Caros Camaradas e amigos
Estimados convidados
A realização desta sessão sobre as grandes opções do Conceito Estratégico de Defesa Nacional dificilmente poderia ser mais oportuna.
A evolução da situação na Europa e no Mundo é marcada por uma grande turbulência, por grandes perigos e também por grandes alterações nas relações internacionais, algumas de fundo, que colocam grandes exigências a Portugal e simultaneamente abrem perspectivas no seu relacionamento internacional.
Creio ser útil começar por sistematizar as seguintes tendências do desenvolvimento da situação internacional:
- Aprofundamento da crise estrutural do capitalismo, com quase duas décadas de crises ininterruptas que, mais do que sucessivas, são cumulativas na tendência de acentuação de todas as contradições inerentes à natureza do sistema dominante. É hoje mais evidente a incapacidade do capitalismo em dar resposta aos principais problemas da Humanidade e de resolver questões de fundo nomeadamente na esfera produtiva da economia, enquanto, face à incomensurável financeirização da economia e acumulação e centralização de riqueza, gera mais frequentes e maiores picos de crise;
- Sucessivas situações de instabilidade e mesmo disrupções no funcionamento da economia e cadeias de valor e abastecimento resultantes de alterações na divisão internacional do trabalho, e de tendências, ainda que com elementos contraditórios, de desindustrialização e perda relativa de vantagem tecnológica e científica das principais potências capitalistas;
- Rápido alargamento dos fossos sociais, que atingem dimensões insuportáveis para imensas massas da população, tendência que se poderá aprofundar quer face à crise económica em desenvolvimento, quer face às opções presentes na chamada dupla transição (verde e digital), que apontam para ainda maiores níveis de concentração e centralização da riqueza, realidade que pode provocar enormes convulsões sociais e políticas;
- Enorme visibilidade do desenvolvimento desigual do capitalismo, com vastas contradições que afectam relações económicas, comerciais, diplomáticas e geoestratégicas, quer dentro do próprio campo imperialista, quer entre o (ainda) centro e a (ainda) periferia do sistema, e que simultaneamente provocam outras convulsões do capitalismo, como por exemplo no plano demográfico;
- Alterações significativas no movimento das placas tectónicas da geopolítica internacional com um processo de rearrumação de forças à escala mundial que põe em causa a posição das principais potências imperialistas e sobretudo a hegemonia dos EUA instaurada após o desaparecimento da União Soviética. Um processo onde sobressaem a afirmação de países, como a China, e as alterações no xadrez das relações internacionais nomeadamente com o aumento da importância das relações “sul-sul” e a instituição de espaços de relacionamento e cooperação, com elementos de integração, fora do domínio e da lógica imperialista, como é o caso dos BRICS, entre outros, nomeadamente na América Latina e Ásia.
Neste aspecto particular, importa realçar que parte da resposta das “velhas” potências, principalmente dos EUA, a estas alterações é marcada por um “regresso” (que no fundo não o é, apenas teve menor visibilidade nos últimos 30 anos) à lógica dos blocos, ferreamente dirigidos de forma centralizada pelos EUA e pelo amarrar dos seus ditos “aliados” à imposição daquilo a que chamam agora a “nova ordem com regras”;
- Crise do sistema político liberal-burguês, das suas instituições e estruturas de poder, com elementos de crescente turbulência do binómio concertação/rivalidade, com instabilidade crescente no plano da influência e arrumação das forças partidárias ditas tradicionais (a denominada social-democracia e direita dita tradicional) e com a promoção de forças reaccionárias e fascistas como forma de conter os riscos de desequilíbrios entre as forças do capital e do trabalho, factor que poderá ter influência nas relações entre Estados e no funcionamento de estruturas internacionais ou regionais, como é já visível no caso da União Europeia;
- Aprofundamento das tentativas de instrumentalização da ONU, dos seus órgãos e agências, com um percurso que não sendo novo poderá levar ainda mais longe a perversão do direito internacional e sobretudo dos princípios constantes da Carta das Nações Unidas e da Acta Final de Helsínquia;
- Evolução da situação no continente europeu marcada por sérios problemas económicos e sociais, de regressão demográfica, de contracção da esfera produtiva e perda relativa de centralidade nas áreas tecnológica e científica das principais potências europeias e por enormes contradições emergentes da chamada desacoplagem da Rússia e da China, imposta pelos EUA no contexto do conflito em curso;
- Submissão crescente da União Europeia aos EUA, com a sua paulatina transformação numa caixa de ressonância, quase fio condutor, do conceito estratégico dos EUA, nomeadamente no que respeita à confrontação com a Federação Russa e à identificação da República Popular da China como principal adversário estratégico. Uma União Europeia que, embora com contradições, assume, cada vez com menos preocupação de disfarce, a sua natureza imperialista com cordão umbilical transatlântico, com uma matriz política cada vez mais reaccionária, pilar europeu da NATO, prosseguindo as linhas estratégicas da militarização, concentração de poder determinado pelas suas grandes potências, centralização de capital, neoliberalismo e privatização de todas as esferas da vida social e ataque generalizado à soberania dos Estados e à democracia;
- Novo ciclo de aprofundamento da militarização das relações internacionais com a aposta das potências imperialistas no militarismo, no belicismo, na ingerência e na provocação internacional, elementos centrais da tentativa de contrariar a tendência de declínio relativo dos EUA e principais potências europeias e dos seus instrumentos de domínio internacional. Uma estratégia que aposta cada vez mais na tentativa de isolamento e supressão dos recalcitrantes, nas chamadas “guerras hibridas” e cercos geoestratégicos, nas operações de destabilização e ingerência, na tentativa de imposição de relações neo-coloniais (nomeadamente no continente africano), no alargamento e desenvolvimento tecnológico da indústria da guerra. Uma estratégia que concebe cada vez mais as forças armadas dos Estados membros da NATO como destacamentos de um “exército único” com características, funções e missões decididas por estruturas de poder e comando cada vez mais centralizadas;
- Medidas de tonificação do músculo NATO para cumprir o papel de núcleo condutor e executor da estratégia dos EUA, numa deriva militarista e de corrida aos armamentos com ritmos e dimensões nunca vistos depois da 2ª Guerra Mundial. NATO que foi alterando o seu conceito estratégico visando a sua afirmação como uma organização global, de carácter ofensivo, com ramificações regionais já constituídas ou em constituição, de modo a concretizar os planos de cerco geoestratégico. Uma organização concebida para intervir em quase todas as esferas e em todas as regiões, e em vários aspectos tentando-se substituir, perverter e esvaziar o papel da ONU.
Caros amigos, camaradas e convidados,
Estes são importantes aspectos que caracterizam o quadro geral. Se não quisermos que Portugal se transforme a prazo num País totalmente dependente, região periférica de uma potência imperialista, um mero protectorado, é necessário alterar significativamente as grandes opções da política externa portuguesa, reaproximando-a dos princípios e comandos constantes da Constituição da República Portuguesa.
É essa a grande base em que assentam as propostas do PCP que hoje aqui abordamos.
Portugal precisa percorrer vários caminhos essenciais e complementares:
- Deve criar as condições para enfrentar cenários de grande instabilidade e incerteza, possivelmente prolongados, garantindo a sua soberania e capacidade de decisão própria em sectores estratégicos para o seu desenvolvimento endógeno e independência nacional como são as áreas da alimentação, energia, transportes, infra-estruturas estratégicas e comunicações, produção industrial, segurança, ciência e tecnologia, entre outras;
- Necessita de se afirmar internacionalmente por via do desenvolvimento do seu sistema produtivo, da elevação das condições de vida do seu povo, da sua formação, aptidões e cultura e não apenas por via da natural atractividade turística e cultural que nos caracteriza;
- Necessita agir para um questionamento global das relações no continente europeu, nomeadamente por via de uma reconsideração do enquadramento institucional da União Europeia, e de esforços concertados com outros Estados para um novo quadro institucional de verdadeira cooperação entre estados soberanos e iguais em direitos;
- Tem de apostar decisivamente numa larga diversificação das suas relações externas, protegendo-se e distanciando-se da lógica de blocos e tirando partido da geometria variável de relações que está em desenvolvimento. A nossa dimensão marítima e posição geoestratégica; a nossa identidade, língua e cultura tradicionalmente aberta ao Mundo; a nossa relativa estabilidade político-constitucional e de fronteiras; as nossas relações tradicionais com os países da CPLP, mas também com países como a China ou a India; as nossas condições naturais, paisagísticas, geográficas e ambientais, conferem-nos condições favoráveis para desenvolver os nossos instrumentos de soberania, inverter o afunilamento (ou afundamento) das relações externas no eixo-transatlântico, diversificando-as de forma alargada quer no plano bilateral quer multilateral e de cooperação mutuamente vantajosa;
- O quadro com que estamos confrontados reforça a necessidade de Portugal se dissociar das lógicas da confrontação e instigação de conflitos, e agir no sentido da paz, da resolução pacífica dos conflitos, do desarmamento simultâneo e controlado, desde logo do armamento nuclear, do fim dos blocos político-militares, desde logo a NATO, pugnando por uma abordagem colectiva das questões de segurança colectiva e pela defesa dos princípios da Carta das Nações Unidas. Deve ser firme e coerente na defesa da soberania dos Estados e da sua integridade territorial, na rejeição da ingerência nos assuntos internos dos Estados, e no respeito pelos direitos dos povos à autodeterminação, ao desenvolvimento e à gestão soberana dos seus recursos e sectores estratégicos;
- A paz, a cooperação, a estabilidade internacional e o primado dos princípios constantes da Constituição da República e da Carta da ONU são condições essenciais para a nossa soberania, progresso e desenvolvimento. Para tal Portugal não pode deixar de defender uma reforma democrática da ONU que termine com a tendência da sua instrumentalização pelas grandes potências e da perversão do Direito Internacional.
Camaradas e amigos:
Contrariamente a algum contrabando ideológico que por aí circula o PCP não defende, como alguns afirmam falaciosamente, nem uma política externa assente num qualquer alinhamento ideológico desligado dos interesses nacionais, nem uma política de isolamento. Pelo contrário, o que o PCP contesta é uma política externa cada vez mais condicionada por um pensamento único, esse sim profundamente ideológico e contrário aos interesses nacionais.
A internacionalização da economia, a crescente divisão internacional do trabalho, a interdependência e cooperação entre Estados e os processos de cooperação e integração correspondem a realidades objectivas e tendências de evolução não exclusivas do capitalismo. Em função da sua orientação, características e objectivos, tais processos podem servir os monopólios, ou os povos. Podem assentar na lógica do domínio ou assumir a livre cooperação como premissa central. É essa a nossa abordagem.
O interesse nacional, entendido como o interesse dos trabalhadores e do povo português, não choca com os interesses de outros povos. As grandes opções que hoje aqui abordamos para o Conceito Estratégico de Defesa Nacional inserem-se numa visão progressista que responda ao grande desafio de colocar a política externa portuguesa ao serviço dos trabalhadores e do povo e simultaneamente, defendendo as relações internacionais baseadas na igualdade soberana entre Estados, na justiça e na paz, combater as derivas nacionalistas e reaccionárias com que as classes dominantes tentam perpetuar o seu domínio e acentuar a exploração e opressão dos povos.
Assumindo-se como herdeira e continuadora dos valores da Revolução de Abril, a política que o PCP defende olha para o nosso País como defensor da cooperação e da paz, nação aberta ao Mundo, que deseja e pode cooperar em pé de igualdade com outros povos na construção de um Mundo mais justo, seguro, pacífico, desenvolvido e sustentável.