Há quase vinte anos, as Edições «Avante!» editavam algo a que o seu autor chamaria «uma colecção de fichas em forma de livro». As fichas, escritas e alinhadas pelo camarada Sérgio Ribeiro, foram então reunidas num livro, que levou o título «Não à Moeda Única – Um contributo» e constituiu um importante instrumento de intervenção na campanha de esclarecimento promovida pelo PCP sobre o Euro e o seu processo de criação.
A páginas tantas, melhor dizendo, a fichas tantas, uma delas surge, já na parte final do livro, que leva o título «o capital especulativo e a especulação». Aí se dizia que: «Capitais há muitos, embora o capitalismo seja só um».
À época, 1997, a caminho da terceira e mais importante fase da União Económica e Monetária – a criação do Euro – acrescentava-se que (e cito): «Aquele capital que hoje predomina no espaço europeu é transnacional, ultraliberal, financeiro, especulativo. Reclama insistentemente menos Estado e só faz aplicações produtivas se beneficia de apoios desse mesmo Estado e/ou de estruturas supranacionais, como será o caso da União Europeia». [...] «Esse capital especula na Bolsa, nos vários mercados, no mercado de capitais, especula cambialmente. Mas ao mesmo tempo e contraditoriamente, pretende estabilidade monetária para as suas transacções transnacionais, para a sua internalização (trocas internas em espaços internacionais)» (fim de citação).
Um dos muitos argumentos então utilizados pelos defensores do Euro era o de que a moeda única acabaria com a especulação, ou, pelo menos, com a especulação cambial. Em tom prudente, numa outra ficha do livro, procurando precisamente desmontar esta falácia, lembrava-se que muito embora, à partida, não se possa especular com o que não existe, sendo a imaginação dos especuladores tão fértil, melhor seria não o dizer em definitivo...
A verdade é que dez anos depois da entrada em circulação das notas e das moedas em euros, a especulação sobre as dívidas públicas dos países periféricos da Zona Euro, desprovidos de moeda própria, lançou toda a Zona Euro e a própria União Europeia na maior crise da sua história, com dramáticas consequências económicas, financeiras e sociais, que estão longe de ser superadas.
Como desde sempre afirmámos e como está hoje mais claro do que nunca, a União Europeia, desde a sua génese aos sucessivos aprofundamentos e alargamentos que lhe deram a configuração actual, está toda feita para promover e defender os grandes grupos económicos e financeiros das suas principais potências. A também chamada, mal chamada, «construção europeia» é a construção na qual se abrigam os interesses da alta finança europeia, que promove a concentração e centralização do capital na Europa.
A União Europeia é isso mesmo, a superestrutura política do grande capital europeu transnacionalizado. Na fase actual de desenvolvimento do processo de integração capitalista, a União Bancária é o topo desta construção, a sua cúspide, a ponta-de-lança da integração económica e monetária.
Tal como a UE serve os monopólios europeus, a União Bancária serve os mega-bancos europeus.
A União Bancária – com o seu mecanismo único de supervisão e de resolução bancária – é uma forma política de agilizar o processo de centralização e concentração de capital no plano da União Europeia, com o qual se promove o encerramento de bancos de menor dimensão, a fusão, a concentração de depósitos e investimentos nos grandes colossos financeiros.
É esse e não outro o seu principal objectivo. Mistificações à parte, não precisamos de um mecanismo europeu único de supervisão e resolução bancárias para fazer recair os custos da resolução dos bancos sobre quem deve arcar com esses custos, prioritariamente os seus donos privados e os credores do banco, e não sobre os trabalhadores.
A União Bancária enfraquece ainda mais o controlo dos Estados sobre os sistemas bancários nacionais, particularmente dos Estados periféricos como Portugal. Aumenta a dependência e a submissão às pressões do Banco Central Europeu e dos interesses que o comandam. Promove a dominação monopolista dos grandes grupos financeiros continentais. Constitui, assim, mais um rude e inaceitável golpe na soberania nacional.
A União Económica e Monetária expropriou os Estados das suas soberanias monetárias, relegando a faculdade de emitir moeda para uma entidade externa, sediada em Frankfurt e distanciada dos controlos nacionais. Por arrastamento, expropriou-os de importantes e crescentes parcelas de soberania orçamental e fiscal. Agora, a União Bancária, com o estímulo e o impulso da progressiva concentração do sistema bancário europeu nuns poucos mega-bancos, também distanciados de controlos nacionais, pelo menos de países periféricos como o nosso, transfere igualmente para centros de comando externos o controlo da criação de moeda pelos bancos comerciais, a chamada moeda escritural.
Se a criação de moeda é uma prerrogativa soberana dos Estados, estamos na verdade perante uma dupla expropriação. O BCE já tem o monopólio da emissão de moeda. E os mega-bancos, por via da acção do BCE, ficam fundamentalmente com o monopólio da criação monetária da banca.
Tudo, portanto, articulado, hierarquizado e centralizado no BCE, sem prejuízo do exacerbar da concorrência dos mega-bancos entre si, num sistema em que a moeda e o crédito, que são bens públicos, e a actividade financeira em geral, se distanciam cada vez mais do controlo público e das necessidades das famílias, dos produtores, das economias nacionais, dos povos e dos países, e se põem cada vez mais ao serviço das necessidades de acumulação de capital dos grandes grupos económicos e financeiros europeus.
A União Económica e Monetária, a arquitectura do Euro, foi-se erguendo em patamares sucessivos, dito de outra forma, foi-se realizando através de sucessivos aprofundamentos, num processo com desenvolvimentos recentes muito significativos – a Governação Económica, o Semestre Europeu, o Tratado Orçamental, a supervisão e resolução bancárias únicas, e proximamente a garantia de depósitos.
A cada novo patamar, a cada salto em frente no sentido do aprofundamento da UEM, corresponde também um novo patamar, um novo salto em frente, na promoção e institucionalização da dita austeridade, da exploração, da concentração e centralização de capitais. A cada novo patamar, a cada salto em frente, acentua-se o enviesamento recessivo, financeirizado e especulativo da economia europeia.
Desde o início, a arquitectura do Euro lubrificou a livre circulação de capitais, o que em conjugação com a baixa das taxas de juro estimulou a financeirização e a actividade especulativa. Tomava-se emprestado para especular, não para investir na «economia real».
Normalmente pensa-se na queda das taxas de juro como facilitando, ou podendo facilitar, o investimento «real», produtivo. Mas a verdade é que, particularmente quando a economia estagna, as taxas de juro baixas também servem para alimentar a especulação. Taxas de juro baixas servem para estimular os pedidos de empréstimo. O que se faz com esses empréstimos, investimento produtivo ou especulativo, é outra história.
Ora estagnação foi, em suma, o que tivemos desde a adesão ao Euro. Graças precisamente a esse colete-de-forças que foi e que é o Euro.
Por um lado, a União Económica e Monetária baixou as taxas de juro, muito especialmente para os países periféricos, antes da crise internacional. Facilitou o tomar emprestado e, no caso desses periféricos, o respectivo endividamento externo, sobretudo da banca. Mas, por outro lado, a UEM condicionou e constrangeu fortemente o investimento, o crescimento, o emprego. Resultado: os empréstimos foram direccionados, em grande medida, para investimentos financeiros especulativos (bolsistas, cambiais, derivados, bolha imobiliária, etc.).
Foi uma explosão de actividades financeiras e, muito especialmente, de actividades financeiras especulativas.
O euro lubrificou portanto o movimento dos capitais, muito especialmente os seus canais especulativos. Mas a crise internacional que irrompeu em 2008 abalou seriamente, com graves perturbações, restrições e interrupções, o mercado interbancário europeu.
Os bancos portugueses, por exemplo, que se tinham endividado fortemente no exterior, ressentiram-se disso e tiveram de ser salvos pelo fornecimento de liquidez do BCE e pelos auxílios do Estado.
O mercado interbancário ficou consideravelmente desconectado, com a segmentação nacional dos mercados financeiros, e nunca retomou os níveis anteriores de integração e mobilidade.
A descarada promoção pelo BCE dos mega-bancos europeus, além dos objectivos gerais de favorecimento dos lucros e da acumulação de capital, é por isso também, neste contexto específico da crise e das suas sequelas, uma tentativa de restabelecer em pleno a livre circulação de capitais, nomeadamente através das transferência de liquidez pelos seus circuitos internos.
A UEM agravou e agrava os problemas estruturais da União Europeia, que não se resolvem com fugas para a frente.
Problemas estruturais que exigem respostas estruturais e não a maquilhagem financeira e monetária, como o despejo massivo de liquidez pelo BCE nos bancos em troca de títulos de dívida.
Esta política de expansão monetária do BCE – o quantitative easing – pode reduzir as taxas de juro, mas mostra-se cada vez mais ineficiente e mesmo perversa.
O dinheiro criado junto da banca é, novamente, retido na esfera financeira, não chega à economia real, é desviado para a especulação. Pode-se fornecer muita liquidez aos bancos, mas não se pode obrigá-los a emprestar às empresas e às famílias. Como se costuma dizer, pode-se levar os cavalos à água, mas não se pode obrigá-los a beber.
Com as fracas perspectivas de rentabilidade, de consumo, de crescimento, com o elevado endividamento privado, que também desincentiva o investimento, os bancos não emprestam, não se anima a procura de bens e serviços, não se estimula a inflação (deprimida também pelos baixos preços do petróleo), o que se insinua e cresce são novas bolhas especulativas. Como a bolha obrigacionista – até agora, o grande efeito visível do quantitative easing do BCE.
Para terminar, relativamente ao sistema bancário, um país como Portugal aquilo de que precisa é de uma banca que, em vez dos desequilíbrios, contribua para, entre outros aspectos, corrigir o enviesamento especulativo dos fluxos financeiros, a dependência externa, a divergência com a União Europeia.
Precisamos de uma banca que, em vez de comprometer a soberania nacional e agravar a situação económica do país, defenda a autonomia e independência nacionais, o mercado interno, o investimento produtivo, a expansão e modernização da capacidade industrial, a criação de emprego, o crescimento económico, o desenvolvimento social.
Precisamos, em suma, de uma banca pública, ao serviço do desenvolvimento de cada país. No imediato, em Portugal, isso passa por um grande reforço do sector público bancário, que assegure o controlo público e discipline o mercado financeiro, que salvaguarde a solvabilidade e reoriente a actividade da banca nacional.
Como já afirmámos, «a necessidade de travar a especulação financeira, de canalizar as poupanças e recursos para o investimento na produção nacional, de impulsionar o crescimento e defender a soberania, reclama que a moeda, o crédito e outras actividades financeiras essenciais sejam progressivamente postas sob controlo e domínio públicos, ao serviço dos interesses nacionais».