Intervenção de Joana Tomé, 2.º Encontro Nacional do PCP sobre Cultura

Mulheres e Cultura

É importante perguntarmos onde estão as mulheres trabalhadoras quando falamos de cultura.

Elas estão nos contextos mais precários. 

A subjugação absoluta de qualquer processo criativo à inexorável lógica do lucro impõe, à generalidade dos trabalhadores do sector da cultura, uma intensidade quase sobre-humana de produção e uma insegurança e instabilidade laboral constante e transversal, com a sempre iminente descontinuidade de projectos e fontes de rendimentos. A disseminada e trivializada baixa remuneração, a ausência de contratação colectiva ou de qualquer vínculo laboral efectivo, e a desregulação de horários preparam bem o terreno para a dominação ideológica, a alienação dos meios de produção na cultura e o desemprego.

Acrescido a tudo isto, recai especificamente sobre os ombros das mulheres trabalhadoras da cultura uma acumulação brutal de actividades, uma aprofundada vulnerabilidade, uma ampla descriminação de rendimentos, a violência no contexto laboral e a divisão sexual do trabalho de que depende o sistema capitalista - que, como sabemos, nos submete, a nós mulheres, a uma dupla exploração: de classe e em função do sexo. Esta condição de precariedade das trabalhadoras da cultura repercute-se em todas as dimensões das suas vidas, inclusivamente no plano da família, da maternidade e do direito a decidir os seus destinos e projectos de vida.

As trabalhadoras da cultura são integradas no mercado de trabalho de forma profundamente individual e desigual; esperando-se delas que sejam, por sua total conta e risco, “empreendedoras culturais”, “empresárias de si mesmas”. Impregna-se, o sector, da concepção burguesa da individualização do artista, impondo uma realidade de profunda precarização e insegurança às trabalhadoras sob a insígnia da “autonomia”, “polivalência” e “flexibilidade”. Importa-se, para o sector da cultura, o modelo do empreendedorismo, olhando a informalidade e a precariedade do trabalho na cultura como, não somente naturais, mas desejáveis.

Desta lógica são testemunho muito claro as políticas dos governos PS, PDS e CDS que, seguindo uma lógica estrutural de precarização, avançaram e avançam com a desresponsabilização total do Estado da sua essencial (e constitucionalmente afirmada) função de garante da democratização e descentralização da cultura - na dinamização de políticas públicas, apoios e financiamento. O sector, e a gestão deste, são submetidos a uma privatização avassaladora que cimenta a posição hegemónica ocupada pelos grupos económicos nacionais e estrangeiros na determinação da produção, divulgação e distribuição, assim como das nossas condições de trabalho, remuneração, formas de contrato, e formas e condições de pagamento.

Daqui resulta uma subalternização da cultura e uma sua gravosa homogeneização em função da ideologia dominante, impondo-se sobre ela um olhar que a tem supérflua e desprovida de centralidade na vida da população.

Embora escasseiem os estudos sobre os lugares ocupados pelas mulheres no contexto do trabalho no sector da cultura – o que tomamos por perfeitamente inaceitável e carente de correcção -, sabemos mapear o percurso feito da Ditadura até aqui: em Abril de 74 abrem-se, às mulheres - que ocuparam a vanguarda das reivindicações por justas condições de vida e de trabalho - , novos espaços, novas áreas, nova visibilidade. 

Numa onda de incomparáveis progressos, conhecemos enfim acesso à participação na cultura do nosso país, a equipamentos, a espaços, a formação e a profissionalização; a Revolução rasgou novos horizontes de afirmação das nossas capacidades e saberes em todos os domínios da sociedade. Abrem-se as fronteiras físicas do país mas igualmente os horizontes conceptuais e artísticos, e as mulheres encontram na cultura e na arte um veículo privilegiado para a expressão da sua condição criativa, social, política e cultural, num compromisso profundo e pleno com a função social da cultura.

Refazemos o caminho até aqui e percebemos que o papel de intervenção cultural da mulher na sociedade não se dissociou nunca da luta política e social; e que é necessário que hoje se dê continuidade a essa luta, dignificando a base material e humana que, apesar dos bloqueios e retrocessos, ainda nos chega da Revolução de Abril. Reconhecendo o peso das mulheres no sector da cultura, hoje, como marca do avanço nos direitos das mulheres indissociável da Revolução, mas reconhecendo igualmente a necessidade de combater corajosamente os sucessivos recuos que aprofundam o contexto de precariedade - que impede a igualdade no trabalho e na vida, desvalorizando o trabalho do conjunto dos trabalhadores da cultura e da própria cultura como direito de todos os portugueses.

Recuperamos, assim, da Revolução de Abril, um entender da cultura enquanto instrumento imprescindível de progresso e emancipação dos trabalhadores e dos povos, na resistência a uma cultura homogeneizante (“mediática”) e castradora da reflexão crítica e da dimensão criadora. É na reivindicação por uma cultura resistente e plural, em contacto directo e dialógico com a realidade da população, que percebemos a real força da luta das mulheres na cultura pelos seus direitos específicos; e  a importância desta luta para o reforço da luta geral dos trabalhadores da cultura e dos trabalhadores e do povo. A defesa do direito à dignidade e autonomia das mulheres pauta a consciência da importância de um acesso verdadeiramente democrático à criação e fruição cultural. 

As mulheres trabalhadoras do sector da cultura encontram-se, de facto, nas posições mais precárias, mas encontram-se também na rua - presentes, em condição de maioria, nas acções de massas específicas da cultura, nas reivindicações nos locais de trabalho, na luta e organização no plano sindical, na criação artística comprometida com a transformação social, reivindicando políticas públicas que garantam a sustentabilidade e diversidade cultural do país. Temos razões irrefutáveis para afirmarmos a luta pelos nossos direitos específicos, apoiando os objectivos de acção de organizações como o Movimento Democrático de Mulheres, organizando-nos em sindicatos e, naturalmente, tendo o PCP como o nosso mais fiel aliado na luta em defesa dos direitos das mulheres pela igualdade no trabalho e na vida e pela nossa emancipação social - destacando o papel do sério compromisso do PCP com um sistema público cultural que assegure a democratização da cultura e a premente emancipação das trabalhadoras da cultura, e de todos os trabalhadores e do povo. Sempre cientes de que a cultura e a arte acrescentam uma imprescindível força à luta dos trabalhadores e do povo pela liberdade, pela democracia e pelo socialismo.