Afirma o regulamento relativo aos serviços públicos de transporte ferroviário e rodoviário de passageiros, a legislação que mais diretamente carateriza o sentido da política de transportes públicos da União Europeia e dos seus princípios: a concorrência entre operadores e a abertura de mercados é solução para a prestação de serviços mais atrativos, mais inovadores, com custos mais baixos.
A realidade da aplicação destes princípios em Portugal provou que nem os custos baixaram nem os serviços ficaram inovadores e atrativos:
- Na ferrovia, a receita da União Europeia de segmentação entre o gestor e o operador (que me Portugal representou a distinção entre CP e a antiga REFER), coexistiu e contribuiu para o encerramento de mais de mil quilómetros de via; para a eliminação da capacidade produtiva e de reparação nacional; ou para a desvalorização do trabalho e dos rendimentos. Por outro lado, a experiência de liberalização com a Fertagus mostra que o preço por quilómetro aumenta relativamente à rede operada pela CP.
- Na rodovia, o desmembramento e a privatização total da Rodoviária Nacional resultou na enorme redução da quantidade e da qualidade da oferta, existindo regiões - não necessariamente rurais ou de acesso difícil - que ficaram sem qualquer meio de transporte coletivo.
No processo de degradação, desinvestimento e liberalização dos transportes públicos que ocorre há décadas, uma das mais significativas expressões da responsabilidade da União Europeia é a reduzida importância das medidas de apoio atribuída no contexto geral da política de transportes, chegando mesmo à ausência total de referências nos diversos instrumentos normativos ou estratégicos. No processo em curso de internalização mercantil da digitalização e da descarbonização, por exemplo, mesmo quando diretamente relacionados com as questões da mobilidade, não há menção - ou essa menção é reduzida - aos transportes públicos. É assim na definição do Pacto Ecológico; é assim no Fundo de Transição Justa; ou é assim na recente Comunicação da Comissão sobre a Estratégia da Mobilidade Sustentável e Inteligente.
Não é esquecimento, é uma opção deliberada. Em vez de criar incentivos para alterar o paradigma actual assente no transporte individual, substituindo-o por uma mais ecológica e socialmente justa utilização de transportes públicos, a União Europeia prefere apostar no desenvolvimento de novos clusters em torno da eletrificação ou da propulsão por hidrogénio dos meios de locomoção individuais; apresenta a multimodalidade como instrumento de competição entre modos de transporte; defende o reforço da tributação dos utilizadores dos meios não-descarbonizados, independentemente da falta de alternativas; ou aposta na generalização do direito a poluir por quem tem capacidade para jogar no mercado do carbono.
Vale a pena debruçar-nos um pouco mais nas implicações da Estratégia da Mobilidade Sustentável e Inteligente, que foi apresentada pela Comissão no final de 2020. Relativamente à vertente da sustentabilidade já explanei acima algumas das soluções aí propostas. Mas é na estruturação da vertente inteligente desta nova mobilidade, que inclui os sistemas de mobilidade-como-um-serviço, que poderão estar as consequências estruturais mais significativas, não apenas na operacionalidade dos transportes públicos, mas também na própria arquitetura dos sistemas de governação.
A mobilidade-como-um-serviço entrou, pela mão das multinacionais das plataformas, no contexto da maioria das cidades europeias. O seu processo de afirmação é revelador das suas consequências a prazo. Actuando nas zonas cinzentas das legislações laborais e, paradoxalmente, das regras da concorrência - quase sempre com a complacência dos governos centrais e locais -, estas plataformas infiltram-se nos sistemas de mobilidade, onde geralmente os modos de transporte público estão desgastados, são caros e não têm investimento há décadas. Compensando esse vazio em transportes públicos coletivos com uma parafernália de soluções on-demand e, literalmente, “ao virar da esquina” - que incluem o transporte ligeiro de passageiros ou modos de micromobilidade como bicicletas, trotinetes ou scooters partilhadas -, as plataformas começam a ocupar uma posição dominante na oferta de meios e a ganhar poder na definição dos sistemas de transportes. Paralelamente, as plataformas geram um conjunto de macro-informações sobre trânsito e perfis de mobilidade que usam tanto para aprimorar os seus algoritmos como para “seduzir” as autoridades públicas, que precisam desse nível de informação para efeitos de ordenamento e projeção urbana. A sequência lógica deste processo é centralizar todo o sistema de mobilidade numa aplicação, assegurando que o Estado fica refém da plataforma, acabando por delegar nestas multinacionais a gestão dos territórios. Cumprir-se-á, assim, o sonho dos neoliberais!
A visão aparentemente distópica apresentada já é realidade em diversas cidades. A mobilidade assim entendida passa de ser um direito, ao serviço das populações e do desenvolvimento, para se transformar num negócio absoluto, responsável por exaurir parte crescente dos rendimentos dos trabalhadores, e um factor de aumento de desigualdades.
Por isso a relevância de se discutir a questão do preço dos transportes públicos, nomeadamente a sua gratuitidade. Esta é uma ideia testada por inúmeras cidades e regiões, com diversos modelos de organização e financiamento, sendo que a avaliação desses projectos, ainda que apresentando contradições, tem revelado que a mais imediata consequência da sua introdução é o aumento do número de passageiros - e a consequente redução dos automóveis. Não será uma solução isolada, mas é parte de uma política de valorização dos transportes públicos que entendemos como essencial.
Um sistema de transportes públicos moderno, confortável, eficiente, com acessibilidade universal, com uma multimodalidade interoperável, tendencialmente gratuito, assumindo a propriedade pública de todos os dados gerados por todos os operadores, este sistema é, dizia, a melhor resposta às necessidades de mobilidade dos trabalhadores e das populações, aos processos de coesão territorial e de desenvolvimento da produção nacional, e a mais efectiva contribuição para a redução da poluição, em particular da emissão de gases com efeito de estufa. Um sistema de transportes públicos assim é, igualmente, parte da promoção de uma sociedade mais coletiva e solidária, apresentando-se como resistência ao processo de hegemonização neoliberal que a União Europeia preconiza e da qual é um instrumento fundamental.
É essa defesa dos transportes públicos e de tudo o que eles implicam que tem guiado a ação do PCP, também no Parlamento Europeu. Ação que ficará reforçada com os contributos que esta iniciativa permitiu.