Gostaria de começar por agradecer a presença de todos neste seminário promovido pelo PCP e a sua representação no Parlamento Europeu e, em particular, aos nossos convidados estrangeiros que vieram da Dinamarca e de Chipre.
Como sempre, na história da União Europeia os passos mais graves são acompanhados de propaganda que oculta o seu real objectivo. Assim acontece também na União Bancária. Segundo o discurso da eurocracia, a União Bancária serve para moralizar o sistema, controlar os bancos, melhorar a supervisão bancária e organizar de forma mais rigorosa, organizada, e até justa, a resolução de problemas no sistema financeiro.
Como acabámos de constatar neste seminário isso é uma redonda mentira. E a razão reside na crise do capitalismo e da União Europeia. Dado o enorme grau de financeirização da economia e de liberalização da circulação de capitais, a crise do capitalismo expressa-se com particular incidência no sistema financeiro, afectando as gigantescas corporações formadas num igualmente gigantesco processo de concentração e centralização de capital, que cria as célebres empresas to big to fail.
A fórmula encontrada para preservar os lucros e o património dos gigantes da finança europeia (os tais que controlam o sistema offshore e que não são tocados nos panama papers) foi, como se sabe, por via dos Estados, transformar a dívida privada em dívida pública através de uma massiva transferência de fundos públicos e rendimentos do trabalho para o sector financeiro, aumentando-se ainda mais o grau de concentração de capital. Estamos a falar de transferências na ordem dos milhões de milhões de Euros no plano da União Europeia.
Mas este processo tem custos. Económicos e políticos. E cria ele próprio novas contradições. Desde logo, porque os trabalhadores e os povos se dão conta, de forma crescente, da natureza e objectivos desse processo. Basicamente sentem na pele a contradição de classe. Depois, porque esse processo significou uma regressão brutal de rendimento disponível nas massas trabalhadoras e populares e um endividamento dos Estados sem precedentes, e, por conseguinte, uma violenta contracção económica que criará novas ondas de crise. Em terceiro lugar, porque esse processo aprofundou as contradições inerentes ao processo de integração capitalista entre os Estados, como foi bem visível no caso grego e agora no caso Brexit, mas não só. Em quarto lugar, porque num processo de concentração e centralização capitalista desta dimensão o carácter autofágico do capitalismo, em que os grandes vão destruindo os menos grandes, se revela altamente arriscado para o consenso de Bruxelas em torno dos grandes eixos da integração capitalista, acumulando-se factores de desagregação. E por último, e como a realidade se está a encarregar de demonstrar, parece já inevitável que, como previmos, se voltem a verificar novos episódios de crise, possivelmente de ainda maior magnitude que os anteriores.
A acontecerem, a necessária falência de inúmeros bancos, ditos periféricos, e uma nova onda de canalização de fundos públicos e rendimentos do trabalho para a esfera financeira, terão de ser geridas com mão de ferro e num controlo altamente centralizado.
Ora a União Bancária foi criada para dar resposta a estas contradições e questões, como aliás o têm sido outros instrumentos como o Pacto de Estabilidade e Crescimento, a Governação Económica, o Semestre Europeu, as regras do Mercado Comum e o famigerado Tratado Orçamental nas áreas da política económica, orçamental, fiscal, laboral e de destruição das funções sociais dos Estados, visando sempre e sempre o mesmo objectivo: concentrar capital, poder económico e político.
A questão a que a União Bancária procura responder é como proceder ao necessário processo de concentração de forma o mais suave possível, com menores custos políticos possíveis, com o menor grau de intervenção dos Estados possível e o mais distante possível do escrutínio popular.
Basicamente, e como foi afirmado, um dos objectivos da União Bancária é centralizar no BCE e nas Instituições Europeias todo o processo de controlo do sistema bancário no espaço da União Europeia. Isso é fundamental para evitar novos sobressaltos políticos quando for necessário fazer o mesmo que se tem feito até agora: roubar aos povos para dar aos bancos. E para tal é necessário dar-lhe um ar eficiente, rigoroso, sério e até moralista.
E mais. Se necessário, o grande capital financeiro, os mega-bancos, podem mesmo abdicar de uma ínfima parte dos seus lucros para pagar a destruição da concorrência e o alargamento do seu mercado e domínio. Estamos bem lembrados dos fundos europeus que pagaram a destruição do nosso aparelho produtivo. Ora aqui surge a primeira peça de propaganda: a partir de agora são os bancos que pagam a resolução bancária por via do chamado mecanismo único de resolução.
Trata-se de um embuste. Como já vimos essa operação é facilmente desmontada pelos números e é extremamente fácil de demonstrar que serão os fundos públicos que continuarão a suportar a parte de leão das resoluções bancárias que se venham a efectuar. Com duas agravantes: a primeira é que o fundo de resolução supranacional só se aplica a bancos com risco sistémico, e quem decide desse risco é o sistema único de supervisão; a segunda é que os Estados ficam amarrados a estas regras de resolução, o que os impede na prática de, por exemplo, decidir da nacionalização de bancos nessas condições.
Poder-se-á, contudo, dizer que ainda assim o sistema único de supervisão, um segundo pilar da União Bancária permite uma visão mais sistémica e uma supervisão mais rigorosa do sistema financeiro na União Europeia, e até mais independente. Aqui importa sublinhar dois pontos. O primeiro é a experiência histórica. O que a supervisão revelou até agora – confirmando as sábias palavras de Lénine – é que na fase imperialista do desenvolvimento do capitalismo não há mecanismo de supervisão que possa proibir, impedir ou controlar o processo de acumulação privada e concentração que é intrínseco ao funcionamento do sistema. Só a questão da propriedade resolve essa equação. E a realidade confirmou-o. Os célebres testes de stress foram uma autêntica farsa (veja-se o caso do BES) e os governos geridos por forças políticas submissas ao capital financeiro tudo fazem para encobrir as maiores fraudes e fragilidades dos grandes grupos económicos. Acresce que a actuação da supervisão, que em parte já era controlada pelo BCE, se revelou contrária, no caso português, ao interesse nacional (e estamos ainda para ver no caso BANIF até onde foi essa actuação ou mesmo conspiração) e resultou sempre em deliberações ao serviço dos grandes bancos, nomeadamente, no caso português, da banca espanhola. E compreende-se que assim seja, a fusão do poder económico com o poder político explica-o.
Mas acresce um outro problema. É que, com o mecanismo único de supervisão, o BCE passa a acumular a gestão da política monetária e a supervisão do sistema financeiro. Ora, só um cego é que não vê. O BCE fixa as taxas de juro, compra e vende activos financeiros no mercado, injecta capital no sistema, e agora, como supervisor único, tem acesso à informação sobre todos os bancos do espaço da União Europeia. Se no caso do Banco de Portugal a promiscuidade com os grandes grupos económicos foi o que foi, imagine-se com tudo centralizado no BCE, na sua completa opacidade e evidente ligação aos mega-bancos. Simplificando, é o crime perfeito.
Mas a maior peça de propaganda da União Bancária, que seduz até Partidos ditos de esquerda, reside no seu terceiro pilar. O sistema de Garantia de Depósitos. Da mesma forma que a liberdade de circulação e a moeda que não precisamos cambiar para sair do país foram as cenouras atiradas para permitir o bastão da destruição do nosso aparelho produtivo e da aplicação do colete de forças do pacto de estabilidade e crescimento, também o sistema de garantia de depósitos é presidido pela mesma lógica. Ou seja, já privados de soberania económica e orçamental, os Estados perdem, com a União Bancária, soberania para gerir um sector fundamental e estratégico para as suas economias, e transferem para instituições supranacionais o poder de decisão sobre a garantia de depósitos até 100 mil euros. A manobra psicológica e ideológica é óbvia. Aos Estados fica a tarefa de cumprir as orientações e imposições, sem qualquer poder de decisão sobre o futuro do sistema financeiro, e também dos depósitos. À toda poderosa União Europeia é reservado o papel de guardião da segurança dos pequenos aforradores. Mas mesmo assim, o que a realidade está a demonstrar é que, tal como as ditas liberdades se resumiram à liberdade de circulação de capital, também a «segurança» será do grande capital e não dos pequenos depositantes, uma vez que a Alemanha está a impedir a concretização deste pilar. Ou seja, a mesma hipocrisia de sempre.
A mesma hipocrisia que preside a todas as políticas da União Europeia. Uma hipocrisia que esconde a sua verdadeira natureza, que engana e envolve em roupagens coloridas o negrume e opacidade de um processo que visa retirar aos Estados ainda mais soberania e garantir lucros e estabilidade ao grande capital financeiro nas conturbadas águas da crise do capitalismo.
Nestes tempos em que é por demais evidente o carácter parasitário, especulador, corrupto e insaciável do grande capital, o que a União Bancária verdadeiramente pretende é impedir que os povos possam tomar nas suas mãos caminhos alternativos para a gestão dos seus sistemas financeiros, nomeadamente por via daquilo que é hoje uma evidência: a necessidade imperiosa do controlo público da banca e de outros ramos do sector financeiro, como os seguros.
Afirmamos que este é o passo que, a seguir ao Euro, maior gravidade adquire no processo de integração capitalista. E de facto assim é. Aliás, tem um carácter complementar ao Euro. Se o Euro e os instrumentos a si associados, nomeadamente os mais recentes (Pacto de Estabilidade e Crescimento, Governação Económica, Semestre Europeu, Pacto Orçamental), visam condicionar o processo de decisão política nas políticas económicas e orçamentais – e isso tem as consequências que tem na nossa economia – a União Bancária faz o resto, retira aos Estados o poder de intervir num sector que faz bater o coração da economia. E mais, retira-lhes as próprias instituições financeiras, como já é notório no sistema financeiro português.
Ou seja, a transferência de soberania para instituições internacionais completamente enfeudadas ao poder do grande capital adquire proporções ainda mais inaceitáveis e incomportáveis. Para um país da nossa dimensão isso significa uma quase total dependência externa em quase todos os aspectos da vida económica.
Mas a União Bancária adquire ainda maior gravidade quando olhamos o conjunto das medidas que a União Europeia tem vindo a desenhar para tentar responder à sua própria crise. É impensável desligar a análise da União Bancária dos Instrumentos associados ao Euro, as medidas em curso para alargamento do Mercado Único, nomeadamente o Mercado Único de Capitais, bem como todo o processo contido no Relatório dos cinco presidentes, que visa a chamada verdadeira União Económica e Monetária.
Trata-se, no conjunto, de um apertar do cerco a países como Portugal, que visa institucionalizar, possivelmente nos Tratados, o domínio absoluto do directório de potências e uma matriz ideológica de regressão civilizacional. E não espanta que assim seja. Como a História nos ensina, o processo de integração capitalista, quando confrontado com crises, opta sempre por um de dois caminhos: ou o alargamento ou o aprofundamento da sua natureza de classe. Nesta fase, é esta segunda vertente que prevalece, desenvolvendo-se nos três pilares do processo de integração – neoliberal, militarista e de concentração e centralização do poder.
Um acentuar da natureza de classe capitalista, que nos dias de hoje pode ser simbolizada por três imagens que dão tanto conteúdo à palavra barbárie: a primeira, é a imagem das vítimas da guerra a serem concentradas em campos de deportação na Europa e a serem expulsas para campos de concentração na Turquia, de onde serão empurradas de volta para os teatros de guerra de onde fugiram.
A segunda imagem, são os mortos de Bruxelas. Vítimas de um terrorismo que se alimenta das guerras que a União Europeia em conluio com a NATO e os EUA desatam no Médio Oriente, sempre com o mesmo fim: concentrar poder e riqueza. E a terceira, são os massacres que na Ucrânia os nazi-fascistas, apoiantes do governo fantoche de Kiev apoiado pela União Europeia, levaram impunemente a cabo contra trabalhadores e sindicalistas. Os mesmos nazi-fascistas que há uma semana atrás irromperam nas ruas de Bruxelas e que tiram partido da política de esmagamento da soberania dos povos pela União Europeia.
São imagens que convocam todos aqueles que defendem a justiça social, o progresso, a paz e a cooperação para uma reflexão profunda sobre os caminhos da Europa. O sinais de desagregação e crise da União Europeia são muitos. A Europa e o Mundo caminham num rumo insustentável de conflitos, exploração e opressão. Mais do que nunca é necessário romper com esse rumo e abrir caminhos de esperança para a Humanidade. Na Europa esse caminho passa pela ruptura com um processo de integração que cada vez mais se coloca em rota de colisão com os interesses e direitos dos povos. Passa pela construção de uma outra Europa: dos trabalhadores e dos povos, da democracia, da justiça social, do progresso, da paz e da cooperação entre povos e países soberanos e iguais em direito.