I – Introdução
Desde 1982 que o PCP tem vindo a lutar, na Assembleia da República e fora dela, pela despenalização da interrupção voluntária da gravidez e pelo consequente fim do grave problema de saúde pública que constitui o aborto clandestino.
A Assembleia da República chegou em 1998 a aprovar na generalidade um projecto de lei de despenalização, cujo processo legislativo viria a ser interrompido pela convocação de um referendo sobre a matéria, acordado da noite para o dia entre os líderes de então do PS e do PSD.
Por isso rejeitamos a ideia de que por “escrúpulo democrático” seria necessária a realização de um novo referendo antes de qualquer alteração da lei penal nesta matéria. Escrúpulo democrático foi na verdade o que faltou quando, após a referida aprovação na generalidade de uma iniciativa de despenalização, dois partidos – PS e PSD – acordaram a realização de um referendo enxertado num processo legislativo em curso, em total desrespeito pelo papel da Assembleia da República no exercício do poder legislativo.
O referendo de 1998, nunca sequer teve valor vinculativo, visto que votaram apenas 31,9% dos eleitores. Mesmo que tivesse tido mais de 50% de votantes o seu efeito vinculativo já teria há muito terminado, tendo em conta que passaram quase oito anos desde a sua realização e que estamos a entrar na terceira legislatura posterior àquela em que a consulta popular se efectuou. Não obstante o referendo de 1998 tem sido sucessivamente invocado para tentar negar a plena legitimidade jurídica e também política da Assembleia da República para legislar sobre a matéria.
Em Março de 2004 a Assembleia da República, em debate agendado pelo PCP, discutiu mais uma vez esta questão. Nesse debate, em que se votaram em primeiro lugar iniciativas de despenalização e depois iniciativas de convocação de referendo, ficou aliás expressa uma ampla convergência dos partidos então na oposição sobre esta matéria. O debate e a votação foi essencial para desmascarar a hipocrisia dos partidos da direita, com o PSD preso de um acordo pós-eleitoral com o CDS-PP em que se garantia a não aprovação de qualquer iniciativa, mas também para confirmar a total legitimidade da Assembleia da República para proceder à alteração legislativa em causa.
Despenalizar a Interrupção Voluntária da Gravidez na Assembleia da República sem referendo prévio, não significa pois fugir à consulta popular, especialmente num momento em que a ampla maioria parlamentar de forças que afirmam defender a alteração da lei penal, lhe atribui particular legitimidade nesta matéria.
Despenalizar a Interrupção Voluntária da Gravidez é a única forma de pôr fim às sucessivas investigações, devassas, humilhações, julgamentos e condenações de mulheres que nos últimos anos se repetiram em vários processos judiciais em Portugal.
Despenalizar a Interrupção Voluntária da Gravidez é a única forma de combater o flagelo do aborto clandestino, atingindo mulheres portuguesas, sendo um grave problema de saúde pública.
Despenalizar a interrupção Voluntária da Gravidez significa alterar uma legislação penal que não tem eficácia no combate ao aborto. Apenas o torna clandestino, desprotegido e perigoso para a saúde física e psíquica e por vezes para a própria vida das mulheres.
Quando em 1982, o PCP tomou a iniciativa do primeiro debate sobre o aborto estimavam-se em 100 mil aborto clandestinos por ano. Actualmente esse número situa-se, entre os 20 a 40 mil abortos. Estes números evidenciam que as mulheres nos últimos 30 anos tem vindo a utilizar formas seguras para prevenir gravidezes indesejadas. Estas novas possibilidades foram abertas com o 25 de Abril e com a institucionalização das consultas de planeamento familiar a partir dos centros de saúde, informação e acesso à contracepção, utilizando crescentemente formas seguras de planeamento familiar e de garantir uma vivência sexual saudável.
A consolidação de um caminho que generalize a educação sexual nas escolas, que amplie as consultas de planeamento familiar e a acessibilidade à contracepção é uma aposta decisiva e indispensável, sendo necessário dar uma especial atenção às camadas mais jovens.
Mas, os números continuam a demonstrar que não existem métodos de controle da fertilidade 100% seguros, podendo ocorrer falhas e gravidezes não desejadas. E em muitas destas situações as mulheres decidem recorrer ao aborto em Portugal ou no estrangeiro. E muitas continuam a chegar aos hospitais com sequelas de aborto clandestino.
Assumimos sem hesitação nem ambiguidade a defesa da despenalização da Interrupção Voluntária da Gravidez até às 12 semanas e não qualquer outra solução que assente na ideia da culpabilização das mulheres pelo recurso ao aborto, mesmo que com penalização mitigada.
Em trinta anos de democracia, várias oportunidades foram perdidas no encarar desta dura realidade. Portugal não pode continuar a situar-se entre os países que negam à mulher a liberdade de decidir em matéria de direitos sexuais e reprodutivos, componente fundamental do direito à igualdade
O PCP bate-se pela alteração de uma legislação que maltrata as mulheres que recorrem ao aborto, tratando-as como criminosas e pela aprovação de uma lei penal tolerante, que respeite a capacidade de decisão das mulheres e que se integre na defesa dos seus direitos sexuais e reprodutivos.
A despenalização da Interrupção Voluntária da Gravidez não pode esperar e é agora possível. E sobretudo é agora possível.
II – Síntese do Projecto de Lei
O projecto de lei que apresentamos corresponde no essencial aos Projectos apresentados na anterior legislatura.
Propomos:
- A exclusão da ilicitude da interrupção voluntária da gravidez quando realizada nas primeiras 12 semanas a pedido da mulher para garantir o direito à maternidade consciente e responsável.
- Nos casos de mãe toxicodependente o alargamento do período atrás referido para as 16 semanas;
- A especificação de que, havendo risco de o nascituro vir a ser afectado pelo síndroma de imunodeficiência adquirida, o aborto (eugénico) poderá ser feito até às 24 semanas (situação que já está compreendida na actual lei, mas que convirá explicitar dadas algumas resistências ainda existentes relativamente à aplicação da lei);
- O alargamento de 12 para 16 semanas do prazo dentro do qual a Interrupção Voluntária da Gravidez pode ser praticada sem punição, nos casos em que a mesma se mostre indicada para evitar perigo de morte ou de grave lesão para o corpo ou saúde física ou psíquica da mulher grávida. Na verdade, a vida demonstrou, nomeadamente nas doentes submetidas a tratamentos antidepressivos, a necessidade de alargamento do prazo;
- O alargamento para 24 semanas no caso de vítimas de crimes contra a liberdade e a autodeterminação sexual quando menores de 16 anos ou incapazes por anomalia psíquica;
- A obrigação de organização dos serviços hospitalares, nomeadamente dos distritais, por forma a que respondam às solicitações de prática da Interrupção Voluntária da Gravidez;
- A impossibilidade de obstruir o recurso à Interrupção Voluntária da Gravidez através da previsão da obrigação de encaminhar a mulher grávida para outro médico não objector de consciência ou para outro estabelecimento hospitalar que disponha das condições necessárias à prática da Interrupção Voluntária da Gravidez;
- A despenalização da conduta da mulher que consinta na Interrupção Voluntária da Gravidez fora dos prazos e das condições estabelecidas na lei;
- Garantia de acesso a consultas de planeamento familiar.
Com o presente projecto de lei pretende o PCP que se institua um regime legal mais adequado do que o vigente, nomeadamente tendo em atenção os conhecimentos da medicina, o qual tem de ser acompanhado por políticas que garantam a realização pessoal dos cidadãos e que protejam a maternidade e a paternidade.
Assim, os Deputados abaixo assinados do Grupo Parlamentar do PCP apresentam o seguinte Projecto de Lei:
Artigo 1.º
(Interrupção da gravidez não punível)
O artigo 142.º do Código Penal passa a ter a seguinte redacção:
Artigo 140.º
1 - Não é punível a interrupção da gravidez efectuada por médico, ou sob a sua direcção, em estabelecimento de saúde oficial ou oficialmente reconhecido, quando realizada nas primeiras 12 semanas de gravidez a pedido da mulher para preservação do direito à maternidade consciente e responsável.
2 - De igual modo, não é punível a interrupção da gravidez efectuada por médico ou sob a sua direcção, em estabelecimento de saúde oficial ou oficialmente reconhecido, com o consentimento da mulher quando, segundo o estado dos conhecimentos e da experiência da medicina:
a) (actual alínea a) do n.º 1 do artigo 142.º);
b) Se mostrar indicada para evitar perigo de morte ou de grave e irreversível lesão para o corpo ou para a saúde física e psíquica da mulher e for realizada nas primeiras 16 semanas de gravidez;
c) (actual alínea c) do n.º 1 do artigo 142.º, com a redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 90/97, de 30 de Julho);
d) Houver seguros motivos que indiciem risco de que o nascituro venha a sofrer, de forma incurável, de HIV (síndroma de imunodeficiência adquirida) e for realizada nas primeiras 24 semanas de gravidez, comprovadas nos termos referidos na alínea anterior;
e) (actual alínea d) do n.º 1 do artigo 142.º, com a redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 90/97, de 30 de Julho);f) Nos casos referidos na alínea anterior, sendo a vítima menor de 16 anos ou incapaz por anomalia psíquica se a interrupção da gravidez for realizada nas primeiras 24 semanas comprovadas nos termos referidos na alínea c).
3 - Sempre que se trate de grávida toxicodependente não é punível a interrupção da gravidez efectuada a seu pedido nas condições referidas no n.º 1 durante as primeiras 16 semanas de gravidez.
4 - A verificação das circunstâncias que tornam não punível a interrupção da gravidez, referidas no nº 2, é certificada em atestado de médico, escrito e assinado antes da intervenção, por médico diferente daquele por quem, ou sob cuja direcção, a interrupção é realizada.
5 - Actual n.º 3.
–-Actual n.º 4.
Artigo 2.º
(Despenalização da conduta da mulher grávida)
O artigo 140.º do Código Penal passa a ter a seguinte redacção:
Artigo 140.º
(Interrupção da gravidez)
1 - Actual n.º 1.
2 - Actual n.º 2.3 - Eliminado.
Artigo 3.º
(Garantias de prática da Interrupção Voluntária da Gravidez
nos termos da presente lei)
1 - Os estabelecimentos públicos de saúde, nomeadamente a nível distrital, serão organizados por forma a dispor dos serviços necessários à prática da interrupção voluntária da gravidez, de acordo com o previsto na presente lei, sem prejuízo do direito à objecção de consciência dos médicos e demais profissionais de saúde.
2 - A objecção de consciência deverá ser declarada na altura em que for solicitada a interrupção da gravidez, e terá de constar de documento então assinado pelo objector, sendo tal objecção imediatamente comunicada à mulher ou a quem, no seu lugar, pode prestar o consentimento.
3 - A comunicação referida no número anterior deve ser acompanhada de informação sobre o profissional que não seja objector de consciência.
4 - Sempre que um estabelecimento público de saúde não disponha de condições para a prática de interrupção voluntária da gravidez, as solicitações de intervenção ali apresentadas serão imediatamente encaminhadas por aquele serviço ao estabelecimento de saúde mais próximo onde seja praticada a interrupção voluntária da gravidez, por forma a que esta seja efectuada nas condições e prazos previstos na presente lei.
Artigo 4.º
(Planeamento familiar)
A instituição onde se tiver efectuado a interrupção voluntária da gravidez providenciará para que a mulher, no prazo máximo de sete dias, tenha acesso a consulta de planeamento familiar.
Artigo 5.º
(Entrada em vigor)
A presente lei entra em vigor no dia imediato ao da sua publicação.
Assembleia da República, em 16 de Março de 2005