Intervenção de Alfredo Campos, Membro da Direcção da Confederação Nacional de Agricultura, Seminário «O Capitalismo não é verde. Uma visão alternativa sobre as alterações climáticas»

«Com novas prioridades políticas, com a Agricultura Familiar, o nosso futuro será melhor»

«Com novas prioridades políticas, com a Agricultura Familiar, o nosso futuro será melhor»

Pela primeira vez na vida da Terra o actual ciclo de alterações climáticas deve-se, em grande parte, à acção predatória de humanos.

São conhecidos, ou antevêem-se, os seus efeitos no planeta, na vida das plantas e animais, na actividade e vida da humanidade.

Em grande medida provocadas pela exploração desenfreada, que ultrapassa todos os limites de sustentabilidade, também no que respeita à agro-pecuária e floresta e à alimentação, pretende-se meter tudo no mesmo saco, ou mesmo responsabilizar principalmente os que menos culpa têm e, antes pelo contrário, são guardiães da vida animal e vegetal e dos recursos naturais, alimentam os povos e são o eixo central para a recuperação da sustentabilidade, como é hoje reconhecido pelos principais organismos internacionais, nomeadamente a FAO e a ONU, e por grande parte da comunidade científica. Falo, naturalmente, das camponesas e dos camponeses, da Agricultura Familiar, da Declaração dos Direitos Camponeses e outras pessoas do Mundo Rural, aprovada pela Assembleia Geral da ONU em Dezembro passado, e da Década da Agricultura Familiar-2019/2028, lançada em Roma em Maio passado, por ser finalmente considerada indispensável para a implementação dos objectivos de desenvolvimento sustentável.

Procurando desviar as atenções sobre os principais responsáveis pelo desastre que se avizinha, fazedores de opinião, órgãos de comunicação do capital, cientistas das suas transnacionais, mas também grupos e partidos de fachada socialista, responsabilizam os pequenos e médios agricultores de todo o mundo, que, apesar de perseguidos e espoliados das suas terras, continuam a resistir, a produzir e a alimentar os povos.

A evolução científica e tecnológica, substancialmente financiada pelas grandes multinacionais a montante e a jusante da produção, os programas internacionais ditos de apoio ao desenvolvimento, que exportam tecnologia, quadros e capital a troco de commodities, têm sido postos ao serviço da concentração dos cada vez menos e maiores monopólios, da acumulação do lucro, do novo domínio colonial, do alastramento do imperialismo, enquanto a fome e a subnutrição continuam a aumentar, principalmente nos continentes e países produtores, e a obesidade é já um problema de saúde pública nos chamados países desenvolvidos.

O domínio capitalista da produção agrícola e da alimentação são hoje armas contra a soberania de muitos países e povos.

Porque o problema é geral, eis alguns dados esclarecedores a nível mundial: A cadeia industrial capitalista de produção de comida consome 70% dos recursos agrícolas, mas assegura apenas 30% das provisões enquanto a agricultura camponesa, com 30% dos recursos, alimenta 70% da população mundial.

A indústria capitalista do sector agro-alimentar, que, anualmente, usa mais de 80% dos combustíveis fósseis,70% da água de uso agrícola, gera cerca de 50% de gases com efeito de estufa, desfloresta 13 milhões de hectares, destrói 75 mil milhões de toneladas de coberto vegetal, representa só 15% da comida produzida mas domina os mais de 7mil milhões de dólares que vale o mercado mundial de comestíveis.

Na voracidade do lucro, a cadeia industrial apenas usa 150 cultivos, mas foca-se somente em 12, apesar de ter registado a propriedade intelectual de mais de 80 mil variedades (59% plantas ornamentais).

Contrariamente, a agricultura camponesa cultiva mais de 2,1 milhões de variedades de 7 mil espécies, uma pequena parte de plantas ornamentais, e obtém 80 a 90% das sementes fora do circuito comercial. Se este é o dramático panorama mundial, na União Europeia e em Portugal a situação que resulta de uma PAC cada vez menos agrícola e menos comum, repleta de tratamentos desiguais e opções de ruína da Agricultura Familiar, não é melhor.

A União Europeia e a PAC, os sucessivos governos de Portugal, desde a negociação da adesão à então CEE, ao actual, privilegiam o agronegócio transnacional em prejuízo das explorações familiares e do direito das populações a uma alimentação de qualidade e de proximidade assente na produção nacional.

Por isso a União Europeia tem mais de 160 acordos com outros países, paga para não se produzir, eliminou as quotas leiteiras, arranca a vinha ou impõe condições ruinosas para a agricultura familiar.

Por isso os governos portugueses desde a adesão, com a teoria do produzir para exportar, investem no desenvolvimento da exploração capitalista da terra com as suas enormes monoculturas intensivas, que levaram à concentração da propriedade, com a duplicação da área das explorações e à eliminação de mais de metade.

Submissos, estes governos vêem no CETA, no TTIP, no acordo com o MERCOSUL oportunidades de negócio para alguns poucos, à custa da ruína de muitos pequenos e médios agricultores que terão cada vez menos possibilidade de vender os seus produtos a preços compensadores, com a invasão dos mercados com produtos importados de países onde os camponeses são igualmente explorados e expulsos das suas terras.

O actual Governo, no plano das declarações até tem tido algum posicionamento positivo, como o de ter votado favoravelmente a Declaração dos Direitos Camponeses, quer na Comissão de Direitos Humanos, quer na votação final na Assembleia Geral da ONU, quebrando com isto o unanimismo dos países da UE, ou quando subscreveu as directrizes da CPLP para a promoção da Agricultura Familiar, ou quando promoveu a Cimeira da CPLP, em Lisboa, ou quando, respondendo à proposta da CNA, publicou o Decreto-Lei que consagra o Estatuto da Agricultura Familiar.

Mas a sua prática governativa continua submissa aos interesses do agronegócio capitalista e de marginalização e culpabilização da Agricultura Familiar, acusando a pequena e média agro-pecuária e floresta de todos os males.

Para o Governo, são estas que são responsáveis pelos fogos, pelas baixas produtividades, pelos incêndios rurais, pela contaminação dos solos e águas.

Daí as medidas que na prática conduzem à eliminação da pequena exploração, como a ideia da redução para metade, do efectivo bovino, ou a penalização ou expropriação de terras de cultivo e floresta, a pretexto de não terem dono conhecido ou serem mal cuidadas, sem reconhecer que estas situações são, no geral, consequências das decisões políticas e económicas adoptadas, particularmente desde a adesão à CEE/UE.

São políticas orquestradas tendentes a reduzir a produção nacional para a alimentação da nossa população, à concentração da propriedade, à instalação de grandes empresas capitalistas vocacionadas para a exportação, muitas delas estrangeiras, que se apropriam das terras camponesas, que recebem apoios que deveriam ser destinados aos nossos agricultores.

Assim, com estas políticas apenas focadas no equilíbrio da balança alimentar, em valor, em vez de caminharmos para a auto-sustentabilidade e defesa da nossa soberania alimentar, cada vez seremos mais dependentes das importações para alimentar a nossa população, cada vez teremos mais vastas regiões em situação de desertificação humana, ocupadas por infindáveis manchas florestais, particularmente de eucalipto, ou ocupadas por grandes empresas agrícolas que contaminam e esgotam os nossos recursos naturais.

O Governo não pára de mostrar a sua política de classe.

Ainda anteontem foi criado o Centro Nacional de Competências para as Alterações Climáticas do sector Agroflorestal.

Quem o integra?

Para além de diversos organismos do Estado, apenas organizações sectoriais da CAP.

É indispensável mudar de política.

É indispensável uma política de recuperação das economias locais e regionais, de reocupação humana de regiões em desertificação, de defesa do meio ambiente, de recuperação do nosso património vegetal e animal, de preservação dos nossos recursos naturais.

Com novas prioridades políticas, com a Agricultura Familiar, o nosso futuro será melhor.

Mas o Estatuto da Agricultura Familiar, publicado há mais de um ano, ainda não saiu do papel. A definição de quem é agricultor familiar e muitas das medidas enunciadas estão erradas e, na prática, excluem grande parte da Agricultura Familiar.

Se a justificação de motivos do Decreto-Lei até vem no sentido da proposta da CNA, já os limites impostos no articulado revelam um carácter assistencialista, têm como destinatários os cerca de 100 pequenos agricultores que a PAC e as políticas nacionais foram excluindo de quaisquer apoios.

Estes, que toda a sua vida amanharam a terra, que a regaram com o suor de uma vida de trabalho sem nunca verem o seu esforço recompensado pelo justo pagamento dos seus produtos, merecem-nos todo o respeito.

Mas, na nossa perspectiva, a agricultura familiar é muito mais e pode ser o motor da transformação e do desenvolvimento da nossa agricultura e alimentação, pode ser o garante da nossa soberania alimentar.

Agricultura Familiar é aquela em que o trabalho da exploração é maioritáriamente assegurado pelo agregado familiar.

A agricultura familiar são todas e todos, que a tempo inteiro ou parcial, já muitas vezes com formação média ou superior, dão continuidade às explorações dos seus pais, são aquelas e aqueles que, com outras origens, sentem o chamamento da terra, que compram ou arrendam terras, que investem no redimensionamento das explorações, em novas técnicas e tecnologias, em novas culturas.

Mas, para cumprir a insubstituível função que hoje lhe é reconhecida, mais que discursos, declarações ou decretos, a agricultura familiar exige medidas de política concretas.

Para cumprir o seu papel é necessária uma nova política que promova e valorize a agricultura familiar.

Uma política que, numa agricultura em grande parte a tempo parcial, reconheça o imprescíndivel papel da mulher camponesa, que, quando o homem imigra ou trabalha noutra actividade, assume a direcção da exploração, sem ter reconhecidos quaisquer direitos.

Uma política com medidas desburocratizadas, que crie regimes de segurança social, de impostos, de crédito, de seguros, de programas de investimento, adequados aos rendimentos da agricultura familiar.

Uma política que valorize os serviços públicos prestados pela agricultura familiar: a conservação da natureza, a luta contra a desertificação humana, a coesão territorial, a protecção do meio ambiente e a biodiversidade, a preservação de espécies e sementes, a preservação da arte, da cultura e das tradições populares.

Uma política agrícola e alimentar que dê à agricultura familiar a prioridade no acesso à terra para redimensionamento e melhoria da viabilidade económica das suas explorações, que promova os mercados locais para venda das produções; que dê prioridade à agricultura familiar no abastecimento não só das escolas, mas de todas as cantinas de instituições públicas e da economia social da região onde se inserem as explorações familiares.

Está nas nossas mãos, na aproximação entre a Agricultura Familiar, e os trabalhadores e as populações, o reforço da luta pelo direito a produzir e o direito a uma alimentação saudável e de proximidade, o reforço da luta em defesa do nosso património e da soberania alimentar.

Com isso estaremos todos a contribuir para um planeta melhor.