[Resumo]
Na historiografia mainstream e na esfera pública há muito que se tem procurado impor a tese que sustenta que a integração europeia foi um fator central da construção da democracia em Portugal, e que, de forma mais geral, em qualquer contexto nacional e regional, o processo de europeização deve ser assumido como sinónimo de democratização. Esta ilusão histórica, politicamente motivada – para lhe não chamar simplesmente manipulação –, chega até ao ponto de atribuir ao processo de integração europeia a capacidade (e a intenção) de promover a descolonização e ajudar, portanto, à emancipação do mundo colonizado!
Nada de mais descolado da realidade histórica: o arranque do chamado processo de construção europeia, no final dos anos 1940 e na década de 1950, coincide com a fase mais dura da resistência colonialista à descolonização (por exemplo, as guerras da Indochina e da Argélia, a operação anglofrancesa do Suez) protagonizada por vários membros das Comunidades Europeias; quatro dos seis estados fundadores eram potências coloniais. Quando a descolonização acabou por triunfar, as Comunidades Europeias procuraram imediatamente construir esquemas de relação neocolonial com o Sul Global.
No caso português, a integração europeia foi, especialmente nos anos entre 1976 (aprovação da Constituição) e o final dos anos 80 (1986, adesão às CE, 1989, revisão constitucional), encarada como um antídoto contrarrevolucionário. Em nome dela e da necessária (dizia-se) adaptação do modelo de Estado democrático português ao modelo descrito como sendo o “europeu”, se deveria revogar aspetos centrais da agenda económica e social da Constituição - Reforma Agrária e mudança da estrutura da propriedade com uma forte componente de socialização e de democratização do acesso e da gestão da terra; nacionalizações, controlo operário e o modelo de economia social com forte componente pública (a qual, contudo, estava também presente nas grandes economias da Europa capitalista) –, bem como as marcas da Revolução no quadro institucional e no sistema político da democracia portuguesa, isto é, em grande medida aquilo que se designou como a “via portuguesa para o socialismo”, expressão que, contudo, ainda está presente no Programa do I Governo Constitucional (1976-77), liderado por Mário Soares.
No mesmo sentido, a criação do euro e a economia política que ele vinha servir provocou o mais longo, e até agora consolidado, ciclo de desdemocratização política dos países europeus.
Quer à escala portuguesa, quer à dos países europeizados da Europa centro oriental no início deste século, quer até à do conjunto dos países da UE, o aprofundamento da integração europeia significou uma descida muito considerável dos níveis de participação política e eleitoral e, portanto, da representatividade formal dos sistemas políticos (que se imaginam) democráticos.
Em simultâneo, é no ciclo histórico da UEM e do euro que emergiu a fase aguda do assalto da extrema-direita neofascista ao poder que hoje vivemos. Enquanto as forças políticas dominantes (a social-democracia e o universo liberal-conservador) passaram a partilhar praticamente sem fissuras a mesma análise da realidade social e o essencial da economia política do neoliberalismo, é sob a vigência do euro que as extremas-direitas apostaram pela sua autonomização do seio das direitas clássicas para funcionar – exatamente como o fascismo começou por funcionar nos anos 20 e 30 – como força de pressão que condiciona todo/muito do debate político, atraindo as direitas clássicas para a sua agenda e os seus slogans (na imigração, nas “crises” dos refugiados, na estigmatização despudorada das minorias étnicas, na sua securitização, ...) e oferecendo-se aos setores sociais dominantes, quer como centro emissor de narrativas mistificadoras e racistas que se pretendem criadoras de consenso, quer até como braço violento, por vezes de tipo paramilitar, no ataque ao movimento operário e às esquerdas progressistas em geral. O euro foi introduzido em Itália e na Áustria quando ambas eram já dirigidas por governos com a extrema-direita; nas duas décadas da sua vigência, a extrema-direita foi cooptada para dentro de mais de metade dos governos europeus. Desde que a ultradireita nacionalista polaca assumiu o poder pela primeira vez em 2005, a extrema-direita de tipo neofascista deixou de ser um parceiro menor nos governos: passou a ser a componente mais numerosa em algumas das coligações de direita em que participam, como se verifica também hoje no caso italiano, com Giorgia Meloni.
Se a FN francesa e, muito eferamente, a Liga de Salvini em Itália adotaram posições críticas com o euro, e a primeira adotou uma atitude de chauvinismo social (proteção do Estado de Bem Estar sempre e quando dele se excluam os cidadãos e trabalhadores não nacionais), a generalidade das direitas extremas, a começar pelas dos países escandinavos, passando por aquelas que governam na grande maioria dos países da Europa centro oriental (vários dos quais fora da Zona euro) e acabando na Península Ibérica, enfileiram no campo do neoliberalismo, pelo que a UEM como potente motor de esmagamento das políticas sociais e de eliminação de qualquer sombra de soberania económica não lhes coloca engulho especial algum. Mas o agravamento das desigualdades à escala europeia e na de cada uma das nossas sociedades, e um contexto mais geral de avanço de fórmulas securitárias que têm banalizado uma espécie de emergência permanente (a emergência económica, a emergência sanitária à sombra da qual se experimentaram medidas de restrição dos direitos laborais e sindicais, ou a emergência do combate ao terrorismo, isto é, a das aventuras militares do imperialismo americano e do neocolonialismo europeu, ou ainda a emergência da guerra da Ucrânia), tem produzido uma situação sociopolítica altamente favorável à progressão das forças de tipo neofascista, por mais que simulem formas de banal nacionalpopulismo que, em teoria, como julgam tantos intelectuais incautos, não estaria a pôr em causa os sistemas e os direitos democráticos.
O ciclo pós-11 de Setembro 2001, que é exatamente o mesmo ciclo histórico do euro, está a criar um ambiente pós-democrático em que a segurança (isto é, os meios descritos como inevitáveis para a assegurar) prevalece sobre a democracia e a representação (isto é, os direitos e garantias democráticos, o controlo democrático dos parlamentos e dos cidadãos sobre a ação executiva, e a prevalência das decisões da justiça sobre as decisões governamentais e as ações repressivas do Estado). A degradação da democracia social tem levado à inevitável crescente falta de apoio popular aos sistemas políticos democráticos, abrindo um amplo espaço aos movimentos neofascistas e ao seu discurso. A evolução histórica do século XXI começou a parecer-se perigosamente a uma transição autoritária, antes mesmo (ou independentemente) de os movimentos neofascistas e da extrema-direita serem cooptados para o poder. A criação de uma alternativa política e social ao neoliberalismo da UE tem de ser construída com consciência deste quadro.