Intervenção de Pedro Penilo, 2.º Encontro Nacional do PCP sobre Cultura

A luta em defesa da cultura

Em 2007, o Partido reuniu o seu I Encontro Nacional sobre Cultura. Tratava-se de reconhecer e analisar profundas transformações no sistema de produção cultural, nas condições do trabalho e dos seus trabalhadores, a extensa proletarização e o ataque à autonomia relativa que armava estas actividades, em consequência do processo de aguda mercantilização. Tratava-se de reconhecer e analisar as formas de agravamento da política de direita neste domínio, particularmente com o processo de privatização de responsabilidades públicas e de património comum. Tratava-se de reconhecer e analisar o processo de formatação ideológica, tanto com o objectivo de aceitar o desmantelamento das obrigações constitucionais do Estado, como de promover a permeabilidade das forças intervenientes a modos de mercantilização, colocando-os ao serviço da difusão da ideologia dominante. 

Feita a análise e estabelecidas orientações, colocaram-se de início dificuldades. A organização do Partido e o conjunto das forças organizadas no plano unitário não estavam preparadas para o desafio. A organização dos trabalhadores intelectuais acusava a perda de influência geral, tinha perdido quadros, não conseguia renovar-se e era deficiente a sua influência de massas. O trabalho unitário assentava sobretudo na mobilização de personalidades consagradas, democratas e progressistas, para acções públicas de fraco impacto. Por outro lado, nos meios do trabalho cultural e artístico imperavam uma visão oportunista sobre a solução política dos problemas, a influência de caciques, um desprezo geral e antigo pela acção colectiva organizada e a influência de uma visão elitista e classista da cultura e do seu trabalho. 

Imperava ainda a famosa "paixão do PS pela Cultura", que levava inúmeras personalidades a iniciativas de apoio ao poder vigente e a uma teia promíscua de inflências e interesses. Contudo, a realidade caiu pesada, a pretexto da crise financeira mundial. Em 2010, o Governo do PS executa cortes de 30%  nos apoios às artes contratados. Dá-se então um episódio que traduzia as deficiências na consciência política da massa de criadores, técnicos e suas estruturas, mas também as grandes potencialidades de luta, em desenvolvimento. O designado movimento das Plataformas das Artes, procurando reagir aos cortes de financiamento, organizou-se como um comité de lobby, composto por personalidades de reconhecido mérito artístico, mas profundamente comprometidas no apoio ao governo. Por outro lado, a iniciativa, gerando injustificadas expectativas, ganhou o entusiasmo de massas de trabalhadores, artistas e técnicos, precários, desmotivados, em perda contínua de rendimentos e trabalho, afastados do campo restrito dos apoios  da DGArtes, mas interessados na luta à política de direita. O confronto de interesses entre estes dois grupos acabou em choque e ditou o fim das plataformas, sem que nenhum dos problemas tivesse sido resolvido. Este conflito de interesses entre trabalhadores e empregadores, entre gente comprometida com a política de sempre e gente interessada numa ruptura, ainda que difusa, e as hesitações que provocava, paralisava a organização e a mobilização destes sectores para a luta.

Com a assinatura do Memorando da Troika e a tomada de posse do Governo PSD/CDS, o potencial de mobilização de trabalhadores da cultura é canalizado para a intervenção contra a política de direita, integrada em movimentos inorgânicos, mas não resulta em qualquer acção especificamente situada no campo da luta por uma nova política cultural, democrática e progressista, nem no reforço das suas organizações específicas.

Na organização do Partido são então tomadas decisões que alteram as suas condições de intervenção: renovação e mobilização de quadros e orientação resoluta para a acção de massas no plano unitário, reforçando as organizações sindicais existentes e criando novas organizações e linhas de intervenção. Nesse sentido, a intervenção do comunistas é decisiva para significativos acontecimentos como a decisão de criar o movimento Manifesto em defesa da Cultura, em 2011; a fundação do STARQ - Sindicato de Trabalhadores em Arqueologia, em 2012; e a fusão dos dois sindicatos das áreas das artes do espectáculo e do audiovisual num único sindicato — o CENA-STE, em 2017. Estas medidas foram determinantes para inaugurar um momento ímpar na luta dos trabalhadores e do povo português. Pela primeira vez na história do país abriu-se um eixo de luta organizada, continuada e militante por uma política democrática e pelo trabalho com direitos na Cultura. Pela primeira vez na história política deste país, a direcção da luta e a designação dos objectivos passou a ser das massas, dos comunistas e dos seus aliados e amigos.

O Manifesto em defesa da Cultura constituiu-se como o primeiro e até agora único sujeito político especificamente orientado para a luta geral em defesa da Cultura, contra a política de direita e por uma política democrática. Ao Manifesto se deve a difusão de importantes eixos do programa democrático, como o direito de todos à criação e fruição culturais, a exigência de um serviço público de Cultura e a consigna de 1% para a Cultura, colocando no centro do debate político a política do Estado e os seus orçamentos.

A criação do STARQ possibilitou a representação de um novo sector de trabalhadores — os trabalhadores em Arqueologia — e ganhou uma força mais no campo do movimento sindical unitário.

O processo de fusão dos dois sindicatos da área das artes do espectáculo e do audiovisual deu origem ao CENA-STE, sindicato, forte, de classe e orientado para a organização e mobilização dos trabalhadores em defesa dos seus interesses. Com a sua criação, abriu-se uma brecha mais no oportunismo sindical reinante, tornou-se possível mobilizar, potenciar e orientar importantes acções de luta em diferentes sectores.

Estas três organizações, em conjunto com a Federação dos Sindicatos de Trabalhadores em Funções Públicas e Sociais, a BAD - Associação Profissional de Bibliotecários, Arquivistas e Documentalistas, a Confederação das Colectividades de Cultura, Recreio e Desporto e dezenas de outras organizações de representação da produção artística e cultural, dinamizaram importantes posições políticas e acções conjuntas, particularmente contra os indigentes orçamentos do Estado e a política de direita de sucessivos governos.

A dinâmica gerada permitiu a realização das maiores acções de massas a que este país assistiu. Devem destacar-se as manifestações dos Dias da Cultura em Luta, em Lisboa e Almada, Junho de 2015, as grandes concentrações do Apelo pela Cultura, em Lisboa e Porto, Abril de 2018, marco de viragem na história da luta, as concentrações contra o OE de 2020, em Lisboa e Porto, Dezembro de 2019, e a concentração Parados, nunca calados!, em Lisboa, Junho de 2020.

Pelo seu impacto e pela demonstração de unidade e firmeza demonstradas, devem destacar-se ainda as lutas desenvolvidas em diversos locais de trabalho: nos museus, na Fundação Côa Parque, dos trabalhadores em arqueologia da DGPC, na Plural, no CCB, nas estruturas integrantes da OPART — Teatro Nacional de S. Carlos e Companhia Nacional de Bailado, e ainda na Casa da Música.
 

Os ganhos alcançados com a acção dos comunistas, dos democratas, dos trabalhadores e do povo são incomensuráveis:

  • ganhou a continuidade, a consistência e a intensidade da luta em defesa da Cultura e do trabalho na Cultura;
  • ganhou primazia a luta organizada e militante;
  • reforçaram-se as organizações de classe;
  • politizou-se a luta de massas, com o estabelecimento de eixos de um programa democrático para a cultura: democratização, direito à criação e fruição, trabalho estável e com direitos, melhoria das condições de vida do povo, liberdade e diversidade culturais, contra a desresponsabilização do Estado e contra a mercantilização, serviço público de cultura e 1% do OE para a cultura;
  • ganhou a a unidade dos diferentes sectores e das suas organizações e estruturas, unidade da luta da Cultura com a luta geral do povo e dos trabalhadores;
  • enriqueceu-se o património de reivindicação e luta do povo português.
  • foram seriamente abaladas verdades adquiridas, como a das vantagens da precariedade e da intermitência no trabalho cultural, a da inevitabilidade do carácter concursal dos apoios às artes e a da impossibilidade de um aumento robusto do investimento público;
  • não menos importante — reforçou-se e renovou-se de modo notável a organização dos trabalhadores intelectuais do Partido, permitindo confiar que a luta futura encontrará ganhos ainda maiores.

A crise pandémica aprofundou de modo dramático a crise gravíssima que já se vivia na Cultura:

  • destruiu o tecido social e organizativo;
  • acentuou o abandono das profissões;
  • reduziu drasticamente o fluxo de rendimentos e de financiamento público;
  • afectou gravemente ainda mais a qualidade da produção cultural;
  • serviu para aprofundar a política de direita e a exploração do trabalho, apesar das propostas concretizadas do PCP no sentido de prover o máximo de apoio às estruturas e aos rendimentos

contra a política de direita, os trabalhadores das artes e da cultura deram resposta firme, particularmente com a iniciativa do CENA-STE, acompanhado pelo Manifesto em defesa da Cultura e por outras organizações, associações e grupos entretanto criados em diferentes sectores, de monitorização, de resistência e de luta pelos direitos.

A história dos desenvolvimentos aqui descrita sugere as seguintes premissas para o trabalho futuro:

  • a direcção contínua, organizada e militante — com os comunistas e todos os democratas e progressistas;
  • a acção de massas e de classe;
  • a unidade na luta, entre sectores — artes, património cultural, investigação, divulgação e informação pública e associativismo popular cultural;
  • a integração com a luta geral dos trabalhadores e do povo — contra a precariedade e a exploração, pela melhoria das condições de vida e de trabalho do povo português;
  • um programa democrático, em defesa da Constituição da República, articulando reivindicações específicas e sectoriais com os eixos políticos mais avançados;
  • e particularmente a defesa do valor sem preço da Cultura, valor a defender e a promover em benefício da liberdade e da diversidade culturais.

A luta vai continuar. Entre outros, apresentam-se os seguintes eixos para o trabalho futuro:

  • o reforço das capacidades e dos meios das organizações e alargamento do número e qualidade dos activistas envolvidos, em todo o território nacional - do CENA-STE, do STARQ, de outras estruturas sindicais, do Manifesto em defesa da Cultura, do movimento associativo popular e da sua Confederação, e de outras organizações representativas, sectoriais ou estruturas de produção;
  • a intensificação e alargamento da luta
  • o aprofundamento da unidade na acção
  • a divulgação e discussão dos eixos do programa democrático para a Cultura
  • a defesa da concretização do serviço público de Cultura e do seu instrumento fundamental de viabilização, a atribuição de um mínimo de 1% do Orçamento do Estado para a Cultura e a constituição de um plano plurianual de financiamento.
  • Cultura
  • Central
  • Democratização da cultura
  • Liberdade cultural
  • serviço público de cultura