Com a apresentação do IV Tomo das Obras Escolhidas de Álvaro Cunhal, estamos chegados às portas da Revolução de Abril, nesse esforço de divulgação da sua elaboração teórica e da intervenção política que as «Edições Avante!» tomaram nas suas mãos, com o acompanhamento particular de Francisco Melo.
Trata-se de um lançamento duplamente significativo, mas também marcante pelo período que abarca da actividade teórica e da intervenção de Álvaro Cunhal e pelo momento do seu lançamento.
Por um lado, por que este novo volume, correspondendo ao período da fase final da crise geral do regime fascista e do advento e aproximação da situação revolucionária vitoriosa de Abril, fecha um ciclo no percurso do longo combate pelo derrubamento da ditadura de Salazar e Caetano, pela liberdade, pela democracia, pelo fim do colonialismo, por profundas transformações progressistas na sociedade portuguesa que Álvaro Cunhal e o seu Partido de sempre – o PCP – perseguiram, num combate inigualável e sem tréguas.
Fecho de um ciclo e, ao mesmo tempo, de um período de abundante de acção e intervenção política e ideológica, visando o objectivo da concretização da Revolução Democrática e Nacional, cujo programa, estratégia e tarefas tinham sido plasmadas, três anos antes, em 1964, nessa obra notável de Álvaro Cunhal que é “Rumo à Vitória”, aprovada no VI Congresso, a grande bússola no traçar do caminho que conduziu à Revolução e ao seu ulterior desenvolvimento.
Por outro lado, significativo por que este lançamento chega no momento em que, por todo o país, se realizam as comemorações do centenário do seu nascimento, numa justíssima homenagem que não é apenas dos comunistas, mas também de muitos outros democratas e patriotas, de muitas e várias instituições, que reconhecem em Álvaro Cunhal o homem de cultura integral, a grande e destacada figura da vida política portuguesa da nossa história contemporânea.
Um momento em que a obra, o pensamento e a luta de Álvaro Cunhal conhecem uma mais dedicada e merecida atenção, indo este IV Tomo ao encontro desse desejo, agora ainda mais desperto para um primeiro contacto e conhecimento para uns, provavelmente os mais jovens, e de aprofundamento e estudo para outros, do seu diversificado e valioso legado teórico e de intervenção política, mas igualmente cultural e artístico.
Um legado que não tem, apenas valor histórico, mas são reflexões, estudos, ensaios, análises, intervenções, simples artigos que são ensinamentos válidos para a acção no presente e também para o futuro dos que buscam respostas alternativas ao caminho de desastre nacional a que as classes dominantes e a sua política de direita e de submissão nacional conduziram o pais. Respostas quer no plano da solução de problemas concretos, quer da organização da sociedade.
Um legado que é uma referência na luta pelos valores da emancipação social e humana, particularmente para todos os que no país e no mundo abraçam a causa pela libertação do homem e dos povos de todas as formas de exploração e opressão.
Um legado cujo estudo é uma componente estruturante e fundamental, particularmente da formação política e ideológica dos militantes comunistas, não apenas porque nela está inscrita a história e a vida do Partido, cujo conhecimento é fundamental para compreender o que ele é hoje e o papel que lhe está reservado nos combates do presente e do futuro, mas igualmente o conhecimento concreto da realidade do país e do mundo, dos seus problemas, do valor do estudo na ligação com essa realidade, da importância de conhecer a sociedade nos seus processos globais e o domínio das teorias e método de análise do marxismo-leninismo que têm em Álvaro Cunhal e na sua obra uma fonte de saber e riquíssimos ensinamentos. Uma obra onde está patente a assimilação dessa tese clássica central que nos diz que “sem teoria revolucionária não há movimento revolucionário” e que em Álvaro Cunhal se expressa não apenas no seu contributo para dotar o PCP de um corpo de análises, ideias e orientações que dão consistência à sua intervenção, mas também numa criativa contribuição ao desenvolvimento do materialismo dialéctico e histórico.
Fechando o ciclo dos escritos do período clandestino com o presente lançamento, hoje podemos dizer que quem quiser conhecer a história da luta nosso povo contra o fascismo e os problemas com os quais se confrontou nos quase cinquenta anos desse regime de exploração brutal, violência e opressão, mas também uma visão dos problemas do mundo e da luta dos outros povos, tem nos 4 volumes das Obras Escolhidas de Álvaro Cunhal já publicadas uma fonte de conhecimento abrangente e profundo e acima de tudo verdadeiro.
Um período de uma luta heróica e abnegada de onde emerge o paulatino desenvolvimento e amadurecimento de um Partido que se tornou na grande força dinamizadora da unidade e luta da classe operária e dos trabalhadores, da luta do nosso povo contra a tirania fascista e pela defesa das suas condições de vida, no grande Partido nacional da unidade antifascista, em cuja construção Álvaro Cunhal se empenhou com um contributo inestimável, nomeadamente para a definição da sua identidade e características essenciais, bem como para uma concepção de Partido, entendido como um grande colectivo activo e participante na definição e na decisão das suas orientações.
No IV Tomo podemos encontrar o balanço de cinquenta anos de luta do PCP, escrito por Álvaro Cunhal em 1971, no preciso momento da passagem do meio século da sua existência. Um texto que reflecte o carácter patriótico e internacionalista da sua acção e intervenção. Um partido que enfrentando as duras condições das clandestinidade não esquece o dever da solidariedade com os outros povos em luta, nessa altura com o Vietname à cabeça, a luta dos povos árabes, mas também dos povos em luta contra o colonialismo português em África.
Uma atenção e uma posição activa e de princípios firmes internacionalistas que não estão desligadas da importante intervenção do dirigente experimentado e prestigiado no plano internacional que era Álvaro Cunhal, bem evidente na sua participação e intervenção no agudo debate ideológico deste período no plano internacional.
As suas análises do sistema capitalista e da evolução mundial, suas tendências e forças motrizes e, mais especificamente quanto à noção de processo revolucionário mundial e ao papel do movimento comunista internacional e que estão presentes em toda a sua obra teórica, tem neste IV Tomo uma importante dimensão e tratamento com a inclusão das suas intervenções em diversas conferências internacionais de partidos comunistas e operários, em Abril de 1967, em 1969 e em Janeiro de 1974.
De facto, foi ampla e diversificada a sua contribuição para o fortalecimento do movimento comunista internacional, de apoio ao movimento de libertação nacional, à luta pela paz e de estímulo ao processo de emancipação dos trabalhadores e dos povos e à luta pelo socialismo.
No plano interno, o que perpassa pelo conjunto dos escritos de Álvaro Cunhal, insertos neste IV volume, e relativos ao período que vai de 1967 a Janeiro de 1974, é um intenso debate ideológico e o esforço do Partido, com Álvaro Cunhal como principal responsável à frente do seu Comité Central para conduzir na direcção certa a batalha pela libertação do nosso povo, a concretização dos grandes objectivos do programa da Revolução Democrática e Nacional que haviam sido decididos no VI Congresso do PCP e que correspondiam aos mais genuínos interesses das classes e camadas populares, e a defesa e afirmação da independência nacional.
Um período de agudização das contradições do regime e no qual se tornava patente a sua incapacidade para as superar. Não se vivia ainda uma situação revolucionária mas, como afirmava então o Partido no seu último Congresso, o fascismo tinha entrado na sua derradeira fase e havia muitos indícios de que as condições para o assalto final ao poder fascista se aproximavam.
Os problemas da guerra colonial e os seus reflexos nas Forças Armadas, o agravamento dos problemas económicos, o crescente isolamento internacional, o desenvolvimento da luta dos trabalhadores e das massas eram, entre outros, traços que levavam também a dissensões no seio da ditadura.
Um período de dificuldades e contradições no seu campo. Neste, das três tendências eram já detectáveis nos princípios dos anos sessenta e referenciadas por Álvaro Cunhal, vai emergir e afirma-se neste período e após a morte política de Salazar em 1968, aquela que defende, perante o agravamento da crise do regime, que a ditadura aprove ligeiras modificações de fachada com o objectivo de o salvar. É esse o grande objectivo do governo de Marcelo Caetano.
Uma alteração na evolução da situação política que vai colocar novos problemas, aos quais é necessário dar resposta, quer no plano prático, quer no plano ideológico, já que acentuaram as tendências para o compromisso com a ditadura da então chamada oposição liberal e de outros sectores da oposição, que em geral expressavam os interesses da média burguesia, num momento em que também permanecem e desenvolvem concepções esquerdistas e aventureiristas que reflectiam a impaciência de sectores da pequena burguesia radical.
Tendências que criavam dificuldades ao estabelecimento da unidade das forças democráticas e, particularmente, as que jogavam o jogo da legalização preferencial, convidavam à inacção e representavam um travão a toda a acção revolucionária.
Foi no quadro de um vivo confronto entre três concepções – as concepções oportunistas e legalistas da burguesia liberal, as da pequena burguesia radical e as concepções da acção revolucionária da classe operária, dos trabalhadores e do seu Partido – que se tinham manifestado e defrontado na Oposição, que surgem essas obras clássicas de excepcional poder argumentativo como “Acção revolucionária, capitulação e aventura” e “O radicalismo pequeno-burguês de fachada socialista” e incluídas neste IV Tomo das Obras Escolhidas e que, de forma desenvolvida, aqui nos trouxe também Francisco Melo.
Hoje, uma leitura atenta destes textos não pode deixar de contribuir para a explicação e elucidação do comportamento de certas forças no processo revolucionário e do papel que desempenharam no processo de recuperação capitalista e monopolista e de ataque às conquistas de Abril.
Álvaro Cunhal identificou quatro divergências fundamentais com os sectores da burguesia liberal, à cabeça das quais estava a definição dos objectivos políticos da Revolução Antifascista. Objectivos que o PCP definia a partir da natureza do Estado fascista. Dessa caracterização chave do fascismo português como governo dos monopólios (associados ao imperialismo) e dos latifundiários e a partir da qual definia igualmente a actual etapa como uma Revolução Democrática e Nacional. Para conquistar e defender as liberdades e direitos fundamentais, promover o desenvolvimento do país e a melhoria das condições vida do povo, era indispensável liquidar simultaneamente o seu poder político e económico. Isso exigia alterar profundamente o sistema económico e social. A natureza social de classe do poder tinha de mudar num sentido anti-monopolista e popular.
Os sectores de direita da Oposição desejavam apenas uma “revolução política”, um regresso a 1910 actualizado, como já o haviam proposto os republicanos com o apoio dos socialistas, no "Programa para a Democratização da República".
Outra divergência de vulto dizia respeito ao caminho para o derrubamento do fascismo e à direcção principal da acção antifascista. O PCP considera imprescindível desenvolver a luta das massas populares, com vista à mobilização para o ataque final à ditadura. As forças da direita da Oposição desprezam, quando não temiam, a força da classe operária e das massas populares e buscavam na desagregação do regime a possibilidade de “uma legalização liberal progressiva”.
Ao contrário do PCP que insistia que "o fim do fascismo não pode resultar da acção daqueles mesmos que o querem salvar", estes sectores davam curso a “ilusões legalistas que renunciavam a objectivos fundamentais" e travavam a luta por manobras de bastidores.
Mas ao mesmo tempo que o PCP fundamentava e argumentava que “A ditadura fascista não cairá por si, terá que ser derrubada”, alertava contra eventuais iniciativas aventureiristas.
Posições que se reflectiam na tendência para queimar etapas, identificando o derrube da ditadura com a conquista do poder pelo proletariado, no afunilamento do sistema de alianças com a exclusão de sectores importantes na grande frente anti-fascista, na efectiva subestimação do papel das massas e do trabalho de organização, para privilegiar os métodos da acção directa, pela incapacidade de avaliação da existência de uma situação revolucionária.
Neste IV Tomo e no conjunto de cartas de Álvaro Cunhal ao Comité Central e de preparação das suas reuniões está bem patente o trabalho dos comunistas portugueses na criação das condições para o surgimento de uma situação revolucionária, visando o levantamento nacional popular e militar para o derrube da ditadura e levar a bom porto as tarefas da concretização da Revolução Democrática e Nacional.
O esforço de organização visando a dinamização da luta da classe operária, dos trabalhadores, das massas populares, como a grande direcção de trabalho ali está.
O esforço de desmascaramento da manobra liberalizante do regime fascista e a denúncia da política dos compromissos, não permitindo que o fascismo recupere da sua grave crise.
Tal como o esforço para estimular a disposição de resistência do movimento democrático de Oposição e da sua unidade numa base antimonopolista e que se irá reflectir nas conclusões do III Congresso da Oposição Democrática em 1973, onde as diversas tendências da oposição encontravam em unidade uma plataforma comum, pelo fim imediato da guerra e pela abolição do poder dos monopólios, suporte do regime.
Será pela iniciativa das massas que o heróico levantamento militar se transformará numa Revolução.
Como disse Álvaro Cunhal “a Revolução trouxe surpresas e originalidades. Na ponta final, o factor militar adquiriu papel decisivo para o derrube da ditadura. Mas nas linhas gerais fundamentais confirmaram-se a via e as perspectivas indicadas pelo PCP”.
A Revolução de Abril, constitui uma extraordinária confirmação das análises e das perspectivas apontadas no Programa da Revolução Democrática e Nacional.
A par da conquista da liberdade e do fim das guerras coloniais com o reconhecimento da independência dos povos sujeitos ao colonialismo português, realizam-se profundas transformações revolucionárias que criaram uma realidade que abria a perspectiva de uma evolução no sentido do socialismo.
Esse será assunto para o próximo tomo.
Contudo, a inversão de tal perspectiva e o avanço do processo da contra revolução e de recuperação capitalista verificada, não pode deixar de merecer uma nota, já que este IV volume incluiu uma outra importante obra de Álvaro Cunhal – “A questão do Estado, questão central de cada revolução”.
É sabido que no processo da revolução portuguesa o poder político foi sempre heterogéneo e contraditório. O Estado nunca foi devidamente depurado e, para avançar, a revolução teve que derrotar sucessivas tentativas contra-revolucionárias conduzidas por forças com fortes posições nos órgãos de poder. Praticamente todas as mais importantes transformações progressistas foram primeiro concretizadas na prática e só posteriormente legitimadas pelo poder. As massas foram capazes de alcançar transformações socioeconómicas profundas, mas não tiveram força suficiente para construir um Estado democrático e essa foi a maior limitação da revolução portuguesa e que o processo da contra-revolução portuguesa viria inteiramente a confirmar.
No ensaio de 1967 esse perigo estava identificado e a advertência de Álvaro Cunhal era muito clara: «A parte do aparelho de Estado fascista que não for destruída no decurso do processo insurreccional deve ser destruída urgentemente, sem perda de tempo, logo após. Se isso não for feito, não só não poderá ser realizada uma política democrática, como a contra-revolução não tardará».
A vida mostrou mais uma vez quanto certeiras eram as suas palavras.
Na origem da grave situação que hoje o país atravessa e da brutal crise que se ampliou nestes últimos anos está uma revolução inacabada. Uma revolução que não conseguiu libertar-se em definitivo do domínio monopolista e da submissão ao estrangeiro que esses interesses impuseram, agora ainda mais agravados com o Pacto de Agressão subscrito por aqueles que conduziram todo o processo de reconstrução monopolista e latifundista. Por isso hoje subsistem os problemas do desenvolvimento do país e a sua crónica dependência, ao mesmo tempo que assumem um crescente dramatismo os problemas sociais. Na verdade a vida está a confirmar que a resposta aos dramáticos problemas com que o povo e país estão confrontados – empobrecimento generalizado, desemprego massivo, emigração crescente, precariedade, destruição das funções sociais do Estado, submissão ao imperialismo, amputação do regime democrático – só pode ser encontrada invertendo o rumo contra-revolucionário, pondo termo a quase quatro décadas de políticas de direita e com um governo patriótico e de esquerda. Um governo capaz de concretizar uma nova política, uma política que tenha como referência o Programa de “Uma Democracia Avançada – os valores de Abril no futuro de Portugal” que o PCP apresentou e propôs ao povo português no seu último congresso. Um programa que, tal como o era o da Revolução Democrática e Nacional, é parte integrante e inseparável da luta pelo socialismo. Um programa que na sua concretização coloca, hoje como ontem, uma exigência incontornável: a necessidade de um grande Partido Comunista!
Um grande Partido que teve em Álvaro Cunhal o principal construtor, lado a lado com milhares de obreiros!