A crise na União Europeia (EU), que é essencialmente o resultado do capitalismo financeiro, em que os credores subjugam os Estados devedores, teve e tem necessariamente reflexos na Democracia que vivemos na Europa, enfraquecendo-a.
A resistência, no patamar do Direito, com a defesa dos direitos fundamentais e da liberdade, tem de estar sempre na lei Fundamental, que rege cada um dos Estados membros da EU, e que representa a soberania nacional, correspondendo às aspirações dos povos. Só ela pode garantir o primado do Estado do direito democrático.
Mas, a própria lei Fundamental, a CRP, entre nós, e também a lei ordinária, não tem escapado a essa ambiência de crise na EU e aos ditames de compromissos internacionais, o que propicia alterações e leituras que muitas vezes deturpam o seu texto originário.
Assim, no que toca ao envolvimento de Portugal nas redes de direito internacional e nas plataformas das organizações internacionais, como sejam, por exemplo, a EU, o FMI, a OCDE e a ONU, num mundo cada vez mais globalizado, houve consequências diferentes no tempo do constitucionalismo pós - 25 de Abril de 1974, a data da Revolução que derrubou o regime fascista e que libertou Portugal da longa ditadura, da opressão e do colonialismo. Isto é, reflectiu-se ou repercutiu-se diferentemente na CRP esse envolvimento, com as directivas que dele resultaram.
Deste modo, pode afirmar-se que da CRP originária de 1976, na plena euforia da Revolução de 1974, até à CRP da actualidade, depois de sofrer 7 revisões, há um arco de, pelo menos, 180 graus.
Vejamos, pois, sem a preocupação de uma ordenação cronológica dessas 7 revisões constitucionais, a primeira data de 1982.
Na primitiva redacção de 1976, a CRP apenas se comprometia com a enunciação de princípios aplicáveis às relações internacionais (artº 7º), com destaque para “a abolição de todas as formas de imperialismo, colonialismo e agressão” e para “a dissolução dos blocos políticos e militares”, comprometendo-se ainda com o respeito pelas “normas e os princípios do direito internacional geral ou comum”e pelas “normas constantes de convenções internacionais, regularmente ratificadas e aprovadas “, mas sem qualquer especificação (a única ressalva é a referência expressa à Declaração Universal dos Direitos do Homem – artº 8º e 16º, nº 2).
O panorama, porém, muda com as alterações decorrentes das sucessivas revisões constitucionais, ordinárias e extraordinárias, que vieram comprometer, em muitos aspectos, a independência e a soberania nacionais, quanto ao relacionamento do direito interno com o direito internacional, Revisões, algumas delas, que directamente tiveram a ver com a entrada de Portugal na EU.
Assim, atendo-nos à redacção em vigor da CRP, temos o seguinte quadro sinóptico:
1.A aceitação da recepção automática na ordem interna das “disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respectivas competências, “acrescentando-se que a aplicação se faz” nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático”(artº 8º, nº 4).
Tudo isto na sequência do empenhamento de Portugal “no reforço da identidade europeia! E na “construção e aprofundamento da união europeia “ (artº 7º, nºs 5 e 6).
Assim mesmos, a obediência ao “direito de União”, com o sentido de uma prevalência absoluta ou quase absoluta desse ordenamento jurídico internacional sobre o direito interno, envolvendo até responsabilidade civil extracontratual do Estado Português o incumprimento ou o cumprimento defeituoso do “direito da União”.
E, de pouco valem os poderes da Assembleia da República, em matéria da sua competência legislativa reservada, de se pronunciar “sobre as matérias pendentes de decisão em órgãos no âmbito da União Europeia” e de acompanhar e apreciar “a participação de Portugal no processo de construção da união europeia “(artºs 161º, n), e 163º, f)), pois a “insensibilidade” do órgão legislativo nacional em tais domínios tem sido a regra.
2.A aceitação da “jurisdição do Tribunal Penal Internacional, nas condições de complementaridade e demais termos estabelecidos no Estatuto de Roma”, que consta do artº 7º, nº 7, que inclui a aceitação da sua jurisdição para cidadãos nacionais, a par de aceitação da “aplicação das normas de cooperação judiciária penal estabelecidas no âmbito da União Europeia” (artº 33º, nº 5), de que é exemplo corrente o mandato de detenção europeu de 2003.
3.A aceitação de um regime de extradição demarcado no artº 33º, nºs 3 e 4, que abre a porta à “extradição de portugueses do território nacional” – e só pode ser a mando de poderosas instâncias internacionais, pois aplica-se aos “casos de terrorismo e da criminalidade organizada” – e também abre a porta á extradição de estrangeiros em condições que brigam com o princípio constitucional da proibição de penas e medidas de segurança “privativas ou restritivas da liberdade com carácter perpétuo ou de duração ilimitada ou indefinida” (artº 30º, nº 1).
4.A aceitação de incumbência definida no artº 275º, nº 5, para as Forças Armadas de “satisfazer os compromissos internacionais do Estado Português no âmbito militar”, sabendo-se o que isso significa, com o envolvimento de Portugal na NATO, e não só, o que até contraria o importante programa de princípios definidos no artº 7 para as relações internacionais.
5.Enfim, e CONCLUINDO, mesmo com este quadro tão negativo, que é o resultado de compromissos internacionais de Estado Português, a CRP é sempre um alerta aos cidadãos para a defesa da liberdade e dos direitos fundamentais, cabendo-lhes torná-la operativa e eficaz, nomeadamente, junto dos tribunais.