Intervenção de Francisco Melo, membro do Comité Central e Director das edições «Avante!», Apresentação pública do Tomo IV das Obras Escolhidas de Álvaro Cunhal

Apresentação do tomo IV das Obras Escolhidas de Álvaro Cunhal

Camaradas e Amigos,

Com a edição deste tomo IV das Obras Escolhidas de Álvaro Cunhal, abrangendo textos de Janeiro de 1967 a Janeiro de 1974, encerra-se o período da produção teórica de Álvaro Cunhal durante o período da ditadura fascista.

Num dos principais ensaios incluído no presente tomo, O Radicalismo Pequeno-Burguês de Fachada Socialista, Álvaro Cunhal procede a uma caracterização das «contradições, problemas e dificuldades» que, vindas do salazarismo, se agravaram contudo com o marcelismo. Essa caracterização só foi possível dado o seu superior domínio da dialéctica materialista, resultante do aprofundado estudo do marxismo-leninismo, e permitiram-lhe dotar o Partido de um sólido guia para a acção.

Álvaro Cunhal começa por referir que os monopólios, para aumentar a «taxa de mais-valia necessária a uma mais rápida acumulação», em condições em que era «fraca a produtividade na generalidade dos ramos de economia» e em que o seu aumento constituía «um processo relativamente lento», eram conduzidos a uma «política de congelação de salários». Mas, com isso, era igualmente congelada «a dimensão do mercado interno», tendo como consequência a travagem da pretendida «expansão económica», com a emigração forçada dos trabalhadores, o que se traduzia numa redução da mão-de-obra. Esta redução criava, contraditoriamente, «condições para uma subida salarial», dada a «escassez da oferta de trabalho» e a criação de «condições favoráveis à luta reivindicativa dos trabalhadores».
Um outro aspecto que Álvaro Cunhal foca é o de que, com um mercado interno limitado como era o nosso, os monopólios procuravam uma saída no mercado internacional, «entrando em zonas de integração». Mas logo surgia a contradição: a indústria e a agricultura portuguesas, não dispondo de «capacidade competitiva», dado «o baixo nível das forças produtivas, o atraso económico geral, os altos custos de produção», arriscavam-se, «sem uma forte protecção pautal» a serem «batidas, não só no mercado internacional, como no próprio mercado interno».

Por outro lado, o governo ao serviço dos monopólios recorria «ao aumento dos impostos» com o objectivo de «aumentar o auxílio directo do Estado aos monopólios através de investimentos»; porém, com «tal política fiscal», contraditoriamente, «uma parte da mais-valia a acumular» era subtraída às empresas privadas e a população via diminuído o seu poder de compra.

A exploração colonial é uma outra característica que Álvaro Cunhal analisa. Assentando as actividades de importantes sectores económicos no «mercado colonial» e nas «matérias-primas das colónias», duas consequências se registavam: por um lado, «algumas dessas matérias-primas» tinham um preço mais baixo no mercado internacional; por outro lado, «o baixo desenvolvimento económico e a miséria das populações» coloniais impediam que o mercado colonial desse «saída à produção dos sectores de arranque num processo de industrialização». Mais: como mostra Álvaro Cunhal noutro passo, a exploração colonial constituira e constituia mesmo um obstáculo ao desenvolvimento das forças produtivas em Portugal.

O desencadear da guerra colonial veio ainda agravar mais a situação: recorrendo à guerra, «os monopólios procuravam manter a exploração colonial», mas os custos que ela acarretava e os «imensos recursos» que absorvia constituíam um factor de retardamento da «acumulação» e «um freio aos investimentos produtivos». Além disso, tal exploração e a prossecução da guerra colonial só era possível porque o fascismo e o colonialismo português contavam com o apoio e a ajuda dos «países imperialistas, e em primeiro lugar a NATO», no plano diplomático, político, financeiro e militar. Mas daí resultava que, quer na exploração do nosso povo quer na dos povos coloniais, «os monopolistas portugueses» se encontrassem cada vez mais «estreitamente associados, numa posição subalterna, ao imperialismo estrangeiro». Por isso, como diz Álvaro Cunhal, Portugal era «contraditoriamente, um país colonialista em África e colonizado na Europa». Ora, o governo fascista, a partir de Setembro de 1968 encabeçado por Marcelo Caetano, agravava cada vez mais esta dependência para conseguir o apoio do imperialismo à sua política, fazendo «cada vez mais concessões económicas em Portugal e nas colónias portuguesas» e cedendo «o território nacional para a instalação de bases militares. Como sintetizava Álvaro Cunhal de forma incisiva: «Pode-se dizer que a ajuda dos países imperialistas ao governo de Lisboa é directamente proporcional às posições detidas pelos monopólios na economia de Portugal e das colónias portuguesas, e às instalações militares de que dispõem em território português.»

Por isso, como Álvaro Cunhal reafirma noutro ensaio que integra este tomo, Acção Revolucionária, Capitulação e Aventura, «um dos objectivos centrais da revolução antifascista» era precisamente «a libertação do imperialismo estrangeiro», pois «Portugal não poderá ser um país verdadeiramente democrático enquanto for um país efectivamente colonizado». O que apresentava ainda uma outra dimensão: a de que, estando intimamente imbricada «a infame exploração dos povos das colónias portuguesas pelos monopólios portugueses e o imperialismo estrangeiro», um regime democrático em Portugal apenas seria «viável», assim como a «verdadeira independência» só poderia ser «assegurada» se fosse «assegurado também o direito dos povos das colónias portuguesas à autodeterminação e à independência imediata e completa». Patriotismo e internacionalismo tinham pois uma base objectiva, constituindo o alicerce de uma política firmemente prosseguida pelo nosso Partido ao longo de todos estes anos de ditadura fascista.

Ao contrário do PCP, outras formações políticas antifascistas defendiam posições neocolonialistas de que destaco aqui a Acção Socialista Portuguesa (ASP) que Álvaro Cunhal caracteriza como reflectindo ideologicamente «um compromisso entre camadas diversas da pequena e da média burguesia». Num documento intitulado Sobre a Situação Política e as Tarefas do Partido, constatando uma evolução num sentido anticolonialista na maior parte dos sectores antifascistas, Álvaro Cunhal lembra que, quanto à ao reconhecimento do direito à imediata independência dos povos das colónias portuguesas, a ASP ainda em 1969 se pronunciava contra o que chamava «abandono». O neocolonialismo seria sempre o calcanhar de Aquiles, com expressões variadas, dos socialistas nos anos subsequentes.

Quanto às posições da pequena burguesia radical, citaremos as que partiam da concepção de que «a exploração colonial e a guerra seriam no fim de contas», assim o escreviam, «uma sobrevivência de um capitalismo atrasado» que o salazarismo teria representado, mas não seria a política de Marcelo Caetano que admitiam «estar a preparar “uma eventual retirada» das colónias. Esta concepção integrava-se no oportunismo global do radicalismo pequeno-burguês ante a demagogia «liberalizante» marcelista, a qual não consideravam como sendo tal, mas como, salienta Álvaro Cunhal, «um processo real de “liberalização” e “democratização”, fazendo parte do “plano” dos monopólios de pôr termo à ditadura fascista e de instaurar uma democracia burguesa». A história desmentiu contundentemente tão sábias elucubrações ideológicas.

Mas outras facetas apresentava a este respeito o radicalismo pequeno-burguês: perorações demagógicas de «esquerda» proclamavam não haver para a guerra colonial, assim o escreviam, «outra solução senão a revolução popular» - a que por vezes chamavam «revolução socialista» - «que derrube a ordem capitalista fascista». E até lá, até à revolução popular? Até lá, como diz Álvaro Cunhal, os povos coloniais «que se amanhem!» - eis em que se traduzia o seu anticolonialismo.

Bem diferente era a atitude dos comunistas que consideravam que «as forças anticoloniais têm o dever de prestar diariamente, na acção e não em palavras, a sua solidariedade aos povos das colónias portuguesas, a fim de facilitarem a sua vitória, que deverá ser também uma vitória da classe operária e do povo português em luta». Era à fuga a este dever revolucionário de lutar, como diz Álvaro Cunhal, «hoje, já hoje, nas condições do fascismo», contra a guerra colonial e o colonialismo que a demagogia de «esquerda» procurava dar cobertura.

Prosseguindo a sua enunciação das contradições que corroíam o fascismo, Álvaro Cunhal diz-nos que este cada vez mais procurava em «fontes estranhas à produção nacional», em particular nas «remessas de emigrantes» e nas receitas do «turismo», o equilíbrio da balança de pagamentos. Mas com isso minavam-se as bases da economia nacional, o «processo inflacionista» acentuava-se e, dado o carácter incontrolável dos «factores externos» mencionados, expunha-se «a economia nacional a súbitos desequilíbrios e roturas».

Por outro lado, continua Álvaro Cunhal, assiste-se à associação dos grupos monopolistas e à sua crescente submissão ao imperialismo internacional visando com isso corresponder à «busca de uma maior dimensão das empresas e de uma capacidade competitiva». Porém, tal redundava na «imposição de critérios selectivos e de divisão internacional de trabalho na industrialização», o que se traduzia contraditoriamente num refreamento ao «desenvolvimento económico nacional» e numa «efectiva diminuição da capacidade de competição para a grande maioria dos sectores».

E acrescenta Álvaro Cunhal: para atrair investimentos eram abertas as portas ao capital estrangeiro utilizando como isco, ontem como hoje, mão-de-obra e matérias-primas baratas, juntamente com a facilitação de «exportação dos lucros». Só que com esta ocorria também a «exportação da mais-valia», o que retardava a acumulação que se pretendia alcançar e, portanto, o desenvolvimento do capitalismo.

Depois de evidenciar estas e outras características da economia portuguesa sob o fascismo, Álvaro Cunhal chama a atenção, por um lado, para que elas revelavam «contradições, problemas e dificuldades reais no desenvolvimento económico», o qual sendo «uma questão vital» para os grupos monopolistas tornava inevitável que procurassem «soluções», estabelecessem «planos», tentassem «vencer os travões» a esse mesmo desenvolvimento. Mas, adverte Álvaro Cunhal, os que agora o faziam com o governo de Marcelo Caetano eram «os mesmos» que o tinham feito com o governo de Salazar. E acentua: «As modificações e diferenciações nas classes governantes, verificadas ao longo» da «ditadura fascista, não alteraram a natureza de classe do governo e do regime.» Não ter em conta essa «realidade fundamental», como diz Álvaro Cunhal, significava nada «compreender da situação económica e política actual, das contradições, conflitos e perspectivas da luta popular, do desenvolvimento do processo revolucionário».

Era do que davam provas quer o oportunismo de direita quer o esquerdismo, resultando daí expressões políticas comuns, tanto no período salazarista como no marcelista.

Limitemos aqui a nossa análise apenas a este último. Esquecendo que a «natureza de classe do governo e do regime» não se alterara com a subida de M. Caetano ao poder, logo alguns sectores oposicionistas se deixaram iludir pela demagogia «liberalizante» e procuraram, «num compromisso com o regime uma legalidade preferencial e o monopólio da representatividade legal da Oposição, lançaram-se numa intensa actividade de discriminação anticomunista e de divisão». Como aponta Álvaro Cunhal, entre esses sectores teve um papel de destaque «a Acção Socialista Portuguesa e particularmente alguns dos seus dirigentes».

Numa intervenção na reunião do Comité Central de Agosto de 1969 Álvaro Cunhal enumera as orientações que propunham esses sectores: «que não se devia hostilizar Marcelo Caetano», mas antes apoiá-lo «ou pelo menos dar-lhe tempo para realizar os seus projectos “liberalizantes”; que não se devia “fazer ondas” com lutas de massas, pois estas podiam provocar um golpe dos “ultras”; que aguardar passivamente os acontecimentos era a melhor forma de contribuir para uma democratização da vida nacional». E Álvaro Cunhal aponta, mais uma vez: «Estas ideias foram particularmente defendidas pela Acção Socialista Portuguesa.» Não era pois de admirar que, como Álvaro Cunhal refere em texto de finais de 1970, «ainda nas vésperas da burla eleitoral [de 1969], Mário Soares classificava a manobra fascista [de M. Caetano] como uma “operação liberalizante”, insistindo em que essa “operação”, resultado de “razões estruturais”, representa uma efectiva “evolução”». E continuava Mário Soares na sua declaração ao jornal República que Álvaro Cunhal transcreve: «A evolução não é tão rápida quanto todos desejaríamos […], mas não vejo motivos para desesperar.» O oportunismo de direita, não há dúvida, é muito paciente!

A impaciência é, pelo contrário, característica do oportunismo de esquerda, o que não impediu o seu alinhamento «com os oportunistas de direita da ASP», concedendo, também os radicais pequeno-burgueses, uma «preciosa colaboração à manobra “liberalizante”» ao fazerem-se «eco da demagogia fascista» de Marcelo, anota Álvaro Cunhal.

Com efeito, para eles a manobra «liberalizante» não era uma manobra demagógica, mas, como afirmavam, «uma liberalização real», «uma política de progressiva instauração das liberdades», «de um regime aberto», que segundo alguns deles ultrapassaria mesmo «em certos casos visivelmente o que a “Oposição” poderia pensar como reivindicável»!

A este propósito desenvolviam toda uma teorização opondo salazarismo e marcelismo.
Segundo tal teorização, o salazarismo teria sido uma «política de “blocagem” do desenvolvimento do capitalismo, de tentativa de retorno a formas pré-capitalistas de produção, de defesa dos interesses da pequena e da média burguesia». Assim sendo, diz com ironia Álvaro Cunhal, «o capital industrial, o capital financeiro, ter-se-iam desenvolvido não com o salazarismo e com a sua política, mas apesar e mesmo contra o salazarismo.»

O marcelismo, pelo contrário, representaria o poder do capital «empreendedor» e «progressista» que iria «desbloquear» o desenvolvimento económico. Para estes teóricos a ditadura fascista «teria sido a forma de dominação política do capital retardatário e reaccionário», ao passo que «o marcelismo seria a política desse capital “progressista”», que «pretenderia uma forma democrática de governo por corresponder às suas necessidades de desenvolvimento e à sua “europeização”». O mesmo é dizer: para eles a ditadura fascista tinha entrado num processo de autoliquidação. Tendo início com Marcelo Caetano, «o processo de “liberalização” e “democratização” seria um processo real, necessário à burguesia monopolista», diziam.

Eram outras as análises do Partido Comunista Português. No documento do Comité Central de Setembro de 1968, citado por Álvaro Cunhal, começava-se por afirmar: «O governo de Marcelo Caetano, que acaba de ser constituído, tal como antes o governo de Salazar, é o governo da ditadura terrorista dos monopólios (associados ao imperialismo estrangeiro) e dos latifúndios. O que desde já o distingue é continuar o salazarismo a coberto de uma demagogia “liberalizante”.» E mais adiante precisava o que tal demagogia visava: «manobrar com o fim de alargar as suas bases de apoio, semear ilusões de que ela própria pode imprimir um novo rumo à política nacional, atrair os sectores mais vacilantes da Oposição, isolar o Partido Comunista e outras forças de esquerda, refrear o descontentamento, fomentar a inércia e a expectativa das massas, impedir a súbita agudização da luta de classes, alargar os apoios internacionais.» E nele se advertia: «A formação do novo governo semeia perigosas ilusões que podem conduzir alguns sectores da Oposição ao colaboracionismo e à capitulação.» Se tivermos em conta o que acima dissemos sobre o oportunismo de direita e de esquerda, estas palavras não poderiam ser mais premonitórias e certeiras.

Mas um outro aspecto é também de salientar. Escrevendo cerca de um ano depois do documento citado, Álvaro Cunhal lembrava a linha táctica preconizada (e sempre prosseguida) pelo Partido:

«Primeiro: “desmascarar” a demagogia “liberalizante”, «o carácter antipopular, antidemocrático, antinacional da camarilha governante e a sua obstinação em prosseguir a política de repressão e de guerra colonial»;

«Segundo: “aproveitar audaciosamente a nova situação para quebrar o imobilismo político, exigir o cumprimento de quaisquer promessas demagógicas do governo, conquistar posições, imprimir um novo curso à vida política, impulsionar a acção política e a luta popular de massas.»

Como salienta Álvaro Cunhal, «só o Partido Comunista fez uma caracterização justa da situação, discernindo os seus aspectos contraditórios, a sua complexidade e as suas virtualidades para a acção antifascista no imediato».

Na sua obra, já citada, O Radicalismo Pequeno-Burguês de Fachada Socialista, de finais de 1970, Álvaro Cunhal, debruçando-se sobre a «linha estratégica» que o PCP então advogava, explicitava que «o primeiro grande objectivo político da actual fase» da revolução sendo «o derrubamento da ditadura fascista», isso não significava que estivessem «criadas as condições para pôr na ordem do dia o assalto final contra o poder fascista». E continuava: para «impulsionar, desenvolver e organizar» a luta popular não basta agitar «apenas os objectivos fundamentais da etapa actual da revolução» e muito menos «apenas os objectivos de uma etapa ulterior». A este propósito critica o dogmatismo e o sectarismo pequeno-burgueses pela sua incapacidade de «compreender que os objectivos fundamentais da revolução» têm que ser conquistados e não meramente reclamados, pois só «quando as condições estão maduras para que se tornem tarefa imediata» é que eles se convertem no «motivo imediatamente mobilizador». Sem tais condições, os objectivos fundamentais constituem é certo, acentua Álvaro Cunhal, «a perspectiva condutora das lutas parciais», mas é «na base de objectivos concretos, imediatos» que se desenvolve «a luta popular e a organização» sem as quais não há movimento revolucionário.

E comenta Álvaro Cunhal: «Só a impaciência pequeno-burguesa, o vício do verbalismo, o culto da frase revolucionária, a doença infantil de “queimar etapas”» é que levavam os radicais pequeno-burgueses a menosprezarem a luta por objectivos concretos imediatos, mas com isso nunca iam «além de grupitos separados das massas», que procuravam desempenhar «o papel que só as massas populares em luta» são capazes. E conclui Álvaro Cunhal: «Quem o não compreende nada compreende da dinâmica da luta de massas, a força motora das transformações revolucionárias.»

Mas também tendências inspiradas pela burguesia liberal e por certos sectores socialistas procuravam «impedir que o movimento democrático» definisse «objectivos concretos capazes de mobilizar as massas», como denunciava Álvaro Cunhal num documento de Agosto de 1969. Acentuando mais uma vez que «a unidade forja-se na acção e para a acção», Álvaro Cunhal apontava como necessidade imperiosa não só «combater e reduzir a influência de tendências divisionistas e discriminatórias», mas também «tendências para o caciquismo, para os arranjos no topo, para a limitação e o refreamento da organização, da intervenção e da iniciativa da base do movimento» democrático. Por isso, alertava, devia ser combatido «tudo quanto tenda a manter afastadas da luta as massas populares» que, nas suas palavras, «são a fonte da vida, […] a força do progresso, o penhor do futuro do movimento democrático».

Camaradas e Amigos,

Dois temas que por serem constantes paradigmáticas do pensamento político de Álvaro Cunhal e, com as necessárias adaptações, pela sua actualidade queremos abordar aqui ainda que brevemente.

Comecemos pelo caso da defesa da independência nacional e a concomitante denúncia de submissão de Portugal ao imperialismo estrangeiro, que Álvaro Cunhal pormenorizadamente analisa.
Citaremos apenas um exemplo.

Escrevendo em Janeiro de 1974, referindo-se ao Mercado Comum, começa por evidenciar a natureza de classe deste como «produto e um factor do desenvolvimento do capitalismo monopolista de Estado e da internacionalização do capital» para depois mostrar que essa «associação dos grandes grupos monopolistas dos países industriais mais desenvolvidos» tinha (podemos dizer tem) por objectivo a «concorrência no mercado mundial, a absorção ou domínio dos concorrentes mais fracos, a exploração dos recursos e da mão-de-obra de países atrasados, o alargamento do campo de investimentos». E realça Álvaro Cunhal com palavras de evidente actualidade: «Esta política torna-se ainda mais ávida e egoísta, da parte de todos e cada qual, com a crise que se agrava nos países mais desenvolvidos.»

Face a esta situação, qual a posição do Partido Comunista Português? «Somos contra uma divisão internacional do trabalho», diz Álvaro Cunhal, que nos condene «a ter uma indústria subsidiária do imperialismo estrangeiro, uma indústria baseada sobretudo na utilização de mão-de-obra barata e na realização de operações parcelares não qualificadas». E reafirma (como hoje reafirmamos): «Somos contra uma política que entrega os recursos portugueses aos monopólios internacionais e que compromete o futuro desenvolvimento económico independente do nosso país.»

E não esqueçamos também esta advertência de Álvaro Cunhal em relação ao Mercado Comum: que a natureza e a política deste «não se podem modificar através da democratização formal das suas instituições, mas apenas através da substituição do poder dos monopólios pelo poder da classe operária e seus aliados nos países participantes». Só com isso, sublinha Álvaro Cunhal, «o processo de integração e a divisão internacional do trabalho […] deixarão de servir o capital e poderão servir os trabalhadores e os povos». Por isso afirmava: «Em Portugal, uma política de progresso social é inseparável da luta pela verdadeira independência nacional.» E, numa perspectiva mais abrangente, proclamava: «Não há independência da Europa sem a independência dos países que a compõem.» A história está a comprová-lo.

Um outro problema surgia então «no contexto do capitalismo monopolista de Estado e da hegemonia do Mercado Comum na Europa capitalista», também ele de grande acuidade nos dias de hoje: o da emigração, tornado «no nosso país um grande problema nacional», como assinala Álvaro Cunhal. E explica: «Os fascistas descobrem agora que Portugal não tem aptidão industrial nem aptidão agrícola.

A sua “aptidão” seria a de “prestar serviços”, a de ser uma economia apendicular, submissa e dependente dos grandes monopólios estrangeiros. A exportação de mão-de-obra faria parte dessa “aptidão nacional”.» Não há dúvida: os nossos governantes de hoje andam a ler as velhas cartilhas fascistas!

O outro tema a que não queríamos deixar de fazer referência pois Álvaro Cunhal repetidamente o retoma e ele liga indissoluvelmente o seu pensamento à construção do Partido, à elaboração da sua orientação política e táctica, cujas características específicas viriam a ser sintetizadas na expressão «Partido leninista definido com a experiência própria».

Discursando nas comemorações em Moscovo do 50.º aniversário da Revolução de Outubro, Álvaro Cunhal lembra o ensinamento de Lénine de que «as soluções políticas e os métodos de luta só podem ser traçados na base da situação concreta existente em cada país e não através da repetição de esquemas, da adopção mecânica de experiências, da aceitação de receitas de pretenso valor universal».

Num outro texto da mesma altura, Álvaro Cunhal explicitava, por um lado, que «a definição dos objectivos políticos e dos aliados do proletariado em cada etapa da revolução e a escolha das formas e métodos de luta devem partir do estudo da realidade económica, social e política em cada país»; e, por outro lado, precisava que «em quaisquer condições, o partido do proletariado só pode tornar-se uma força política dirigente na medida em que sabe ligar-se estreitamente à classe operária e às massas populares, colocar-se à sua frente, conduzi-las na luta, ensinar as massas e aprender com elas, defender inflexivelmente os seus interesses e ganhar o seu apoio». E concluia Álvaro Cunhal: «Foi tendo em conta esses ensinamentos que o PCP se tornou, nas condições do fascismo, a real força de vanguarda da classe operária e do movimento democrático português.»

No texto «A força invencível do movimento comunista» (1972) volta ao tema com novas precisões. Diz Álvaro Cunhal: É «guiando-se pelo marxismo-leninismo», é «assimilando a experiência do movimento revolucionário mundial e sem esquecerem os factores externos» que os Partidos Comunistas devem analisar «profundamente a realidade no próprio país» e com base nisso «definir a etapa da revolução, os objectivos e as formas de luta, a via para a conquista do poder, e mesmo características do futuro Estado socialista». Esta abordagem científica dos «problemas da revolução socialista», adverte Álvaro Cunhal, «nada tem porém a ver com a busca apriorística de uma “originalidade” e de um “modelo” próprio do socialismo, que pretenda afastar-se das leis objectivas, das experiências históricas, dos traços fundamentais comuns de todas as revoluções socialistas». Como especifica num outro texto: «A conquista do poder político pelos trabalhadores sob a direcção da classe operária e o estabelecimento da propriedade social dos meios de produção são transformações essenciais, embora realizáveis em processos e formas diversas, sem as quais não há socialismo.»

Tendo em conta tal advertência, pensamos ser uma mensagem apropriada neste ano em que se comemora o centenário do seu nascimento – mensagem que é ao mesmo tempo um encargo – aquela que Álvaro Cunhal transmite aos comunistas de hoje e de amanhã, expressa nas suas palavras numa Conferência Internacional já próxima do 25 de Abril: «É […] não só legítimo como necessário que cada partido procure, de forma criadora e com independência, o caminho que conduzirá ao socialismo e as soluções aos problemas que defronta nas condições específicas do seu país.»

Camaradas e Amigos,

Em Nota Prévia à antologia de documentos do Comité Central abarcando o período de Janeiro de 1965 a 25 de Abril de 1974 dizia-se que eles resultaram «de um amplo trabalho colectivo ao nível de direcção, trabalho exercido sobre as informações e análises dos militantes do Partido, a todos os níveis, e veiculadas através da sua organização à escala nacional». Esses documentos e duas cartas de Álvaro Cunhal (que se publicam no presente tomo), relacionadas com o trabalho preparatório para a elaboração dos referidos documentos, são a ilustração de que se só com um colectivo partidário actuante nos seus diversos níveis foi possível forjar um partido com a orientação, a organização e a actividade do PCP, sem paralelo no panorama político português. Isso, porém, não nos pode fazer esquecer uma outra verdade insofismável: a de que esse Partido pôde dispor para isso do contributo indelével de um dirigente de excepcional craveira político-ideológica, cultural e humana, de um dirigente de inquebrantável combatividade – Álvaro Cunhal.

E se a luta tenaz e decidida do povo português pôde fazer com que a Revolução florisse no palco da história em Abril de 1974, foi esse Partido Comunista Português, vanguarda da classe operária, a força impulsionadora dessa luta e com um papel determinante na sua orientação no sentido de uma revolução democrática e nacional, abrindo a perspectiva do socialismo em Portugal.

  • PCP
  • Central
  • Álvaro Cunhal