Intervenção de

Sobre a Interrupção Voluntária da Gravidez - Intervenção do Deputado Bernardino Soares

Se fosse para qualquer um de nós possível imaginar algo de
mais atroz, violento e irracional do que forçar qualquer mulher
ao aborto clandestino; se fosse possível medir a violentação
que para cada mulher o recurso à interrupção voluntária da
gravidez significa; se conseguíssemos escolher de entre o
intolerável aquilo que mais intolerável é, facilmente
escolheríamos o flagelo que é empurrar milhares de adolescentes
e jovens mulheres para o aborto clandestino.

Dos largos milhares de mulheres que todos os anos se vêem
obrigadas a recorrer à interrupção voluntária da gravidez,
grande parte são jovens, talvez mais de seis mil, muitas na
adolescência, que carregam para a vida os fardos pesados das
consequências físicas e psíquicas de um ou mais abortos
clandestinos.

Sofrem com frequência as complicações várias e lesões
diversas que todos os dias os serviços de saúde acabam por
conhecer, quando a eles recorrem com complicações
pós-abortivas. Por vezes recorrem tarde ou nunca à assistência
médica, ameaçadas pela sanção penal e social. Muitas ficam
marcadas pela infertilidade de que o aborto clandestino é a
primeira causa, comprometendo o seu projecto de vida, de família
e de maternidade futura.

Algumas não chegam a conhecer a idade adulta porque pagam com
a vida o crime de não poderem optar.

Não se trata aqui da construção artificial de cenários
catastrofistas, mas da constatação de dados cuja aproximação
da realidade será sempre por defeito. Só em 1991, na urgência
da Maternidade Magalhães Coutinho, das jovens que deram entrada,
91% revelavam complicações pós-abortivas e destas 72%
referentes a aborto provocado. Em cada 3 mortes maternas que o
aborto causou em média nos últimos anos uma é jovem, sendo
Portugal o único país da União Europeia onde se continua a
morrer por esta causa.

É fundamental reflectir sobre a evolução visível da
sexualidade dos jovens e sobre a resposta da sociedade a esta
alteração.

Vivemos numa sociedade em que há uma presença constante da
oferta de erotização e que o apelo à sexualidade é
permanente. O consequente aumento do desejo sexual dos
adolescentes não é compensado com um acréscimo suficiente da
educação sexual e da informação contraceptiva.

E se clinicamente a idade fértil tende também a baixar, é a
antecipação da vida sexual activa e a apetência crescente dos
jovens pela fruição plena da sua sexualidade que denunciam a
maior autonomia sexual dos jovens, em especial das mulheres, que
hoje se verifica.

Emerge uma vivência sexual tendencialmente livre de
preocupações reprodutivas, traduzindo a rejeição de
mecanismos de poder e de controlo social e institucional da
sexualidade, dos actos e dos pensamentos, das necessidades
satisfeitas e dos desejos insatisfeitos dos jovens.

Mas esta evolução de mentalidade dos jovens não encontra
ainda resposta cabal por parte da sociedade. O necessário
investimento na educação sexual e planeamento familiar é
permanentemente castrado por uma certa moral que teima em indexar
a sexualidade à procriação, talvez receando que a vida sexual
e amorosa plena contribua também para o libertar das
consciências dos jovens e para uma formação mais completa e
equilibrada enquanto indivíduos.

Certamente por isto, mas também por não se cumprir a Lei do
Planeamento Familiar e pela ausência da Educação Sexual nas
escolas, a gravidez é um dos maiores riscos da sexualidade na
adolescência.

A insuficiente disseminação e eficácia do planeamento
familiar agrava- se ainda mais quando pensamos nos jovens. É que
para além das limitações no acesso aos cuidados de planeamento
a que todas as mulheres estão sujeitas, para a jovens soma-se
ainda o calvário de um sistema de saúde demasiado formal, pouco
atractivo, sem privacidade e que com frequência se limita à
mera prescrição médica esquecendo a vertente pedagógica.

É justo criar condições para que o sistema de saúde
garanta o cumprimento da lei e que, respeitando o direito à
objecção de consciência dos profissionais de saúde, isso não
implique o abandono da jovem mulher à sua própria sorte nem
inviabilize a concretização de direitos que são seus.

O acesso aos métodos contraceptivos é limitado por factores
económicos e de uma inadequada rede de distribuição. Ouvimos
relatos de casos frequentes em que a gravidez indesejada surge
porque no Centro de Saúde a mulher não encontrou contracepção
disponível e porque provavelmente não tem dinheiro para a
comprar.

A tudo isto se junta a falta de informação e a ausência de
Educação Sexual digna desse nome. Assim se explicam os dados de
um inquérito da Direcção Geral de Saúde que revelam que em
1993 17,6% dos casais ainda recorriam ao coito interrompido como
método contraceptivo, número que será tanto maior quanto menor
for a idade. É por isso que alguns estudos sobre o comportamento
sexual dos jovens demonstram que é elevado o número de
relações sexuais desprotegidas; que de um terço das primeiras
relações está ausente qualquer método contraceptivo; que um
terço dos jovens já utilizou ou utiliza o coito interrompido
como método contraceptivo.

É também por isso que temos em Portugal uma elevada taxa de
mães adolescentes que, apesar de ter baixado em 1995 para 7,9%,
continua bastante longe dos 2,2% da Holanda, dos 2,7% da França
ou dos 2,9% da Alemanha.

Ainda segundo dados da Direcção Geral de Saúde, em 1994
18,6% dos abortos identificados referiam-se a jovens com menos de
15 anos, tendo esta taxa subido em 1995 para 36,3%.

Só recorrendo a uma grande dose de autismo e hipocrisia, ou
sofrendo de um desconhecimento completo da realidade em que
vivemos, é possível alguém negar que muitos milhares de jovens
recorrem hoje, sem mais alternativas, ao aborto clandestino.

É por isso que consideramos indispensável alterar a actual
lei, defendendo a saúde das mulheres, respeitando a vida e
garantindo o seu direito a uma maternidade desejada e consciente.
É por isso que sabemos que a prevenção da interrupção
voluntária da gravidez se faz através do Planeamento Familiar e
da Educação Sexual e não através da sanção criminal
ineficaz e desnecessária.

O projecto de lei do PCP inclui diversas propostas que
consideramos fundamentais para uma verdadeira protecção das
jovens mulheres e das adolescentes.

Sabemos que a sua aprovação não é suficiente. É preciso
que a lei seja aplicada nos estabelecimentos de saúde, que se
cumpra a Lei do Planeamento Familiar, que sem falsos moralismos
se introduza a Educação Sexual nos currículos escolares. Mas
sabemos também que a actual lei não resolveu os graves
problemas existentes e que se impõe a sua mudança.

O verdadeiro combate ao aborto clandestino não pode esquecer
as suas verdadeiras e principais causas: os problemas
económicos, sociais, emocionais de que tantas mulheres são
vítimas. Não pode esquecer que mais de metade dos desempregados
do nosso país são mulheres; que 70% dos desempregados de longa
duração são mulheres; que dois terços das situações de
trabalho precário são mulheres.

Tal como não pode omitir que nos mais de 100 mil
desempregados jovens, nas estatísticas assustadoras do abandono
escolar, nos milhares de toxicodependentes e excluídos sociais
há um enorme número de jovens mulheres.

E é certo que uma minoria se desloca a Espanha ou a
Inglaterra à procura de melhores condições clínicas ou de
segurança, a esmagadora maioria, isto é, as que pertencem às
classes sociais mais baixas, sujeita-se sem protecção à
violência do negócio do aborto clandestino que redobra a
incalculável violentação que só por si representa para uma
mulher, para qualquer mulher, o recurso à interrupção
voluntária da gravidez.

Por isso se exige e se propõe que a mulher possa recorrer à
IVG até às 12 semanas, sem mais condicionantes ou restrições
do que aquelas que a sociedade já impõe. Por isso é preciso
que a mulher e especialmente a jovem mulher possa viver na
liberdade de optar por uma maternidade consciente e pelo seu
direito à saúde.

Este é o debate que aqui fazemos hoje! É o debate sobre a
vida das mulheres que vivem em bairros de lata; que desesperam à
procura de trabalho e se sujeitam ao compromisso de que não
serão mães nos próximos tempos; das mulheres que sabem que uma
gravidez significa quase sempre perder o emprego; das que têm 4,
5 ou mais filhos e apenas uma cama para os deitar; das que se
vêem confrontadas com a gravidez indesejada e que
clandestinamente violam o seu corpo e a sua consciência.

Estas mulheres não merecem censura, não merecem castigo.
Merecem justiça!

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