Não seria demasiado atrevido afirmar que a essência da União Europeia é o mercado único e a moeda única. Também se poderiam incluir as políticas comuns, ou melhor, para não destoar do adjectivo, as políticas únicas, mas estas servem, acima de tudo, para reforçar aqueles.
Alguém, com um pouco de cinismo até poderia acrescentar que o resto é papel de embrulho. Mercado único, moeda única. Um e outra, únicos. Mas quando se trata de forma igual o que é diferente e está em situação diferente, os resultados não são iguais para todos, também são diferentes. Entre os fortes e os fracos, protegem-se os fortes em vez dos fracos, ganham os fortes e perdem os fracos. Entre os que dominam e os que são dominados, os que exploram e os que são explorados, os que oprimem e os que são oprimidos, ganham os que dominam, exploram e oprimem, perdem os dominados, explorados e oprimidos. Sejam classes sociais, sejam populações, sejam empresas, sejam países. E é, fundamentalmente, isso mesmo que é a União Europeia, o mercado único, a moeda única, as políticas únicas. Instrumentos de dominação, de exploração, de opressão. Mecanismos de transferência de rendimento e de riqueza do trabalho para o capital; das micro, pequenas e médias empresas para as grandes empresas; das actividades produtivas para as actividades financeiras; dos países menos desenvolvidos para os países mais desenvolvidos. Isto é, de transferência de valor e valor acumulado, de baixo para cima, na pirâmide social, e de dentro para fora, nas nações periféricas. Mecanismos de submissão dos interesses dos povos às necessidades de valorização e acumulação de capital das grandes transnacionais e do capital monopolista à escala europeia, representadas pelos Estados poderosos do centro e pelas instituições europeias que estes criaram para conciliar e defender aqueles interesses. Seja no continente europeu, seja no mundo.
O euro, com as suas regras e os seus derivados, nomeadamente o Pacto de Estabilidade e Crescimento, o Tratado Orçamental e a União Bancária, é uma máquina de exploração, de espoliação, de privatização, de «desnacionalização», de concentração e centralização de capital, de contenção da despesa pública (a que alguns chamam de austeridade), de financeirização e de especulação. Serve a acumulação de capital, não serve o desenvolvimento dos povos.
O desenvolvimento do nosso país e o progresso do nosso povo inevitavelmente colidem com os interesses do grande capital europeu, e do grande capital nacional a ele rendido e subordinado. Exigem, por isso, arrancar-lhes das mãos, ou das mãos das suas instituições, os instrumentos –de decisão, de regulação e de intervenção – que usurparam ao nosso país.
A geração, a circulação, a distribuição e a repartição do valor, criado pelos trabalhadores, que sustenta a sociedade (capitalista) em que vivemos, dependem do financiamento, do investimento, da regularidade dos fluxos monetários e, por isso, de uma adequada criação monetária, pelo banco central, na sua actividade emissora e de regulação dos juros, e pelo sistema bancário, na concessão do crédito.
Não se espere do euro nem o que este não pode ser, nem o que este não pode dar. Defender os interesses populares, defender os interesses nacionais não se faz com o euro, faz-se enfrentando a submissão ao euro. No PCP temos disto uma consciência aguda. Não alimentamos ilusões.
A recuperação de uma moeda, de um banco central e de uma política financeira, cambial e orçamental nacionais, ao serviço dos interesses nacionais, bem como de um sistema bancário sob controlo nacional e público, são condições fundamentais do desenvolvimento do país e componentes imprescindíveis da política que propomos.
Não chegámos agora a essa conclusão. Temo-lo dito repetidas vezes, e incorporado essa exigência na política alternativa, na política patriótica e de esquerda, que propomos ao povo português.
Portugal precisa de uma moeda adequada às suas realidades, às suas especificidades, às suas necessidades, às suas potencialidades. Já bastam os constrangimentos da concorrência capitalista, do mercado mundial, da geopolítica internacional. Não necessitamos de atar ainda mais os pés e as mãos do nosso povo com os constrangimentos da moeda única europeia. Portugal precisa de margens de manobra para aproveitar os seus recursos, investir, crescer, progredir.
A libertação da submissão ao euro representaria a conquista de um enorme campo de manobra. Desde logo para proteger o país nas tormentas das crises, recorrendo aos alívios, transitórios, obtidos com uma eventual desvalorização da moeda, com uma eventual maior margem orçamental ou com um eventual reforço de liquidez ao sistema bancário.
Constituiria uma alavanca crucial de estímulo económico ao se readquirir possibilidades de financiamento, criterioso e responsável, do investimento, das actividades produtivas, da modernização tecnológica, da qualificação dos trabalhadores, da consolidação do sector empresarial público, do saneamento de empresas privadas. De modo a melhorar os salários, o consumo, os níveis de vida, o volume e a repartição do rendimento nacional.
Recuperar a soberania monetária para ajudar a desenvolver o país, eliminar entraves e contribuir para um futuro de maior prosperidade e justiça social. Libertar o país da submissão ao Euro, recuperar a soberania monetária é um processo que, tal como sucedeu com a integração, exige a sua preparação. Um processo difícil, exigente e complexo, mas um processo que é possível se essa for a vontade e a determinação soberana do povo. Um processo que tem e terá custos. Negá-lo seria iludir a realidade.
Queremos aqui afirmar que o PCP não ignora os custos de um processo de recuperação da soberania monetária. Mas custos que são incomparavelmente menores aos que resultam já hoje, e se projectam ainda mais no futuro, com as regras e imposições do Euro que criam desemprego, injustiças, desigualdades e atraso.
Para a libertação do país da moeda única, Portugal pode e deve intervir no plano da UE e preparar-se no plano nacional. Uma preparação ampla e multifacetada que, como a vida está a demonstrar, deve ter em conta várias dimensões e realidades, designadamente:
– Deve assegurar a independência do Banco de Portugal em relação ao BCE, com a reassunção de todas as competências e funções que tinha como banco central antes da adesão;
– Deve pugnar pela adopção de um quadro de medidas transitórias que garanta a estabilidade e regular funcionamento da economia, a defesa dos salários, dos rendimentos, das poupanças e dos níveis de vida da população, o combate à fuga de capitais e o adequado funcionamento do comércio externo face às novas condições da economia portuguesa;
– Deve considerar a adopção das medidas políticas, técnicas e jurídicas que garantam a circulação e consolidação da nova moeda;
– Deve garantir a implementação do regime de câmbio que se vier a revelar mais favorável à defesa dos interesses nacionais;
– Deve promover a promoção da convertibilidade, da cotação e da negociação internacionais da nova moeda;
– Deve assegurar o acréscimo de fiscalização, intervenção e controlo público dos bancos privados e de outras instituições financeiras;
– Deve contemplar a conversão da dívida emitida segundo a lei nacional, incluindo a dívida emitida pelo Estado e por entidades privadas residentes, para a nova moeda, assegurando a compensação dos pequenos aforradores, da segurança social, do sector público administrativo e empresarial do Estado e dos sectores cooperativo e mutualista;
– Pode admitir soluções de protecção de depósitos em euros;
– Terá de precaver a conversão de todas as operações e transacções monetárias, incluindo as obrigações decorrentes de contratos, nomeadamente de arrendamento, para a nova moeda;
– E tal como estamos a verificar agora, e sem o sobressalto de uma saída do Euro, a adequação do valor do salário mínimo, do salário médio da função pública e do sector público e das pensões e prestações sociais às variações da inflação. E ao mesmo tempo, garantir a criação de sistemas de regulação de preços, com definição de preços máximos em bens e serviços, combatendo pressões inflacionistas.
Ao longo dos últimos 20 anos a realidade não tem estado imutável. Tivemos países que saíram da União Europeia, temos processos que estão em curso e sem desfecho certo como o das relações entre o Reino Unido e a Irlanda, há hoje toda uma discussão em torno de decisões futuras e desenvolvimentos dos tratados, com forças, entidades e países a posicionarem-se em função dos seus interesses.
A realidade está em movimento e o país não pode ficar parado. O pior que nos poderia suceder, seria uma vez mais, os governos portugueses serem meros expectadores das decisões de terceiros.
Entretanto, sem deixar de colocar a libertação da submissão ao Euro como uma necessidade futura, não abdicamos da intervenção na actualidade, nas condições adversas da actualidade, dentro do euro.
Também aqui há que aproveitar folgas, oportunidades e conjunturas, explorar contradições e dificuldades da política de direita, potenciar forças e recursos, resistir a excessos de zelo e novas abdicações.
Por exemplo, combater o endividamento externo e a inflação, apostando na produção nacional, em vez de refrear o consumo e o investimento. Combater a dívida pública (e mesmo o défice), relativamente ao produto, promovendo o crescimento económico, com o aumento, em vez da diminuição, do investimento público. Diminuir os custos das empresas, particularmente das MPME, incentivando o aumento da produtividade e redução dos custos de contexto, em vez da contenção salarial. Aumentar os salários para uma mais justa distribuição do rendimento, para dinamizar o mercado interno, para estimular a produtividade e aproveitar os ganhos de produtividade para aumentar os salários. Melhorar os serviços públicos, aumentando as receitas do Estado, com uma fiscalidade mais justa, em vez de mais reduzida. Defender a segurança social, diversificando as fontes de financiamento, em vez de congelar o valor das reformas, dos subsídios e de outras prestações sociais.
Ao longo dos anos, o PCP identificou problemas, estudou soluções e propostas, apontou um caminho alternativo à política de direita que se desenvolveu no país. Num momento particularmente complexo no plano nacional, mas também internacional, o PCP propõe ao povo português um rumo e uma política alternativa. Uma política patriótica e de esquerda que rompe com imposições externas e interesses contrários aos dos trabalhadores e do povo. Uma política que assume a defesa dos interesses nacionais e que se desenvolve de forma a assegurar o cumprimento da Constituição da República.