Camaradas
Esta intervenção procura ser uma contribuição para a discussão do problema que aqui nos traz hoje: as nacionalizações efectuadas há 50 anos, abordadas não do ponto de vista da sua importância para o desenvolvimento do nosso país, da melhoria das condições de vida do nosso povo, da garantia da soberania nacional (e que outros camaradas abordam), mas como questão central da Revolução de Abril.
Percebe-se que passados 50 anos se mantenham, por parte das forças reaccionárias e do Partido Socialista, os ataques, as calúnias, as falsificações históricas contra as nacionalizações, porque, ao fim e ao cabo, a natureza do regime democrático foi decisivamente marcado pelas nacionalizações, uma das grandes conquistas democráticas.
A defesa das nacionalizações, isto é, a liquidação do poder dos grupos monopolistas como condição para a liquidação do poder dos grupos monopolistas como condição para a liquidação do Estado fascista e garantia das liberdades, de um regime verdadeiramente democrático, constituía um dos pontos centrais da estratégia do Partido para a revolução antifascista, que se consubstanciaria no Programa para a Revolução Democrática e Nacional.
Esta tese do Partido assentava na análise rigorosa e fundamentada da natureza do fascismo, a qual, para lá da definição da natureza do poder político do fascismo, determinava as forças que o sustentavam e eram os seus grandes beneficiários.
Foi partindo da caracterização do regime fascista português como o governo terrorista dos monopólios associados ao imperialismo estrangeiro e dos latifundiários que o Partido conclui que o regime democrático, a liberdade, a melhoria das condições de vida das massas exigiam que derrubada a ditadura se tornava necessário, a par da liquidação do poder político do fascismo tivesse lugar a liquidação do seu poder económico, assente nos grupos monopolistas.
O regime fascista em Portugal assumia uma natureza específica em que o Estado e os monopólios funcionavam como que constituindo um aparelho único, posto ao serviço da política de concentração e centralização do capital, princípio e objectivo do regime fascista desde a nascença da ditadura e que antes do golpe de 28 de Maio de 1926 tinha sido teorizado como condição para o desenvolvimento, entendido como a criação de grandes grupos económicos. Acrescente-se que os fascistas defendiam igualmente que o desenvolvimento do país só poderia ser alcançado em regime de ditadura. Os resultados de 48 anos de ditadura são suficientemente conhecidos de todos.
A fusão do Estado fascista com os grupos monopolistas verificava-se ainda na área da repressão, como instrumento necessário à execução da acção política. O aparelho repressivo não estava apenas ao serviço do patronato, era o seu instrumento próprio. Uma parte do orçamento da PIDE era financiado por grandes empresas que mantinham relação directa, ao mais alto nível, com os responsáveis da PIDE e Salazar. Mas não era só a PIDE. Lembre-se, por exemplo, que o Complexo da CUF (Barreiro) tinha no seu interior um batalhão da GNR; que os proprietários da Mina de Aljustrel pagaram a instalação da GNR em Aljustrel, com o fim expresso de assegurar a chamada manutenção da ordem.
Foi na base da acção coerciva do Estado fascista, fundido com os monopólios, que se tornou possível que grande parte da riqueza nacional fosse drenada para os grupos monopolistas, que estes se tivessem apossado de todos os sectores básicos da economia nacional, que os trabalhadores fossem submetidos a formas brutais de exploração e à privação das mais elementares liberdades, condição para se manter os altos níveis de exploração.
A tese do Partido da necessidade da liquidação simultânea do poder político e do poder económico do fascismo, como condição para a defesa da liberdade e do regime democrático, nunca foi aceite pelos diversos sectores da oposição democrática-liberal, republicana, que defendiam uma impossibilidade: a existência de liberdades políticas mantendo o poder dos principais responsáveis (e beneficiários) da liquidação das liberdades: o grande capital.
Mesmo o Partido Socialista, que entra em cena na fase final do regime, e que a certa altura (Março de 1974) subscreveu com o Partido, numa reunião conjunta em Paris, a necessidade da liquidação dos grupos monopolistas, derrubada a ditadura, tê-lo-à feito com reservas mentais, por saber que esta questão vinha a ter cada vez mais adesão. É uma conclusão mais do que legítima a avaliar por toda a actuação do PS, antes e depois da formação do I Governo Constitucional, o Governo PS/Mário Soares. E sobretudo quando confrontado com a decisão concreta de se avançar para as nacionalizações.
Quando aquilo que era uma questão teórica entrou no terreno das medidas práticas com o derrube do fascismo em 25 de Abril de 1974, rapidamente se tornou claro, face à acção contra-revolucionária, que a defesa das liberdades exigia a liquidação dos grandes grupos monopolistas. O 25 de Abril tinha liquidado o poder político do fascismo, mas não tinha liquidado o fascismo. Uma questão que se vai tornar a grande linha de confronto entre as forças da Revolução e da contra-Revolução. Confirmava-se a tese de que são as estruturas económicas e as relações de produção que explicam a natureza do poder político e das classes dominantes. Realidades que hoje podemos comprovar com os resultados de restauração dos grandes grupos económicos a que conduziu a política de direita dos sucessivos governos, cabendo ao PS a principal responsabilidade desta situação. Um processo que começou logo com a tomada de posse do I Governo Constitucional, cujo programa de governo não deixava dúvidas que o carácter irreversível das nacionalizações não era para tomar a sério.
A nacionalização de centenas de empresas ligadas aos grupos monopolistas, abrangendo praticamente todos os sectores económicos, assestou um golpe profundo na base social fundamental de apoio ao fascismo, condição para colocar a economia ao serviço do povo e do país e defender o regime democrático. Uma questão que determinou a política de alianças que se seguiu: a aliança do PS com os partidos de direita na reconstituição dos grandes grupos económicos. Uma aliança que perdura até aos dias de hoje, na submissão do poder político ao poder económico.
No quadro da arrumação de forças, na altura a intervenção dos trabalhadores, com o apoio dos sectores revolucionários do MFA, foi decisiva para que se tivesse avançado nas nacionalizações.
Os trabalhadores, a principal força social na resistência ao fascismo, não se limitaram a saudar a conquista da liberdade e o MFA. Fizeram-no, e fizeram-no de forma vibrante. Mas a par disso colocaram as suas próprias reivindicações, começaram a exigir a liquidação dos grupos monopolistas e sobretudo começaram a tomar nas suas mãos essa exigência, apresentando dados concretos sobre a sabotagem económica e das suas ligações à conspiração contra-revolucionária.
O controlo operário, nascido da intervenção criadora dos trabalhadores, foi decisivo no combate à sabotagem económica, para garantir o funcionamento das empresas. O controlo operário, expressão da intervenção democrática dos trabalhadores na economia nacional, tornou-se uma das grandes conquistas democráticas da Revolução de Abril, mas também uma das primeiras conquistas a ser liquidadas pelo Governo PS, como condição necessária para a reconstituição dos grupos monopolistas.
Temos usado a expressão terem as nacionalizações e outras conquistas sido «filhas da acção revolucionária das massas», e é bom que o continuemos a fazer, porque a natureza libertadora e emancipadora que a Revolução de Abril assumiu no seu processo de desenvolvimento é inseparável desta acção.
Ao longo dos tempos temos ouvido e agora de novo, retomado a propósito do 11 de Março, que as nacionalizações resultaram de uma «acção selvagem», esquecendo-se de duas questões fundamentais. A primeira é que a ditadura foi derrubada pela via revolucionária, em que intervieram duas componentes: a militar e a popular e, em particular, os trabalhadores. A legitimidade revolucionária, resultante da acção concreta, sem a qual o fascismo não teria sido derrubado. A segunda questão é que a decisão de avançar para as nacionalizações foi tomada pelos órgãos legítimos e assentou na intervenção organizada dos trabalhadores.
Uma outra linha de ataque à natureza das nacionalizações tem sido desenvolvida por alguma historiografia de origem esquerdista, hoje assumida como reformista-oportunista, que curiosamente demonizava as nacionalizações porque, diziam, o que houve foram «estatizações», e que não poupa esforços para demonstrar que as grandes conquistas democráticas foram o resultado da acção espontânea dos trabalhadores e das massas.
É sabido que as revoluções centuplicam o activismo das massas, mas as revoluções não triunfam pela acção espontânea, mas pela força organizada.
Só um profundo desconhecimento da realidade que se vivia em Portugal e o afã de desvalorizar o papel do Partido na Revolução podem justificar as teses que defendem terem sido as conquistas democráticas resultado da acção espontânea das massas.
Como já foi referido, os trabalhadores com o Partido foram as principais forças de resistência ao fascismo. Não por acaso que o 1.º de Maio, dia do trabalhador, se tornou, a partir de 1962, a principal jornada de luta contra o fascismo.
A longa luta forjou milhares de quadros experimentados. Em numerosas empresas existiam as chamadas Comissões de Unidades, que se transformaram em Comissões de Trabalhadores. Dezenas de Sindicatos tinham à sua frente direcções de confiança dos trabalhadores. A Intersindical tinha-se tornado de facto na Central Sindical dos Trabalhadores Portugueses, situação reconhecida pelo próprio fascismo. As Comissões Sócio-Profissionais tornaram-se a força mais determinante do Movimento de Oposição Democrática. Comissões que, com a sua organização autónoma no seio da Oposição democrática, imprimiu à actividade desta um novo conteúdo, a começar pelo papel que tiveram na aprovação pelo Congresso de Aveiro (Abril/1973) da tese da necessidade da liquidação do poder político e do poder económico do fascismo.
É um facto inquestionável que os trabalhadores portugueses intervieram na Revolução de forma organizada, com as suas reivindicações próprias.
Camaradas: Por maiores que sejam as elucubrações propagandísticas. Os factos comprovam que constituição dos grandes grupos económicos tornou os trabalhadores mais explorados, o país mais desigual, o regime democrático mais desfigurado e em que as limitações aos direitos e liberdades crescem a olhos vistos. Um país em que o domínio do poder político pelo poder económico, nacional e estrangeiro, se acentua.
Os valores de Abril no futuro de Portugal, como há 50 anos, exigem a liquidação do domínio político pelo poder económico.