Boa tarde a todos e obrigada pelo convite.
Saúdo todos os colegas de painel e todos os que nos estão a ouvir.
Proponho-me começar esta intervenção a partir da abordagem de um dos mitos que povoam o discurso laudatório da integração capitalista europeia, com o qual convivemos desde antes da adesão de Portugal à então Comunidade Económica Europeia.
Afirmou Mário Soares, em 1985, que a adesão proporcionaria aos portugueses “padrões de vida e bem-estar verdadeiramente europeus” e que abriria “novas perspectivas de potencialidades de progresso e justiça social” para “o povo trabalhador de Portugal”.
Sem esquecer a dinâmica mais geral, impulsionada por Maastricht e pela moeda única, abordarei alguns exemplos concretos de legislação ou iniciativas relacionadas com a área do trabalho e direitos sociais.
Comecemos por 2003, ano em que entrou em vigor a chamada Directiva “Tempo de Trabalho” que estabeleceu referências para a organização do tempo de trabalho, onde se incluem:
- Uma duração média do trabalho semanal que, na prática, permite exceder as 40 horas, o que significa não um avanço mas um recuo de décadas;
- a possibilidade de um período mínimo de descanso semanal de apenas 24h;
- o encurtamento do horário nocturno definido entre as 24h e as 5h e a consequente redução do pagamento pela sua prestação.
Esta Directiva e as sucessivas alterações (apesar de não terem ido tão longe na regressão quanto os seus criadores pretendiam), nivela por baixo os padrões de referência para as condições de vida e de trabalho na Europa, constituindo uma pressão negativa sobre quadros legislativos mais favoráveis ao trabalhador, contribuindo de forma preponderante para o prolongamento do tempo de trabalho e para a desorganização da vida do trabalhador.
Na prática, apesar dos proclamados pios objectivos, esta diretiva não protege nem melhora as condições de trabalho e de vida dos trabalhadores. Antes pelo contrário: insere-se num contexto de promoção da concorrência entre a força de trabalho de origens nacionais distintas, o que leva à sua desvalorização geral. No confronto entre o trabalho e o capital, a directiva toma claramente o partido deste último.
Antes disso, em 2000, já a Estratégia de Lisboa prometera criar na UE “a economia do conhecimento mais competitiva e dinâmica do mundo”. Como se viria a verificar, no seu desenvolvimento, esta Estratégia mais não trouxe que desemprego, desregulamentação das leis laborais (em Portugal com o Código do Trabalho), ataques aos serviços públicos e às funções sociais dos estados. A tão badalada flexisegurança, na altura apresentada como o novo paradigma do desenvolvimento, foi fazendo caminho para que, em Portugal e em outros países da UE, se acentuasse a precariedade, a desregulação e a liberalização, com trabalho sem direitos e despedimentos sem regras, fragilizando ainda mais o trabalhador perante o capital.
Em 2017, a aprovação do chamado Pilar Europeu dos Direitos Sociais, em Gotemburgo, e o seu plano de acção apresentado, em 2021, durante a Presidência Portuguesa do Conselho, como nova iniciativa para reforçar a “dimensão social” da UE, não trouxe, na verdade, qualquer novidade.
Esta iniciativa mantém intocado o conjunto das políticas associadas à Governação Económica, ao Semestre Europeu, à União Económica e Monetária ou ao Tratado Orçamental. As mesmas políticas que promoveram ataques aos direitos laborais e sociais, e relativamente às quais se vislumbra o seu aprofundamento, com mais exploração e empobrecimento.
No conjunto dos 20 pontos deste plano de acção estão ausentes quaisquer propostas para o aumento de salários, o combate à precariedade, a defesa da contratação colectiva, uma melhor distribuição da riqueza.
Mais recentemente, a propaganda europeia esmerou-se para promover a Diretiva dos Salários Mínimos ditos Adequados. Em países como Portugal, esta directiva pode tornar- se um perigoso instrumento de estagnação geral dos salários e, por consequência, do salário mínimo nacional.
Limitar a adequabilidade dos salários a indicadores, e a estes indicadores em concreto, significa, por um lado, admitir e aceitar que trabalhadores que ganhem o salário mínimo sejam condenados a uma situação de pobreza.
E, por outro lado, significa condicionar a futura evolução ascendente do salário mínimo à evolução da restante massa salarial.
É verdade que a diretiva não retira aos governos a capacidade de definir o valor do salário mínimo que entenderem justo e adequado para se viver de forma digna.
Mas também é verdade que dá motivos, aparentemente técnicos, para a Comissão Europeia, o grande patronato e os seus governos tentarem impedir justos e dignos aumentos do salário mínimo em países como Portugal, onde o governo e as associações patronais se apressaram a afirmar que já cumprimos estes indicadores - 60% do salário mediano bruto e o 50% do salário médio bruto.
Esta será, assim, uma porta aberta para eventuais futuras novas ultrapassagens, para deslizarmos ainda mais em direção à “cauda da Europa”, também no plano dos salários.
Os trabalhadores portugueses sabem que o Salário Mínimo Nacional está muito aquém do adequado e que o que se exige é um aumento geral de salários e do salário mínimo nacional.
No final do ano passado, a Comissão Europeia publicou uma Comunicação bem como recomendações ao Conselho Europeu sobre o Reforço do diálogo social, usando bonitas palavras de suposta defesa do diálogo social, de promoção da contratação colectiva e do aumento da sua cobertura.
Mas olhando bem, vemos que renega, por um lado, o decisivo contributo das políticas da UE, através dos mais variados mecanismos, para a diminuição da cobertura das convenções colectivas de trabalho e para o enfraquecimento dos direitos à organização, acção, negociação e contratação colectivas.
O Livro Verde – Modernizar o direito do trabalho para enfrentar os desafios do século XXI, as recomendações específicas por país, direcionadas aos Estados-Membros no âmbito do Semestre Europeu, e os chamados programas de assistência financeira têm sido peça fundamental no ataque aos direitos dos trabalhadores e, entre eles, aos direitos à organização, acção, negociação e contratação colectivas.
Por outro lado, esta Comunicação visa trilhar o caminho da dinamização da “negociação colectiva europeia” e de celebração de “acordos europeus” que terá como consequência retirar poder de organização e acção às organizações sindicais nacionais, onde a força organizada dos trabalhadores mais se pode fazer sentir, bem como fragilizar a sua autonomia e independência. E, ao mesmo tempo, irá promover a centralização desse poder em estruturas sindicais supranacionais, empobrecer a participação e decisão dos trabalhadores e o vínculo com a situação específica sectorial e nacional, tendendo a torná-los supérfluos ou em veículos de implementação de acordos contrários à defesa dos direitos e interesses dos trabalhadores e da soberania nacional dos Estados-Membros.
Estimados amigos e camaradas, é por demais evidente que a convergência social “ascendente”, que tanto prometeram, não passa de um mito, nunca tendo sido efectivada na vida dos trabalhadores e do povo português.
E a realidade tem sido bem diferente:
- O propalado «modelo social europeu», fruto da luta de gerações de trabalhadores, foi sendo estilhaçado, através da crescente liberalização e desregulação das relações laborais, da amputação do direito de contratação colectiva, da negação do direito ao trabalho e ao trabalho com direitos, da precariedade, do desemprego, do aumento da pobreza e da idade da reforma, da acentuação das desigualdades, das privatizações de empresas, serviços públicos e de funções sociais dos estados, limitando, entre outros, o direito à saúde, à educação, à habitação, à segurança social;
- e assistimos à negação do direito ao progresso e ao desenvolvimento dos países de economias mais frágeis e dependentes, como Portugal.
Cada Estado-Membro onde os trabalhadores perdem força e veem degradada a sua situação, por via da aplicação do receituário neoliberal da UE, acrescenta pressão sobre os trabalhadores dos demais Estados-Membros para a aplicação do mesmo receituário. É esta a dinâmica prevalecente na União Europeia e imposta a partir das suas instituições. Do norte ou do sul, do leste ou do oeste, do centro ou da periferia, a ideia de convergência no progresso redundou num nivelamento por baixo das condições de vida e de trabalho na Europa.
Em Portugal, no ano de 2022, assistimos a uma redução do peso dos salários no conjunto da riqueza produzida sem paralelo desde a adesão à CEE.
Perante esta realidade, há soluções que urge tomar para garantir o futuro do país.
A defesa dos direitos dos trabalhadores e dos povos, a construção de políticas de desenvolvimento soberano, confrontam-se inevitavelmente com os constrangimentos que emanam das políticas e orientações neoliberais da União Europeia, dos seus tratados, da sua legislação, das suas instituições.
Nesse confronto, terá de prevalecer a afirmação de uma política alternativa, patriótica e de esquerda, construída sobre os valores de Abril, e que faça cumprir a Constituição.
Uma política assente na valorização das condições de vida do povo e dos trabalhadores, no aumento de salários, numa justa distribuição da riqueza, na redução e regulação dos horários de trabalho, na regulação das normas laborais e na defesa intransigente da contratação colectiva, no combate à precariedade, na defesa da criação de postos de trabalho permanentes, na implementação de políticas públicas de emprego, e políticas de investimento orientadas para a dinamização da produção nacional, na defesa da segurança social pública universal e solidária e nas funções sociais do Estado!
Uma política que garanta o acesso público, gratuito e de qualidade aos serviços de saúde e educação, de prestação de cuidados na infância através de redes públicas de creches, de prestação de cuidados na doença e na velhice, a defesa dos direitos de maternidade e paternidade. Mas também o acesso e fruição da cultura, do desporto e do lazer.
A construção de uma verdadeira Europa Social, dos trabalhadores e dos povos, não pode ser alcançada no edifício estrutural da União Europeia. Exige, ao invés, a sua derrota. Será na construção da Europa que preconizamos, uma Europa de cooperação entre Estados soberanos e iguais em direitos, que a Europa dos trabalhadores e dos povos, fruto também da convergência das suas lutas, poderá ser materializada. Uma Europa de progresso e justiça social!
Muito obrigada!