As plataformas Digitais e o trabalho
Em primeiro quero agradecer o convite e a oportunidade que me é concedida de dar o meu contributo, para a formação da opinião relativamente ao modo como se pode lidar com um tema de enorme importância e, concretamente, de participar numa luta que se apresenta difícil e de longa duração.
Relativamente ao tema da nossa mesa-redonda, o descontrolo existente em matéria de relações de trabalho, no âmbito das “plataformas digitais”, coloca desde logo a questão de saber como chegamos aqui e que que interesses se movem por detrás da paralisia dos meios de fiscalização e de sancionamento das práticas ilícitas que aí existem.
Tenho para mim que a passividade das inspeções de trabalho, prossegue a cumplicidade dos governos (refiro-me aos governos da EU) e concretiza os objetivos de precarização das relações de trabalho, da “moderação” de salários e, em especial, do objetivo de fragilização do direito do trabalho como meio de proteção do trabalhador, tal como o conhecemos.
As “plataformas” pela sua natureza multinacional e capacidade de chegarem a uma generalidade de pessoas ao mesmo tempo, e aí fazerem o recrutamento dos que lhe mais interessam em razão dos objetivos do lucro e da concentração do capital que realizam, são um elemento de respeito, pelo potencial que possuem como armas de destruição do sistema sócio-laboral construído pelos trabalhadores, em resposta à exploração decorrente da revolução industrial.
Com efeito, as empresas multinacionais tudo têm feito para se colocarem numa posição acima dos estados, também em matéria de direito laboral, com exclusividade de regimes, laborais e até judiciários, mais concordantes com o domínio que efetivamente exercem. No mesmo sentido, o falecido TTIP preconizava a criação de regimes de arbitragem, que funcionariam à margem dos sistemas judiciais. O TTIP caiu, mas o regime laboral exclusivista não foi esquecido, nem deitado pela borda fora pelas multinacionais. E as plataformas apresentam-se, aqui, como a arma que faltava para prosseguirem o mesmo combate.
Dadas as ferramentas que utilizam apresentam-se como coisas novas que nos trazem um tipo novo e desconhecido de trabalho, quando o que é novo é a sua capacidade exponencial de explorar a mão de obra em qualquer canto do mundo.
E apresentam-se como organizações de um tipo novo – revolucionário até - sem enquadramento jurídico no sistema empresarial e nas relações de trabalho. E é este pretenso exclusivismo que está na base da justificação da criação de um novo regime de trabalho, porque o atual não é para elas, é para as empresas normais. Mas será assim?
Quanto o enquadramento empresarial, não se veem diferenças que não sejam as que resultam do uso intenso das comunicações à distância (ferramenta) e da acentuação do anonimato do patrão, decorrentes do uso de instrumentos que os afastam dos que trabalham.
E também as diferencia a sua maior capacidade de explorar a mão de obra, em face dos instrumentos (ferramentas) que usam para realizar esse objetivo de enriquecimento. O modo de exploração não muda: continua a haver um patrão que dá ordens e que paga um salário (ainda que não assumido como tal), que se apropria da mais-valia do trabalho e um trabalhador (ainda que possa ser apresentado como prestador de serviços) que obedece, que é contratado e que é despedido (embora não o seja formalmente).
Quanto ao conteúdo da relação prevalece o recurso a métodos do passado, como o trabalho à peça (multitask ), mal remunerado, e sem reconhecimento e afirmação de vínculo de trabalho e sem sujeição às regras do direito do trabalho (horário de trabalho, proteção social, proteção do emprego, direito de organização coletiva sindical e de contratação, inexistência de participação democrática). Ou seja, o que temos é uma tentativa de recuperar os modelos de trabalho próprios do primeiro período da revolução industrial, ainda existentes em países onde os direito sociais e do trabalho não chegaram.
E é tudo isto que é apresentado como novo, quando, na verdade, o trabalho nestas plataformas digitais consiste em recuperar modalidades de trabalho antigas, apenas servindo-se de uma ferramenta digital como intermediária.
É o uso da ferramenta comunicacional que permite à empresa (plataforma) dirigir-se a uma multidão (crowd) cujo âmbito é o mundo! E que lhe permite explorar a mão de obra em qualquer canto do mundo ao mesmo tempo, durante as 24 horas do dia.
Ou, por exemplo, organizar um “call conter” com trabalhadores no mundo inteiro. O que só acentua e agrava o modelo de exploração, de precariedade, de mercantilização da mão de obra e pela submissão e aumento do controlo, tudo com liberdade de contratar e de despedir na hora (despedir aqui significa recusar uma segunda tarefa).
Ou seja, estamos perante um caminho que nos leva para o passado, apresentado como uma inevitabilidade para um futuro risonho. A comunicação, nestas circunstâncias, tem um papel importante, mas será a luta dos povos que irá determinar o futuro das relações de trabalho.
Precisamos de novas leis do trabalho?
A relação de trabalho nestas plataformas não altera a natureza das coisas e isto mesmo tem vindo a ser reconhecido pelos tribunais nacionais e pelo Tribunal de Justiça da União Europeia, nos muitos casos que lhe têm sido levados para apreciação. Todos conhecemos os casos pelo que me dispenso de falar deles em concreto. Mas, o fundamento das decisões judiciais está na constatação de que o trabalho nestas plataformas enquadra-se no regime do contrato de trabalho atual.
E então? Se os tribunais não têm tido dificuldade na qualificação da relação como de trabalho e sujeitas a legislação respetiva, qual é o fundamento desta paralisia dos governos nacionais e da própria EU?
Para responder a esta pergunta podemos procurar perceber a quem interessa o regime exclusivista de relações de trabalho, nas plataformas. E, depois, depois quem reclama esse regime. E encontramos os donos das chamadas de plataformas como os grandes interessados em colar a lei aos seus métodos de exploração, preocupados que estão com os efeitos que decorrem das decisões judiciais que lhe estão a ser desfavoráveis.
E os governos nacionais (e a própria EU), fortemente inclinados para o lado de onde o capital os atrai – mas preocupados em gerir o descontentamento dos que são prejudicados pela sua passividade comprometida – lá vão dizendo que o que é necessário é regulamentar o trabalho nestas plataformas, sem explicarem por que razão não aplicam a legislação do trabalho a estas relações laborais, seguindo a jurisprudência dominante, bem sabendo que não há diferenças em matéria de relações de trabalho. E também nada fazem para fiscalizar e sancionar as práticas ilícitas correntemente usadas nas plataformas.
Os trabalhadores, esses, o que desejam é ver aplicada a legislação do trabalho. É esta a sua luta!
O problema é, pois, de natureza estritamente política. Os governos (em Espanha foi celebrado um acordo com os sindicatos) cuja posição dominante assenta na perspetiva de que estas plataformas são uma oportunidade de “flexibilizar as relações de trabalho e aumentar a competitividade”, devem definir, publicamente a sua posição e assumir compromissos. No nosso caso, o Governo português deve ser claro e comprometer-se com a aplicação das leis do trabalho, na linha das decisões judiciais, e recusar a via dos baixos salários, da precariedade e do aumento dos horários de trabalho como modelo para o nosso país.