos públicos para interesses privados.
E também, em certas áreas, da dinâmica de financeirização da economia que, entre outras coisas, requer formas de aplicação do capital fictício em – como eles dizem - “activos não financeiros” dotados de alguma materialidade, mas cujo valor de mercado possa manter uma larga margem de manipulação, de preferência superior à da própria especulação bolsista.
Só um exemplo dessa manipulação, entre tantos outros: quando da nacionalização do BPN a leiloeira Christie’s avaliou as 85 obras de Miró que este detinha em mais de 80 milhões de euros. Depois previu que em leilão rendessem cerca de 35. Quando era o Estado assumir o encargo o valor era um. Quando se tratava de privatizar o valor descia para menos de metade. E isto quando o BPN foi vendido ao BIC por 40 milhões.
É nesses termos que é muito relevante o entendimento da autentica fusão entre multinacionais e bancos e grandes instituições culturais, o peso das colecções de “arte” nos montantes com que indivíduos e instituições maquilham as suas duvidosas contabilidades, a drenagem de património público para os interesses privados.
Essa tendência manifesta-se num entendimento da cultura ao mesmo tempo artificialmente alargada e em parte esvaziada. Nós sempre trabalhámos sobre uma concepção de cultura entendida como conjunto ou sistema de actividades e práticas, de meios e instrumentos, de artefactos, obras e produtos através dos quais os grupos humanos e os indivíduos, em determinadas condições sociais e históricas, produzem sentidos, ou seja, dão sentido à sua vida, à sua relação com os outros e ao mundo em que vivem.
Para o capitalismo actual a questão centra-se sobretudo num universo de actividades humanas e de bens e serviços transacionáveis dotados de conteúdos simbólicos cuja produção envolve criatividade e que incorporam alguma forma de propriedade intelectual. É assim que as suas instituições, da OCDE à UE, a definem.
Tal concepção é avessa às dimensões social e histórica da cultura. Os “conteúdos simbólicos” que identifica remetem sobretudo para um valor mercantil que contamina toda a abordagem do lugar da cultura na sociedade. Que, em áreas essenciais, coloca a cultura na proximidade de frentes que a constrangem e tendem a fazê-la estagnar, em especial com a quase contiguidade entre cultura e entretenimento, gerando ao mesmo tempo uma enorme contradição entre um muito alargado público e práticas culturais tendencialmente rotineiras, formatadas e passivas.
Aquilo que o capitalismo designa como sector cultural e criativo (SCC) tornou-se particularmente relevante. Nos Estados Unidos a designação não recorre a eufemismos: são as “indústrias do entretenimento” ou as “indústrias do copyright”. Relevante em especial, embora não se esgote aí, no lugar que a “cultura mediática de massas” assume nos dias de hoje - em certos aspectos como uma cultura efectivamente globalizante mas ao mesmo tempo quase unipolar no mundo ocidental.
Cresce exponencialmente: entre 2002 e 2011 o volume do comércio internacional de bens e serviços culturais passou de 198 mil milhões de dólares a 454 mil milhões (UNCTAD). Em 2018 o SCC empregava mais de 30 milhões de trabalhadores em todo o mundo (OCDE) em regra em situações gravosas que vão desde o subemprego e a precariedade sistemática às questões da autoria e dos direitos de autor ou da compressão das margens de autonomia relativa do trabalho intelectual.
Assentes na fusão geral entre plataformas audiovisuais e redes digitais, cujos equipamentos de recepção se multiplicam na escala dos milhões de milhões, o desenvolvimento do SCC fez-se no sentido de a uma colossal expansão da oferta corresponder uma extrema fragmentação do público consumidor, primeiro doméstico e depois individual, hoje em muitos aspectos tanto inteiramente massificado como tendencialmente atomizado.
Nós não temos que ter reservas de princípio em relação ao dito SCC, que aliás se desenvolve no mundo de formas muito diversas. Mas temos que o olhar criticamente tendo em conta o papel que o capitalismo lhe destina. Trata-se de um autêntico ovo de Colombo, que proporciona ao capitalismo fortíssimos meios de influência, inculcação ideológica e hegemonização cultural, e ainda por cima lhe dá milhões a ganhar. E consegue-o com meios industriais que mobilizam com enorme eficácia, usando meios técnicos e estéticos muito diversos, os melhores recursos da criatividade humana. Nesse aspecto, temos certamente ainda bastante a aprender.
Porque o essencial da marca do capitalismo sobre a cultura não é apenas a da mercantilização, é o da infiltração da ideologia dominante por todos os seus poros. Aí, resplandece o pensamento pós-moderno: seja pela elisão da história e do processo histórico ou, como um autor diz, pela “canibalização da história”, seja pela projecção em objectos, artefactos e obras de qualquer tempo um presente filtrado pelo olhar da ideologia dominante.
Seja pela pretensão de impor critérios de ordem moral e ética visando incutir um certo entendimento do presente na avaliação e, pior do que isso, na valorização estética de obras, sejam elas do passado ou do presente.
Seja pela capacidade de cooptar e neutralizar movimentos culturais muito diversos, incluindo alguns que têm uma raiz de resistência e de combate.
Seja absolutizando a realidade como imagem tornando indistinguíveis informação e ficção, estabelecendo a ficção (ideologicamente formatada) como única forma de interpretação da realidade.
Seja pela capacidade de, pela via da dominação económica, social e ideológica, impor ou excluir temáticas e formas de expressão, aspecto em que é particularmente significativa a imposição dos temas que hoje constituem sobretudo a folha de parra “progressista” com que o capitalismo tenta ocultar o seu inteiro esgotamento enquanto factor de progresso.
Esta poderosa fusão económica, política e ideológica entre capital monopolista e grandes interesses e instituições com presença no campo da cultura não é de hoje. Se nós entendemos a cultura como “campo de luta e jogo de forças”, também o capitalismo e o imperialismo a entendem assim, e desde há muito. A diferença é que, para o capitalismo, a forma de intervir na cultura é instrumentalizá-la. Para nós, é libertá-la dessa instrumentalização.
Tal como a falência do fraudulento gigante bancário Lehman Brothers deixou o MOMA de Nova York de calças na mão, também agora instituições culturais outrora respeitáveis ficaram eticamente de calças na mão na vaga de exclusão e censura face ao conflito na Ucrânia. Museus, orquestras sinfónicas, teatros, universidades, bibliotecas, festivais, aceitaram participar nesse processo inquisitorial. Despediram artistas, renomearam obras de arte e esconderam outras, excluíram obras e criadores do presente e do passado, hostilizaram e expulsaram pessoas por serem falantes de outra língua ou terem nascido em outros países. Impressionou a sincronização com que o fizeram, como um batalhão em ordem de combate. Monstruoso e extremo gesto concertado de efectiva rendição cultural, de negação de uma dimensão essencial da cultura: a de ignorar fronteiras, seja qual for a natureza das que lhe queiram impor.
Gesto grotesco de um sistema esgotado, não admirará que se levante contra ele o mundo, criador e livre, da cultura e da arte. Mundo que exige liberdade, emancipação e paz, não instrumentalização e guerra.
É por esse mundo que há 101 anos nos batemos.