A inserção de Portugal no processo de integração capitalista europeia representou, em termos gerais, desde o momento da adesão e até aos dias de hoje, um confronto com o regime democrático que emergiu da Revolução de Abril e, bem assim, com a Constituição da República Portuguesa (CRP), que consagrou as grandes conquistas da Revolução e a visão de um país independente e soberano, de progresso e de justiça social.
O aprofundamento da integração foi representando uma escalada nesse confronto. Maastricht e a falhada constituição europeia, depois recauchutada no Tratado de Lisboa, foram saltos qualitativos que, pela sua relevância, não podem deixar de ser sublinhados.
De igual forma, os desenvolvimentos mais recentes da crise na UE – tal como a entendemos, uma expressão da crise mais geral do capitalismo – comportam perigos acrescidos evidentes para o regime democrático, que poderão contribuir para a sua acrescida desfiguração.
Procurarei em torno destas ideias gerais aqui alinhar algumas reflexões breves.
A intenção de adesão de Portugal à CEE, desde pelo menos finais dos anos 70, e a posterior adesão, em meados da década de 80, deram alento ao processo contra-revolucionário, então já em pleno curso. As classes dominantes, inconformadas com as parcelas de poder perdidas com o 25 de Abril, viram aqui uma oportunidade de ouro para satisfazer as suas ambições, amarrando o país a um tipo de desenvolvimento capitalista. A CRP continha então ainda o objectivo de abrir caminho para uma sociedade socialista, que veio a ser eliminado em 1989, mantendo-se hoje apenas uma referência no seu preâmbulo.
Também em 1989, foi eliminado o princípio da irreversibilidade das nacionalizações, abrindo-se o caminho à reprivatização das empresas nacionalizadas. Este foi um passo crucial na conformação do Estado à "economia de mercado aberto e de livre concorrência", princípio matricial da (hoje) União Europeia, inscrito nos seus tratados e em nome do qual são concebidas e conduzidas não apenas as políticas comuns, mas também, de uma forma geral, de acordo com os tratados, as políticas económicas dos Estados-Membros.
Como então alertámos e a vida o veio a demonstrar, a reprivatização das empresas nacionalizadas foi uma porta aberta ao domínio de empresas e sectores estratégicos da economia nacional pelo capital estrangeiro. Não apenas se acentuou a exportação de capitais, se agravaram desequilíbrios e défices diversos, como se reduziram os instrumentos necessários à determinação dos eixos da política económica e social necessária à satisfação das necessidades e dos anseios do povo português, de uma forma mais geral, os instrumentos necessários – podemos dizer mesmo e é hoje claro, os instrumentos imprescindíveis – à determinação do nosso colectivo devir. Nessa medida, desfigurou-se e empobreceu-se a democracia.
Ainda nesta linha, a revisão constitucional de 1989 eliminou a referência constitucional à reforma agrária e à socialização dos meios de produção. Acabou também com o princípio da gratuitidade do Serviço Nacional de Saúde, princípio evidentemente incompatível com o negócio da saúde, que a coberto das directivas específicas da UE para o sector, tende hoje a ganhar uma dimensão transnacional.
Três anos depois, na revisão de 1992 – ano de Maastricht, – e tendo em vista a ratificação deste tratado, tanto quanto possível sem debate e sem consulta popular (ao contrário do que propôs o PCP), foi eliminado da constituição o exclusivo da emissão de moeda por parte do Banco de Portugal.
Os avanços na cooperação judiciária estabelecida no âmbito da UE deram-se a par de recuos no domínio dos direitos, liberdades e garantias consagrados na CRP, o mesmo se verificando com a sujeição à jurisdição do Tribunal Penal Internacional.
O artigo 7.° da CRP (relativo às relações internacionais) transfere para as instituições da UE – assim os furtando ao escrutínio e controlo democráticos populares – os poderes necessários à dita "construção e aprofundamento da UE", em domínios como a "política externa de segurança e defesa", o chamado "espaço de liberdade, segurança e justiça", entre outros.
Mas a CRP permanece, apesar das alterações negativas que lhe foram introduzidas, um texto de conteúdo progressista, um programa democrático de desenvolvimento, nas vertentes política, económica, social e cultural; garantindo um amplo conjunto de direitos e fortemente vinculado a objectivos de justiça social. Por esta razão fundamental é tão evidente o confronto entre muitas das suas disposições e a orientação dominante do processo de integração europeia, os seus princípios e políticas.
O aprofundamento da crise na UE tende a elevar este confronto a novos patamares qualitativos.
Confronto evidente entre uma Constituição que defende a "solução pacífica dos conflitos e a não ingerência nos assuntos internos de outros Estados", "a abolição do imperialismo, o desarmamento geral e a dissolução dos blocos político-militares" e uma UE que se constituiu como o pilar europeu da NATO, que reforça as suas capacidades e despesas militares, que participa em guerras de agressão contra países e povos soberanos.
Confronto evidente entre uma Constituição que perfilha e acolhe a Declaração Universal dos Direitos do Homem e uma UE que tem dos direitos humanos uma concepção restritiva e instrumental, propagandeando uma minimalista e restritiva "Carta dos Direitos Fundamentais".
Confronto evidente entre uma Constituição que prevê o direito ao trabalho, que garante segurança no emprego, amplos direitos laborais e sindicais, o direito à greve e à contratação colectiva, entre outros, e a UE da "flexigurança", que condiciona o direitos laborais, e inclusivamente o direito à greve, às regras da concorrência e da livre circulação no mercado único (vejam-se as decisões do Tribunal de Justiça Europeu a este respeito) e que enunciou claramente (por exemplo, no chamado Pacto para o Euro Mais) e prossegue devotadamente o objectivo de acabar com a contratação colectiva.
Confronto evidente entre uma Constituição que garante o direito à educação e à cultura, que o Estado tem o dever de democratizar, e a UE das "indústrias culturais", que mercantiliza o conhecimento e a cultura e que submete o ensino às necessidades do mercado de trabalho.
Confronto evidente entre uma Constituição que disciplina o investimento estrangeiro e o condiciona à "contribuição para o desenvolvimento do país", à "defesa dos interesses dos trabalhadores" e "da independência nacional" e a UE da livre circulação do capital, da liberdade de estabelecimento, do investimento beduíno das multinacionais, que recebem financiamentos públicos para se instalarem e que depois levantam a tenda e rumam a outras paragens, em busca de mais baixos salários, com a bênção de mais fundos comunitários.
Confronto evidente entre uma Constituição que estabelece como objectivos de política agrícola e industrial o aumento da produção e uma UE cujas políticas comuns, com destaque para a PAC e a política comercial, levaram ao abandono agrícola e ao declínio industrial; entre uma Constituição que prevê a eliminação do latifúndio e uma PAC que concentrou a propriedade e sustenta latifundiários absentistas com rios de dinheiros públicos.
Confronto evidente entre uma Constituição que prevê – após muita insistência do PCP e resistência de PS e PSD – a possibilidade de referendar a vinculação do país aos tratados europeus e uma UE que foi desprezando e afrontando a vontade dos povos – de Maastricht ao recente Tratado Orçamental, passando pelo Tratado de Lisboa, por Amesterdão, por Nice e pela criação da moeda única.
Confronto entre uma Constituição que prevê a subordinação do poder económico ao poder político democrático e a UE dos lóbis e corporações, da BusinessEurope – a confederação de associações do grande patronato europeu, que vem exigindo há muito a limitação da soberania dos Estados e, em geral, as orientações que sempre vêm a ser lei e que constam do Pacto para o Euro Mais, da chamada Governação Económica, do Semestre Europeu e do Tratado Orçamental.
Confronto evidente e maior entre esta Constituição e o programa de intervenção da UE e do FMI em curso, autêntico pacto de agressão ao país e ao seu povo, visando uma subversão profunda e duradoura do regime democrático que emergiu de Abril.
Confronto este que não se resolverá senão com uma ruptura com a subordinação do país a esta integração capitalista; uma ruptura com esta UE, com os seus caminhos, com as suas orientações, princípios e políticas. Ruptura que é inseparável da luta por uma outra Europa, de progresso e bem-estar social, de Estados soberanos, livres e iguais em direitos. Uma Europa onde aos povos seja reconhecido o direito de decidirem dos seus próprios destinos, de forma livre e soberana, sem imposições supra-nacionais. Esta é uma condição essencial da democracia.