Intervenção de Fausto Neves, 2.º Encontro Nacional do PCP sobre Cultura

Música de todos, para todos

Camaradas, 

Uma família portuguesa, em visita ao célebre órgão da catedral de Haarlem, na Ho landa, foi abordada pela respeitável cicerone oficial do templo, mal esta percebeu, com  entusiasmo, que eram portugueses, no sentido de traduzir o título português de uma  canção que muito apreciava: “Ai se eu te pego!”. 

A canção brasileira referida foi êxito das play-lists de 2011 em Portugal e no Mundo,  obtendo os mais importantes prémios internacionais. A sua linha melódica possui 3  notas, a harmonia repete ad nauseam quatro básicos acordes, a coreografia proposta  (e adoptada!) sugere movimentos sexuais, na tradição de outros “arrebatadores” êxitos anteriores. Foi esta a receita que entusiasmou a nossa pacata beata-cicerone que,  do Brasil, certamente não conhecia Villa-Lobos, Guarnieri, Osvaldo Lacerda, Marlos No bre ou Guerra Peixe, da “clássica” brasileira, ou Chico Buarque, Vinicius, Jobim, Caetano, João Gilberto, Elis da MPB! Que brutais investimentos se fazem neste tipo de  repertório, exportado e replicado por todo o mundo, como o exemplo prova! 

A História e a Neurociência vêm-nos alertar para a importância única da Música, desde  o Hominídeo, no seu uso funcional pelo Homem, estímulo eficaz para a evolução  intelectual e cultural humana, quer ao longo da História, quer do berço à morte.  

A evolução do Homem e, consequentemente da Arte, com os seus objectivos  progressivamente mais complexos, ditou a especialização da Música: as vozes e os  instrumentos a que todos recorriam para celebrar, chorar, orar, unir, trabalhar, caçar,  foliar ou amar, passaram a ser assegurados por especialistas – os que executavam, e  também os que compunham. A restante maioria foi-se deixando relegar para público,  a pouco e pouco em exclusividade, abandonando práticas musicais ancestrais e  populares. Abandonou-se também o cenário funcional genuíno em que a Música se produzia e relocalizou-se a Arte dos Sons em salas específicas de concerto, que  passaram a oferecer superiores condições acústicas e técnicas aos novos patamares de  estilização e de abstração da performance musical. Este avanço na exigência musical – com a peneira do tempo escolhendo autores e obras que se universalizaram em cada  período, constituindo-se acervo patrimonial inestimável de néctares para o intelecto e  para a emoção – teve como desinteressante moeda de troca o enconchamento físico,  de que rapidamente se aproveitou a sofreguidão classista na apropriação da Arte,  racionando-a e seleccionando-a para as classes trabalhadoras.  

É neste contexto que surgem os terríveis e preconceituosos adjectivos “clássica” ou,  pior ainda, “erudita” para a melhor Música de todos os tempos que chegou até nós – cidadãos do dito mundo ocidental –, perene de universalidade patrimonial emergente  de cada época.  

Para além deste disseminado preconceito, a avalanche crescente e esmagadora de  música comercial com má qualidade – que Lopes-Graça denominava de “potreias” – afasta eficazmente o cidadão comum, tanto do grande património musical, como da  nossa música tradicional. E na música dita “ligeira”, o quinhão das “potreias” está a  dominar exponencialmente: que é feito da continuação das propostas desafiantes dos  anos 70 – 80, com bandas como os “Yes”, “Emerson, Lake and Palmer”, “King Crimson”,  “Gentle Giant”, “Trovante”, etc.? Os “Ai se eu ti pego!” estão invadindo tudo e todos  com presença permanente nos mídia. Poderemos ligar este massificado  abastardamento da Arte em geral e da Música em particular ao QI (Quociente de  Inteligência), noção já datada, mas que, pela primeira vez na História do Homem, …  diminuiu? 

A Música, dita clássica, é exigente para o seu público: obriga a um esforço individual de silêncio e de alguma contenção para que o colectivo possa: usufruir dos sons acústicos da maravilhosa tecnologia de ponta do século XVI, comover-se com a  universalização das emoções de cada época, do engenho osmótico das formas que se  foram desenvolvendo, desde os tempos mais recuados até aos dias de hoje. A Música  é democrática, pois oferece-se a quem a quiser ouvir, na dose que desejar e puder  retirar. Por último e de não menor importância, é democrática porque impulsiona cada  um de nós a elevar-se, a enriquecer-se, a emancipar-se. Ao contrário das rebaixadoras  “potreias”! 

Falar de Música em Portugal é complicado e longo:  

-É tentar perceber as razões de um Povo, que cantava “do berço à cova”, ter  actualmente vergonha de cantar, gabar-se de ser desafinado e ter como dois  momentos altos da prática coral a liturgia católica – com os excelentes gags que já  produziu para o Youtube – ou, no futebol, o insulto soez à mãe do árbitro por largo e  bem sincronizado colectivo, apelidado engenhosamente de cântico. 

-É pasmar com a falta de prática coral nas escolas de música ou de ensino regular, ou  com a falta de apoio aos coros amadores, sabendo-se que a prática coral é o veículo  mais acessível para a galvanizadora abordagem musical de qualquer época da História  da Música pelo cidadão, sem quaisquer requisitos teóricos necessários, como já  defendia Rousseau.  

-É comparar esse sistema anacrónico de sensibilização musical que constituía o “Canto  Coral” dos liceus do fascismo com as “correntes de ar desafinadas”, constituídas pelas  insuportáveis flautas de bisel, infantilizadoras de alunos de 11 anos. 

-É condenar o persistente não-alargamento das redes públicas de orquestras e de  escolas artísticas, e o mau apoio, financeiro e pedagógico, às escolas particulares  protocoladas. 

-É criticar a confusão, já antiga, entre as especificidades do ensino musical vocacional  e o ensino de música para todos. 

-É protestar contra a obrigação de os músicos-docentes terem uma violenta dupla  actividade, passando mesmo a tripla para os do ensino superior, com o acréscimo da  sacrossanta investigação. Neste nível de ensino, destaca-se pela negativa a proibição  de concertos aos docentes em regime de exclusividade, apesar da actividade artística  contar para o currículo académico (certamente apenas em regime pro bono…). 

-É condenar a não avaliação crítica da integração do ensino da música na estrutura  geral do ensino básico, secundário e superior (politécnico e universitário), feita há  quarenta anos, abandonando a verticalidade curricular e a pobreza formativa, mas  integrando uma estrutura institucional que não foi feita para receber a música. 

-É lamentar continuar a ouvir “Sabe, de música não percebo nada! Já na escola era  desafinado!”, cada vez que se contacta institucionalmente com elementos do Estado,  enfim, com o escol social português, visceralmente avesso à música, apesar das  excepções, e a quem Lopes-Graça brindava com o epíteto de “bosteira nacional”… 

- É desesperar ao ver Projectos ou Serviços Educativos que infantilizam musicalmente  os seus públicos, teimando, contra tudo e contra todos, em ministrar repetidamente  cevada para que o cidadão passe a gostar de café… 

No entanto… nunca se produziram tantos jovens músicos de excelente nível,  entretanto condenados a emigrar ou a estiolar, sem saídas para os palcos ou para as  orquestras, e com cada vez mais dificuldades de saída para o ensino. Jovens músicos  que encontravam, após o 25 de abril, circuitos de itinerância em salas públicas  organizados pelo Poder Central, e promotores de concertos que não estavam, como  hoje, obcecados pelos “seguros e eternos” nomes mediáticos, repetidos nas programações à exaustão. 

A Música precisa de parar para pensar, numa longa polifonia entre performers,  professores, orquestras, escolas, promotores e público. Precisa de um Estado que  perceba as suas capacidades emancipatórias e que queira investir na elevação das  populações. Avaliado, revisto, modernizado e galvanizado o sistema educativo musical,  venha o Serviço Público de Cultura, que também na Música, poderá assegurar o apoio  aos jovens em início de carreira, a descentralização cultural nas múltiplas estruturas  espalhadas pelo País, o apoio às estruturas produtoras de eventos musicais e, com  especial carinho, ao movimento assocaitivo. Para além da melhoria das condições de  funcionamento das grandes instituições – sejam agrupamentos, estruturas ou  instituições –, há que aumentar a rede de orquestras.  

A Música e a Cultura são instrumentos de emancipação das populações, factores de  evolução cognitiva, estética, espiritual. Também aqui, só a luta nos pode assegurar o  usufruto das práticas performativa e criadora, em toda a liberdade e na plenitude do  amplo espectro de estilos, épocas, formas. Só pela luta poderemos conquistar um  Serviço Público da Cultura! Só pela luta poderemos ter Música de todos, para todos! 

VIVA O 2º ENCONTRO NACIONAL SOBRE A CULTURA! 

VIVA O PCP!