Intervenção de Vanessa Borges, 2.º Encontro Nacional do PCP sobre Cultura

A Cultura, um direito fundamental das crianças

Ao longo do dia ouvimos intervenções sobre as mais diversas áreas da cultura. Opinião unânime, e que também está patente na caracterização do serviço público de cultura que o PCP propõe, em conjunto com as estruturas e agentes culturais, é a necessidade de investimento, aprofundamento e universalização do Ensino Artístico.

O Ensino Artístico, articulado com o Ensino Obrigatório e gratuito, começa no segundo ciclo, para crianças de 10 e 11 anos. Antes disso, a escola deve assegurar um conjunto de aprendizagens nos domínios artísticos, mas as crianças têm apenas oportunidade de tomar contacto com a cultura, enquanto agentes ativos, ou através da frequência de escolas privadas ou através do usufruto de iniciativas do Movimento Associativo Popular.

Ora uma criança não tem o início da sua formação cultural apenas com esta idade. Ela começa quando a criança nasce.

No primeiro ciclo, observamos um ensino fragmentado e disperso. Ainda que existam um conjunto de objetivos pedagógicos do domínio artístico, estes são esmagados pelo peso dos currículos de outras matérias, e desprezados enquanto componente da formação humana.

Tenho uma filha no terceiro ano do primeiro ciclo e constatamos esta realidade pelos trabalhos de casa, que são sempre contas, textos que ela não escolheu, verbos…. Nunca uma sugestão de uma peça de teatro ou um concerto, nunca a escolha de uma atividade cultural, e até quando a pergunta da ficha de trabalho é “o que pensas de…” a preocupação é sempre a de ir ao encontro do que a professora pretende que se escreva e não o que realmente ela pensa.

E quando acaba a escola, ao fim do dia, existem as AEC (atividades de enriquecimento curricular), onde entre outras matérias, as crianças ocupam o tempo até os pais - com horários não compatíveis com os cuidados aos filhos - os poderem ir buscar, com Expressão musical, plástica e dramática, dinamizadas por trabalhadores há anos a recibos verdes, de cuja responsabilidade o Governo lava as mãos, e que desenvolvem trabalho com poucos meios e sem uma estrutura de apoio que lhes permita desenhar programas e pôr em prática as atividades que efetivamente contribuirão para desenvolver o sentido crítico, o olhar diferenciado que irá enriquecer a cultura no futuro.

Voltando mais atrás, ao Ensino Pré-escolar e à Creche, verificamos a pobreza cultural a que é vetada a infância. Eu trabalho numa instituição, A Voz do Operário, que ao constatar a necessidade de aprofundar o trabalho com as crianças na área da música, procurou colmatar essa lacuna com a contratação de profissionais da música, como é o meu caso. E nesta função, não ensinamos apenas os princípios básicos da música as famílias de instrumentos ou ritmos corporais. Não formamos só público ou músicos virtuosos, mas sim cidadãos plenos, que com a sua sensibilidade musical encorajada e estimulada, serão parte ativa da Cultura.

Corrijo-me. Não serão. Já são..

Muitos reconhecem a infância como fase importantíssima para o desenvolvimento de competências, entre elas o pensamento crítico e a sensibilidade artística. Poucos reconhecem a capacidade criadora das crianças.

As crianças, apesar de andarem pelo mundo há menos tempo que nós, trazem sonhos e potencialidades infinitas. E capacidades. As crianças reconhecem a importância da sua voz. Podem não saber escrever, mas sabem dizer o que querem e pensam, e com ajuda podemos transformar isso em poesia. Não dizem que não sabem cantar e entoam despreocupadamente melodias complexas e ricas. Não trazem preconceitos, pelo que sabem apreciar quer a música clássica, quer o que trazem de casa - no meu caso, trabalhando com comunidades imigrantes, pode tanto ser a canção brasileira da rádio ou a canção que a avó cabo-verdiana canta.

É desde o nascimento que as crianças podem fazer música, desde o momento em que entoam as primeiras sílabas. Porque arte é também comunicação, a partir da interação com os pares e adultos, as crianças ganham confiança na sua capacidade criadora. E ainda assim, da mesma maneira que o conteúdo pedagógico em creche é totalmente desprezado pelas entidades dele responsáveis, a reboque vai também a cultura na primeira infância.

Por exemplo, a minha filha do meio, enquanto frequentava a creche, podia usufruir de expressão musical, desde que paga. Hoje no Pré-escolar público, ela tem expressão dramática uma vez por semana, durante apenas um semestre. O resto resulta da vontade da educadora, que em colaboração com as famílias vai conseguindo transmitir.

Passando para fora das escolas, o direito das crianças à criação e fruição cultural está consagrado e têm havido esforços por parte de diversas estruturas - municipais ou com financiamento público - no sentido de alargar as suas programações ao público infantil. Contudo, não basta uma oferta, um dia nos festivais de música ou uma programação infantil no teatro ou no cinema. Porque as crianças e adolescentes não são apenas um receptáculo, são intervenientes ativos na cultura. E se é verdade que o seu sentido crítico e interventivo se desenvolverá e será tão mais rico quanto maiores forem as oportunidades de assistirem a produtos de cultura, o seu direito não se esgota na plateia.

As crianças têm capacidade de criar, de fazer escolhas, de participar e decidir sobre os seus gostos, sobre o que lhes faz sentido.

Por falar em plateia, no Teatro Municipal Joaquim Benite, em Almada, uma família de 5 pessoas que queira assistir a um espetáculo para a infância irá pagar 50 euros. À excepção de iniciativas gratuitas, é difícil para uma família, por mais comprometida que esteja em fomentar o gosto pelo teatro e cinema nas suas crianças, de o fazer de forma livre e consistente.

Mas as dificuldades de acesso à cultura pelas crianças não se esgotam aqui. Tal como o PCP afirma, os direitos das crianças estão diretamente ligados aos direitos das suas mães, pais e famílias. Com horários longos e desregulados, sem conseguirem mais que alimentar e dar banho aos filhos ao fim do dia, sem tempo para o lazer e para brincar, as famílias - as crianças - sofrem um aperto brutal. Os pais, a meio dos afazeres, e porque as crianças gostam de música, dança e imagens, recorrem a canais de televisão infantis, youtube, ou, na melhor das hipóteses, Netflix para conseguirem fazer face às exigências do dia-a-dia. Conteúdos que não são curados para a infância por forma a oferecer as ferramentas necessárias para as crianças serem agentes da cultura.

Reforço a necessidade de um serviço público de cultura, que como aqui foi descrito, carece de planificação e estratégia, mas que não pode descurar as crianças. Elas não são o futuro, são já o presente.

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