À entrada desta terceira década do século XXI, o desenvolvimento científico e tecnológico disponibiliza-nos um conjunto notável e efervescente de produtos e de tecnologias. De entre estas, adquirem grande visibilidade e importância, desde há vários anos, as tecnologias da informação e comunicação.
Estamos perante um panorama de profundas e rápidas alterações tecnológicas, eventualmente merecedor da designação de revolução científica e técnica, suscetível de modificar profundamente a vida económica e social, com profundas implicações na produção e na distribuição da riqueza, no emprego e na qualidade do emprego, na ação coletiva e na luta dos trabalhadores.
Tendo presentes estas transformações, nesta Mesa Redonda vamos, todavia, falar de algo muito velho e antiquado: a exploração.
Não é novidade: na sociedade capitalista, as tecnologias tornam-se um instrumento na luta de classes. São instrumentalizadas para agravar a exploração e dominar os trabalhadores. Do ponto de vista capitalista, esta é a sua maior justificação social.
Nos últimos anos, o desenvolvimento científico e técnico permitiu o surgimento de um modelo de negócio que tinha tudo para facilitar a vida às pessoas: as plataformas digitais, para aquisição de um amplo conjunto de bens ou serviços. A estas, foi-se associando um conjunto também diverso de realidades laborais e socioprofissionais: desde os trabalhadores que concebem e desenvolvem as plataformas em si (técnicos altamente qualificados, por vezes inseridos na categoria de “empreendedores”) aos trabalhadores cujos serviços são contratados por meio das plataformas, mas executados off-line (serviços de transporte de passageiros, entregas de comida e outros bens, serviços de reparações ou prestação de cuidados), passando por trabalhadores que oferecem serviços profissionais qualificados on-line (designers gráfico, arquitetos, programadores, tradutores ou jornalistas), entre outros.
A pandemia de Covid-19 e os sucessivos confinamentos estão a impulsionar significativamente a utilização destas plataformas digitais.
Aparentemente muito modernas, as plataformas, através das quais se busca e oferece trabalho, frequentemente reproduzem, no século XXI, desapiedadas formas de exploração conhecidas do século XIX.
É o caso das praças de jorna, agora tornadas digitais, nas quais milhares de trabalhadores competem pelo direito a ser explorado durante uns minutos, umas horas ou uns dias. Face às praças de jorna de outrora, as praças de jorna digitais têm a agravante dos trabalhadores contactarem menos entre si, ficando mais desprotegidos. Diminui a resistência dos trabalhadores, pela sua dispersão, a concorrência exacerbada entre eles, a irregularidade de ocupação, os encargos materiais a cargo dos próprios. Generaliza-se o trabalho irregular, a tempo parcial, a prazo, sem horários, sem condições, sem direitos, tantas vezes sem contrato.
O grande capital – fundos soberanos, fundos especulativos, capital de risco e outras expressões do mesmo – apoderou-se das plataformas digitais. Ao fazê-lo, procurou disfarçar a realidade, fazendo crer que a execução dos serviços contratados ou a entrega das mercadorias adquiridas é garantida por trabalhadores por conta própria, “independentes”, “livres”, como gostam de fantasiar alguns seus ideólogos. Prometem e oferecem a mesma liberdade que tinha o proletariado no século XIX.
As plataformas digitais foram-se implementando. Na aparência, simplesmente proporcionando novas facilidades de acesso a serviços e mercadorias. Na realidade, construindo uma nova forma de proletarizar pessoas sem lhes pagar salários; uma nova forma de organizar trabalhadores para a exploração, mantendo-os dispersos, desorganizados, a concorrer uns com os outros.
Foi-se tornando cada vez mais evidente que estes trabalhadores “por conta própria” nada têm de livres, a sua única “liberdade” é a de serem brutalmente explorados. São falsos trabalhadores por conta própria. São trabalhadores por conta de outrem mas sem salário base, sem horário de trabalho, sem direito a férias, sem direitos de parentalidade, sem assistência na doença.
Inevitavelmente, à medida que aumenta o número de trabalhadores assim explorados, pese embora as condições objetivas difíceis que enfrentam, tende a aumentar também a sua organização e luta.
As multinacionais donas das plataformas têm pressa. Instalando-se e desenvolvendo-se à margem da legislação existente, onde a tecnologia ainda supera a regulação, querem implantar-se em definitivo e tornar-se dominantes, para não terem de se sujeitar a uma regulação hostil, às legislações laborais, nem ao surgimento de concorrentes. Querem regular o mercado à sua imagem. A estratégia que usam é designada por crescimento-antes-do-lucro: investimentos iniciais massivos e feitos para assegurar o domínio do mercado. Os lucros vêm depois.
Enfrentando a luta dos trabalhadores e a evidência da exploração, algumas multinacionais começaram a ser entaladas nos tribunais, sofrendo condenações financeiras pesadas e sanções dos próprios Tribunais Supremos (como aconteceu em Itália e em Espanha).
Governos e instituições supranacionais, como a Comissão Europeia ou o Parlamento Europeu, que até aqui tinham sido cúmplices silenciosos de um modelo de negócio implementado à margem da lei, pressionados por algum debate público, começaram a admitir a necessidade de regular os direitos dos trabalhadores das plataformas.
Na realidade, em muitos casos, por detrás das intenções anunciadas esconde-se a intenção de legalizar tais modelos de negócio. Por um lado, dando segurança jurídica às multinacionais, de preferência num espaço geográfico alargado, em toda a União Europeia. Por outro lado, aproveitando para normalizar e legalizar uma nova categoria de trabalhadores flexíveis e precarizados.
É esse o objetivo da Comissão Europeia, com a recente iniciativa para «melhorar as condições de trabalho nas plataformas digitais».
É também esse o objetivo plasmado no projeto de relatório do Parlamento Europeu intitulado «condições de trabalho justas, direitos e proteção social para os trabalhadores das plataformas - novas formas de emprego associadas ao desenvolvimento digital».
Em nome da proteção dos trabalhadores, e perante o facto de alguns Estados-Membros estarem a aplicar a sua legislação para defender os direitos dos trabalhadores, pretende-se impor uma degradação dessa legislação laboral em todos os Estados-Membros. Pretende-se legitimar a tentativa de fuga, por parte das multinacionais, às leis existentes, para pagar menos impostos e para pagar menos pela força de trabalho.
A flexibilização das relações laborais, imposta nos últimos anos, a partir de um papel destacado da União Europeia e das suas instituições, em grande medida, é o que está a facilitar a confusão entre trabalhador por conta de outrem e trabalhador por conta própria. O que é necessário é reverter muitos dos passos dados na legislação geral, e não continuar a legalizar novas formas de flexibilização e exploração.
Haverá trabalhadores que têm razões objetivas para preferir o estatuto de trabalhadores por conta-própria? Haverá alguns, geralmente não pelas melhores razões – trabalhadores empurrados para a acumulação de empregos, trabalhadores em situação ilegal, entre outras situações. Mas as leis não se fazem para as exceções. E estas más razões também se podem e devem resolver. Não devem servir de desculpa para novos problemas.
O regime laboral que estas plataformas utilizam não é inerente às plataformas digitais. Em Portugal, como noutros países, trata-se de uma opção ilegal. No caso do nosso país, essa opção tem contado com a permissividade e mesmo cumplicidade do governo e das autoridades públicas. A legislação considera claramente que a maioria dos trabalhadores das plataformas digitais são trabalhadores por conta de outrem. E proíbe a maioria das práticas laborais abusivas que as plataformas realizam, incluindo as que são realizadas a coberto dos seus algoritmos, como a aplicação de castigos aos trabalhadores. Algoritmos, por enquanto insondáveis, que deveriam ser públicos, auditáveis e inteligíveis, quer para as autoridades fiscalizadoras, quer para os trabalhadores destas plataformas e suas organizações sindicais.
O impacto das plataformas não se limita ao mundo laboral. A sua natureza predadora, a intermediação rapace, tem por efeito o esbulho a uma rede numerosa e crescente de micro e pequenas empresas.
A entrada das multinacionais das plataformas digitais nas cidades – em domínios que vão da planificação da mobilidade urbana à proliferação do arrendamento de curta duração – alimenta processos de gentrificação e conduz a uma reconfiguração das próprias cidades, que se expressa, por exemplo, no ataque ao transporte público, onde a oferta das plataformas surge como substituto natural face à degradação do serviço. Noutros casos, a própria integração do transporte público nestas plataformas, equivale a mais uma modalidade de externalização dos custos, com o público a investir diretamente na renovação infraestrutural e dos meios de mobilidade, e as plataformas a retirarem daí lucro, através da sua gestão. É a visão neoliberal da cidade que avança e se aprofunda. Vale a pena referir, até porque aqui nos encontramos, que Lisboa – exemplo paradigmático da ação das plataformas – tem sido encarada como um laboratório desta estratégia, com a cumplicidade das autoridades locais.
Termino, reiterando a convicção, já aqui manifestada, de que esta Mesa Redonda será um contributo importante para a reflexão e para a ação. Um contributo para a denúncia da realidade das Praças de Jorna Digitais, das jornadas laborais de 12, 14 e 16 horas, da precariedade absoluta, da exclusão de acesso aos direitos mais elementares; para a denúncia de relações laborais que de livres nada têm. Mas será um contributo também para a ação que urge, no sentido de pôr termo a esta realidade; pôr termo à cumplicidade das diferentes entidades públicas e governamentais com os abusos das multinacionais, e exigir a repressão e erradicação destas práticas, velhas de séculos, que são ilegais em Portugal e na maioria dos países europeus.
É este o nosso compromisso.