Quem alguma vez tenha lido – com olhos e voz e ouvidos de ler – poemas de um Bocage ou de um Cesário Verde, certos versos de um Camilo Pessanha ou de um Pessoa, de um Carlos de Oliveira ou de um Eugénio de Andrade, de uma Sophia ou de um Jorge de Sena, sem esquecer um Gastão Cruz, um Manuel Gusmão ou um Ary, quem depois disso se disponha a reler ou a ler Camões (c. 1524 – 1579 ou 1580), dá conta desta realidade: que as sofisticadas dicções daqueles poetas, as cadências das suas frases, os decassílabos, os versos de redondilha maior ou mesmo o seu versilibrismo dificilmente seriam o que são, e soariam como soam, se não tivesse existido, na literatura portuguesa, o esplendor da poesia camoniana. A música da língua de Camões, da nossa língua, está vivíssima no sangue destes poetas. E se “da minha língua vê-se o mar”, como recorda a repetida frase de Vergílio Ferreira e como atesta a poesia de Sophia, acreditem que, se tal acontece, é também porque, debruçados sobre muitos passos d’Os Lusíadas ou das canções, é de facto o mar o que vemos e ouvimos.
Quem consegue ficar indiferente à sedução visual e acústica de passagens como esta:
Já no largo Oceano navegavam,
As inquietas ondas apartando;
Os ventos brandamente respiravam,
Das naus as velas côncavas inchando;
Da branca escuma os mares se mostravam
Cobertos, onde as proas vão cortando
As marítimas águas consagradas,
Que do gado de Próteo são cortadas (…) (I, 19)
Num ensaio de 2017, Fernando Venâncio reconhece que a ideia de “um Camões ‘enriquecedor do idioma’ é factual”. Mas, com a mente na plasticidade da sua linguagem, não se perca principalmente de vista a decisiva contribuição de Camões para a adultez e para a própria renovação da língua literária em Portugal, enquanto instrumento de expressão e de sedução – quer com a ousadia e complexidade da sua sintaxe, em sofisticado conúbio com a métrica e com os ritmos do verso, quer com a beleza e arrojo das suas perífrases, hipérboles e paradoxos, sem esquecer a refinada tessitura musical, e, principalmente, a frequência de achados expressivos, a que se soma a originalidade metafórica e metonímica do discurso. E isto sem ignorar nem diminuir o recurso a formas, tropos e expressões, temas e motivos, que – em consonância com as inclinações e preceitos estéticos da época, entre o ocaso do Renascimento e o Maneirismo, do qual Camões é um representante maior – decorrem da influência que na sua escrita exerceram os modelos clássicos greco-latinos (Ilíada e Odisseia, Catulo, Ovídio, Virgílio e Horácio, e em especial a Eneida de Virgílio, no caso d’Os Lusíadas) a par dos dos grandes poetas do Renascimento italiano, como Petrarca, Sanazzaro e Pietro Bembo, e espanhol, como Boscán e Garcilaso.
E quanto a certos fragmentos que se escutam por vezes na voz da gente comum, na voz de qualquer um de nós, palavras que nos servem de arrimo na comunicação do dia-a-dia, que por vezes convertemos em ditos sentenciosos e das quais chegamos a socorrer-nos em interacções argumentativas? Expressões como “mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”, “outro valor mais alto se alevanta”, “vi, claramente visto”, “se a tanto me ajudar o engenho e arte”, “vinde cá, meu tão certo secretário”, “aqueles que por obras valerosas/se vão da lei da morte libertando”, “onde a terra se acaba e o mar começa”, “ó glória de mandar! Ó vã cobiça”, “a vida pelo mundo em pedaços repartida”, “um bicho da terra tão pequeno”, “uma austera, apagada e vil tristeza”…? Podemos nem gostar de ler, podemos não ser especialmente rigorosos com a gramática, ou então acontecer o contrário, mas ocorre-nos sempre que, nas circunstâncias em que a tais expressões recorremos, estamos a fazer uso de versos de Camões? Mesmo sem disso termos consciência, interiorizámos versos seus, incorporamo-los na fala de todos os dias. Queira-se ou não, é nisto, em primeira instância, que Camões é de facto um poeta de que o povo português, a seu modo, se apropriou. Apetece corrigir: os povos que falam o Português. Não ocultando, entre outras coisas, que este homem europeu e cristão-novo do século XVI, com a vida pelo mundo repartida, e que podemos imaginar ter amado mulheres de distintas etnias, quis celebrar a beleza da negritude de uma delas, real ou imaginada, num dos mais belos poemas de amor da língua portuguesa (as endechas a Bárbora), distanciando-se assim do padrão petrarquista de beleza consagrado pela moda do tempo, o de Laura, com seu cabelo loiro e pele branca: “Pretidão de Amor,/tão doce a figura,/que a neve lhe jura/que trocara a cor”.
Segundo contabilidade de Jorge de Sena, que atesta a dimensão assombrosa da criação camoniana, aos 9 000 versos do poema épico – editado em 1572 – é necessário somar os cerca de 14 000 versos das composições líricas: sonetos, canções petrarquistas, éclogas, odes, elegias, composições em oitava rima, uma sextina, outros pequenos poemas líricos incluindo as redondilhas – cabendo nestas últimas alguns dos mais populares, graciosos e, por vezes, até bem-humorados poemas de Camões. Verdadeiras pérolas, como “Perdigão perdeu a pena…”, “Descalça vai para a fonte…” ou as endechas a Bárbora, que exploram de modo criativo um veio lírico tradicionalizante que vem da Idade Média e se plasma no Cancioneiro Geral de Garcia de Resende (1516). Completam esta imensa produção os versos e a prosa das três comédias Filodemo, Anfitriões e El-Rei Seleuco, bem como um punhado de cartas. Fazendo coexistir velhos e novos géneros (entre estes o soneto, a canção, a ode…), Camões maneja os códigos poéticos, muitas vezes lutando com a linguagem poética e, no dizer de Maria Vitalina Leal de Matos, “transformando-a, forçando-a a dizer o que jamais tinha sido dito (o que a poesia sempre faz… quando é poesia), de tal modo que o que resulta é uma poética e uma poesia novas, inconfundíveis” que, apesar disso, e no tocante aos géneros renascentistas, “não deixa de ser uma expressão exemplar do dolce stil nuovo”.
Sob influência do neoplatonismo, inscrito também ele na tradição petrarquista, mas muitas vezes superando-o, sonetos e canções – que compaginam sinceridade e convenções poéticas – espelham uma funda e genuína reflexão sobre o amor, seus êxtases, escolhos e contradições e sobre a própria condição de uma voz e de um corpo que amam e se debatem com as tensões entre o desejo, a ausência da amada e a relação entre amor terreno e amor divino. Peço emprestadas palavras de Eugénio de Andrade: “Não foi o próprio Camões que se mostrou dividido entre o límpido apelo dos sentidos e toda uma platonizante teoria de amor bebida em Petrarca e Santo Agostinho? (…) Nenhuma poesia portuguesa partiu tanto dos sentidos para tanto se desprender deles, como a de Camões.” Seja nas redondilhas seja nos sonetos, nas canções e em episódios d’Os Lusíadas (e não apenas no da Ilha dos Amores, cantos IX e X), Camões é um poeta em que a pulsão de Eros alcança energia expressional insuperável, que não se dissocia da dimensão erotizante da própria linguagem, em seus múltiplos recursos. A força motriz de toda a sua escrita é, pois, o amor. (1) A Natureza, o tema da mudança, a dorida meditação (exasperada mesmo) sobre a vida pessoal de quem nasceu e viveu pobre, conheceu o exílio e pobre morreu: eis outros temas nucleares. A par, naturalmente, do desconcerto do mundo – em cujo tratamento, seja na epopeia (por exemplo nos episódios do Velho do Restelo nas lamentações e exortações a D. Sebastião), seja na lírica, Luís de Camões – e malgrado a sua visão aristocrática do mundo e as suas contradições ideológicas – não cala a crítica aos poderosos, à vaidade, à ambição desmedida e à decadência moral, ao poder do dinheiro, ao esmagamento dos mais fracos e do povo, e mesmo à crueldade da guerra e ao seu poder destruidor. Tal dimensão coexiste, obviamente, com a exaltação dos feitos heróicos e guerreiros do “peito ilustre lusitano” e com o sentido patriótico, seja na narração da viagem inaugural para a Índia comandada por Vasco da Gama (1498), seja nas evocações da História de Portugal, matérias de eleição d’Os Lusíadas – obra em que a assombrosa cultura humanista do poeta se manifesta.
É evidente que, mantendo sempre uma consciência apurada, do pano de fundo epocal (século XVI), o sentido crítico, por outro lado, não autoriza que quedemos indiferentes a uma síntese magistral, como a de Óscar Lopes: “Camões foi com certeza um nobre de pequena classificação, um cavaleiro, a quem as ordens mais baixas não merecem a história em que Fernão Lopes as contempla: embora com respeito das ‘Leis iguais, constantes/que aos grandes não dêm [sic] o dos pequenos’ (VIII, 94), com o desprezo daqueles que estendem a lisonja, ‘Por contentar o Rei, no ofício novo,/a despir e roubar o pobre povo’ (VIII, 85); e muito convicto do princípio de ‘Que se pague o suor da servil gente’ (VIII, 86). Não há em Camões a mínima base incompatível com a existência da Inquisição e da escravatura, e até se estranha, em X: 45-47, a presença de três estrofes para censurar a condenação à morte, por enforcamento, daquele ‘cavaleiro’ que se meteu com ‘ũa escrava vil, lasciva e escura’, pois tudo inculca na sua obra a caça ao ismaelita, como à mulher de que toda a sua obra é hino (e uma cadeia), nomeadamente com as comédias como Filodemo, com a écloga dos ‘Faunos’ e com a ‘Ilha dos Amores’, (abstraindo de numerosas injúrias mais ou menos raciais.”
Uma nota ainda sobre o carácter profundamente original de Os Lusíadas: trata-se, na história do género, da primeira grande epopeia escrita por um homem que viveu poucas décadas depois dos acontecimentos que narra – a viagem do Gama – e que também ele, como o Velho do Restelo, “co’um saber só de experiências feito” (IV, 94), conheceu grande parte dos lugares que essa mesma viagem percorre. Por outro lado, e como tem sido apontado e bem por alguma crítica contemporânea (por ex. João R. Figueiredo, em 2020), Os Lusíadas é também um texto que representa o crepúsculo de um género, a epopeia, desviando-se deliberadamente das características dos modelos clássicos. Afirma Hélio J. S. Alves que não há um herói e um acontecimento mas muitos heróis e muitos acontecimentos: “o Gama é apenas um protagonista entre muitos. Inês de Castro, o Velho do Restelo, o Adamastor, a própria Máquina do Mundo são figuras maiores do que o capitão”. Ao debruçar-se, crítica e melancolicamente até, sobre um Império que se constrói, engrandece e declina, põe assim em causa os códigos do género, desta e doutras formas, mormente pela intromissão do discurso lírico em diversos passos do texto.
Permita-se este remate. A leitura e o adequado ensino de Camões (não tenhamos medo da palavra ensino), no 3.º ciclo do Ensino Básico e no Secundário, não se compadecem com amadorismo e ausência de informação histórica, teórica e crítica, nem com insensibilidade à poesia. Essa leitura desenvolve o potencial cognitivo, a competência leitora, o sentido estético e o espírito crítico dos jovens. Como tal não deve ser elitizada, muito menos diminuída nos programas escolares. Mesmo no 1.º ciclo, importa que seja incentivado o convívio com a iconografia do poeta, com o essencial da sua história de vida (através de biografias para a infância, complementadas por adaptações bem feitas d’Os Lusíadas) e com fragmentos e certas composições mais simples e breves. Camões é património do povo e, como tal, aos filhos desse povo, aos filhos dos trabalhadores não pode ser negado o acesso qualificado à escrita do maior poeta nacional, dos maiores também da literatura mundial, com o argumento de que a sua leitura não é fácil (nada na grande literatura é da ordem do fácil).
Em linguagem sua e da sua época, o poeta e pedagogo republicano e antifascista João de Barros escreverá: “É o povo inteiro que, pela boca de Camões louva ou critica os Gamas, os Câmaras, os Afonso de Albuquerque (…) e quantos mais que foram chefes e capitães (…). // É o conceito, a opinião do povo que leva Camões a censurar ‘a ira que o condena’, perante a grei, de Afonso de Albuquerque, ou a dar conselhos a D. Sebastião (…)”. Camões canta a pátria e a sua independência, sem endeusar “qualquer herói individual” (Barros, 1947). Enriquece a língua e reiventa-a, enquanto língua literária, e assim no-la lega em herança a reinventar. Também neste sentido, é um poeta do povo num mundo em mudança. Por isso, só podemos comemorar e instar a que se comemorem, devidamente, os 500 anos do seu nascimento.
1 Sobre a épica, afirma Hélio Alves: “A paixão d’Os Lusíadas é o patriotismo”.