Intervenção de António Filipe na Assembleia de República, Reunião Plenária

Sobre o Projecto de Lei do PS para a revisão do Regime Jurídico das Ordens Profissionais

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Senhor Presidente,
Senhoras e senhores Deputados,

O projeto de lei que o PS hoje apresenta para a revisão de alguns aspetos do regime jurídico das Ordens Profissionais contém um conjunto de propostas diversas. Algumas merecem a nossa concordância, outras suscitam-nos dúvidas, e outras merecem a nossa total discordância. Em todas estas situações estamos a falar de questões relevantes, pelo que a nossa abordagem neste debate não poderá ficar por uma apreciação genérica.

Vamos então por partes:

Propõe o PS que para a constituição de Ordens Profissionais sejam ouvidas previamente entidades externas às profissões em causa, como as instituições universitárias, científicas ou outras. Podemos aperfeiçoar o elenco das entidades a ouvir, mas nada temos contra essa ideia.

Propõe o PS que as Ordens sejam proibidas “estabelecer restrições à liberdade de acesso e de exercício da profissão, por ato ou regulamento”. Esta é uma questão muito relevante e é aqui que podemos encontrar os pontos mais positivos desta iniciativa.

Na verdade, um dos problemas com que a sociedade portuguesa se debate é o da integração profissional dos jovens quadros com formação superior. O acesso a uma profissão regulada por uma Ordem Profissional após a obtenção de um grau académico habilitante para o seu exercício continua a ser um enorme problema para milhares de jovens, e há que reconhecer que diversas Ordens Profissionais, não só não têm contribuído para ajudar os jovens a superar esse problema como têm vindo a contribuir para obstaculizar o seu acesso à profissão através da imposição de provas eliminatórias ou de diversos obstáculos de natureza administrativa.

Não é socialmente aceitável que num país onde tantos milhares de cidadãos não têm médico de família, vejamos a Ordem dos Médicos a pronunciar-se contra o alargamento da oferta de cursos de Medicina em Universidades Públicas com o argumento de que não precisamos de formar mais médicos.

Assim como não é socialmente aceitável que a Ordem dos Advogados pretenda avaliar os advogados estagiários sobre matérias curriculares das Faculdades de Direito com efeitos eliminatórios no acesso à advocacia.

Assim como não é aceitável que os jovens que integram a tal geração mais qualificada de sempre se vejam obrigados a suplicar a frequência de estágios gratuitos, quando não ficticiamente remunerados, ou a ter de frequentar duplos estágios, para ter acesso   
a uma profissão para a qual a qual possuem as habilitações legalmente exigidas.

Por tudo isto, consideramos adequada a proposta de que só possa ser exigido um estágio profissional quando este não faça parte integrante do curso conferente da necessária habilitação académica. Assim como consideramos adequada a exigência de que haja pelo menos um período de inscrição por ano nos estágios profissionais.
 
Também estamos de acordo que a definição das matérias a lecionar no período formativo e, eventualmente, a avaliar em exame final deva garantir a não sobreposição com matérias ou unidades curriculares que integram o curso conferente da necessária habilitação académica.

Também concordamos que os estágios que impliquem prestação de trabalho devam ser obrigatoriamente remunerados.

Já a questão da definição do júri que proceda à avaliação final do estágio deve ser mais bem discutida, e não concordamos com a possibilidade de substituição do estágio por ensino à distância.

Passando a aspetos que não merecem a nossa objeção de princípio, mas carecem de alguma reflexão e aperfeiçoamento, importa salientar os seguintes:

Primeiro, a obrigatoriedade da existência de um provedor dos destinatários dos serviços. Não nos parece mal a sua existência que, aliás, a lei já prevê. Já a sua obrigatoriedade suscita as nossas reservas, e em todo o caso tem de haver garantias quanto à sua nomeação. Ou seja: não podemos substituir uma nomeação meramente corporativa por uma nomeação que corra riscos de governamentalização.

O mesmo se diga quanto ao órgão de supervisão que é proposto ou quanto à inclusão de personalidades de reconhecido mérito no órgão disciplinar. 

Não temos nenhuma objeção de princípio a que órgãos desta natureza sejam integrados por personalidades de reconhecido mérito exteriores à profissão. Isso acontece, por exemplo, nos Conselhos Superiores da Magistratura e do Ministério Público.

O que importa salvaguardar é que as entidades que integram esses órgãos tenham a sua idoneidade reconhecida pelos próprios profissionais e não sejam impostas a partir do exterior e que nunca estejam em maioria nesses órgãos. Os órgãos de supervisão ou os órgãos com competência disciplinar devem ter garantias de independência, mas devem ser órgãos das Ordens e não órgãos contra as Ordens. 

A proposta concreta de órgão de supervisão que consta do projeto do PS parece-nos desequilibrada quanto à composição e confusa quanto à forma de eleição.

Por outro lado, se nos parece óbvio que não deve haver qualquer confusão possível entre Ordens profissionais e associações sindicais, já nos parece muito duvidosa a proibição de que antigos dirigentes sindicais possam vir a integrar órgão diretivos em Ordens profissionais. É uma questão que deve ser cuidadosamente ponderada.

Por fim, mas porventura o mais importante: o PCP rejeita totalmente a proposta de reconhecimento de sociedades multidisciplinares.

Por esta via, podemos ter uma sociedade multidisciplinar com advogados, arquitetos, engenheiros, médicos, enfermeiros, solicitadores e agentes de execução ou contabilistas, todos eles contratados por um salário à medida e cujo patrão é um grande grupo económico.

Tal caminho, além de agravar a exploração destes profissionais, coloca graves problemas na área da deontologia e sigilo profissional: informações confidenciais, avaliação independente e isenta dos casos, formas de atuação dos profissionais ficam nas mãos dos grupos económicos que os contratam.

Por outro lado, temos os advogados em prática individual ou em pequenas sociedades de advogados, que continuam a sobreviver sem que se resolva nenhum dos seus problemas.

No contexto específico do exercício da Advocacia, como salienta o parecer do Conselho Regional de Lisboa da Ordem dos Advogados, a admissibilidade da constituição de sociedades multidisciplinares determinará, sem qualquer dúvida, a perda da capacidade de controlar o cumprimento dos deveres deontológicos a que todos os advogados estão sujeitos, no exercício da profissão, e a consequente diminuição e, muito possivelmente, cessação da consciência geral da profissão quanto à relevância e primazia desses mesmos deveres.

Os deveres deontológicos impostos aos advogados não foram definidos com o propósito de dificultar o exercício da profissão, mas sim para garantir as imunidades necessárias ao exercício do mandato.

A perda da capacidade de controlo do cumprimento de deveres deontológicos no âmbito de sociedades multidisciplinares, representa um abrir de portas ao abuso e à perda de segurança no acompanhamento jurídico, com os variados e nefastos efeitos que implicará no Estado de direito democrático, na paz social e na manutenção dos pilares de integridade da sociedade.

Tudo visto e ponderado, o PCP vai abster-se na generalidade, no projeto de lei do PS, em benefício do trabalho que venha a ser realizado na especialidade, mas fica desde já muito claro que o PCP opor-se-á firmemente a qualquer texto que venha a ser submetido a esta Assembleia e que consagre a possibilidade de sociedades multidisciplinares.

Disse.

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