Senhor Presidente, Senhores membros do Governo, Senhores Deputados,
Hoje não vamos falar de números. Vamos falar de pessoas. Vamos falar de muitas pessoas que procuram em Portugal o trabalho e os meios de sobrevivência que lhes faltam nos países onde nasceram e que, entre nós, se confrontam com uma lei hostil e se sujeitam a trabalhar e a viver na ilegalidade, sem direitos e sem regalias sociais.
Poderíamos estar a falar de centenas de milhares de portugueses que demandaram pelos quatro cantos do mundo o bem estar que em Portugal não conseguiam obter e que hoje constituem fortes comunidades portuguesas nos países que os acolhem. Estes nossos compatriotas sabem muito bem, por experiências próprias tantas vezes dolorosas, o que é viver e trabalhar longe do seu país, dos seus amigos, e quantas vezes longe das famílias, sabem muito bem o que são as discriminações no trabalho e na sociedade.
Não estamos a falar destes portugueses, mas estamos a falar de pessoas que, precisamente nas mesmas condições, demandam o nosso país em procura de trabalho e que Portugal, em nome dos direitos fundamentais que devem ser reconhecidos a todos os seres humanos e em nome do respeito que deve à sua própria identidade, tem a estrita obrigação de tratar com a mesma dignidade com que exige que sejam tratados os portugueses que vivem e trabalham além-fronteiras.
Mas não é isso que tem acontecido. Com uma lei de imigração que se limita a seguir obedientemente a cartilha de Schengen e que dá corpo a uma política de portas fechadas, completamente alheia à realidade, Portugal está hoje confrontado com o aumento crescente do número de ilegais e com todas as consequências humanas e sociais que daí decorrem.
O PCP sempre defendeu que a dupla condição de Portugal como país de emigração e de imigração deveria justificar uma orientação política de acolhimento e integração dos imigrantes na sociedade portuguesa marcada pelo respeito dos seus direitos cívicos, sociais e culturais, de apoio à sua integração harmoniosa e de valorização do seu contributo para o desenvolvimento do país. E por isso sempre criticou as políticas do actual Governo - e dos anteriores - que fazem um discurso de boas palavras dirigidas às comunidades de imigrantes, mas que actuam de forma repressiva e discriminatória sobre os imigrantes, deixando no entanto incólumes os grandes interesses económicos e empresariais que se alimentam das redes de imigração ilegal e do trabalho clandestino.
A situação dos ilegais em Portugal, a completa inadequação da actual lei de estrangeiros, e a necessidade de alterar a legislação portuguesa sobre estrangeiros e de encontrar soluções para os milhares de cidadãos que vivem e trabalham em Portugal em situação ilegal, tornaram-se realidades tão evidentes, que nem o Governo conseguiu fingir por mais tempo que as ignorava.
A apresentação pelo Governo à Assembleia da República de uma proposta para a revisão da Lei de Estrangeiros é acima de tudo a confissão de um fracasso. Ainda há bem pouco tempo ouvimos nesta Assembleia, da parte de membros do Governo e de Deputados do Partido Socialista, os mais rasgados elogios a esta mesma Lei e os maiores impropérios dirigidos aos Deputados que reivindicavam a sua alteração.
E esta Lei, que o Governo agora admite que não se pode manter como está, não é propriamente do início do século. A sua versão originária ainda não tem dois anos e a redacção que está em vigor não tem sequer um ano.
Acontece no entanto que as soluções adiantadas na proposta de revisão apresentada pelo Governo, também não respondem, com eficácia e com justiça, aos problemas dramáticos da imigração e da inserção dos imigrantes na sociedade portuguesa. O que o Governo nos propõe são no essencial falsas soluções, paliativos e expedientes que, embora constituam um recuo assinalável e possam traduzir alguns progressos face ao quadro actual, são sobretudo uma tentativa de responder aos interesses de algumas empresas e sectores de actividade económica, como a construção civil e obras públicas, garantindo-lhes mão de obra temporária e a baixo custo, descartável quando não fizer falta e a quem não se reconhecem direitos normais de cidadania nem de vida com a respectiva família.
É esse o significado da nova categoria de imigrantes que o Governo se propõe inventar com as chamadas autorizações de permanência, que são temporárias, renováveis anualmente, e limitadas a 5 anos, representando para os seus titulares um estatuto de inferioridade em relação ao que as normais autorizações de residência possibilitam.
Para além disso, é de assinalar que a malha mais diversificada de soluções propostas na nova lei permanece enquadrada por um excessivo e inaceitável poder de decisão administrativo discricionário do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras.
Este regime permitiria sempre ao Governo, mantendo um discurso oficial e genérico de respeito pelos direitos humanos, condicionar a legalização dos imigrantes em função de interesses económicos e dos seus compromissos políticos com a União Europeia, mas sem consideração ou respeito pelos seus direitos de trabalhadores e de seres humanos.
O PCP reafirma que não é esta a política de imigração de que Portugal precisa e que os próprios trabalhadores migrantes justamente reclamam. Combater a imigração ilegal e o trabalho clandestino, fonte de exploração desumana de tantos portugueses e estrangeiros, exige, entre outras medidas, uma política de imigração e uma Lei de Estrangeiros diferente e mais democrática.
Uma Lei que assegure o respeito pelos direitos de todos os trabalhadores, sem discriminações quanto à sua origem nacional e que trate todos os imigrantes como cidadãos de corpo inteiro, que aspiram justamente a uma vida melhor e querem ser respeitados na sua dignidade.
Uma Lei que não crie novas categorias de imigrantes com direitos mais condicionados, mas que aceite corajosamente estabelecer um enquadramento legal permanente que possibilite a regularização dos que, vivendo e trabalhando em Portugal, sofrem todos os dramas da ilegalidade, deixando de facto de alimentar as redes internacionais de abastecimento da imigração ilegal e do trabalho clandestino que a todos, trabalhadores portugueses ou imigrantes, prejudicam.
É em nome destes objectivos que o PCP apresenta neste debate dois projectos de lei, sobre a regularização de cidadãos estrangeiros indocumentados e de revisão global da Lei de estrangeiros, que correspondem aliás a compromissos eleitorais formalmente assumidos.
O primeiro projecto diz respeito à regularização dos cidadãos que permanecem em situação ilegal. A situação destes cidadãos indocumentados constitui uma flagrante violação de direitos fundamentais. Ninguém pode ignorar que as obras públicas do passado recente e do presente, foram - e são - em larga medida construídas com o suor de milhares de imigrantes ilegais. Só pela via da legalização e da integração social será possível pôr fim à exploração infame a que estes trabalhadores estão sujeitos e respeitar os seus direitos mais elementares.
O PCP propõe, por isso, que os cidadãos estrangeiros que se encontrem a residir em Portugal sem a autorização legalmente necessária obtenham a sua legalização desde que disponham de condições económicas mínimas para assegurar a sua subsistência e aos que, independentemente disso, tenham cá residido permanentemente nos dois anos anteriores à apresentação do requerimento.
Para o PCP, a solução para os imigrantes ilegais não pode limitar-se à abertura de um processo de regularização extraordinária, limitado no tempo, que, a prazo, acabe por deixar tudo na mesma, nem a mecanismos excepcionais, do tipo do actual artigo 88º. A vida já demonstrou que o recurso a esses mecanismos não garante a solução necessária para a regularização dos imigrantes ilegais.
Mas para além disso, o PCP considera essencial rever globalmente e Lei de Estrangeiros. Não se trata de consagrar uma política de portas escancaradas. Do que se trata é de, acentuando o combate à redes de imigração ilegal e a todos os que dela beneficiam, adoptar uma legislação de estrangeiros menos restritiva, menos discricionária e mais respeitadora dos direitos dos trabalhadores imigrantes e das suas famílias.
O que o PCP propõe é que sejam revogadas as disposições legais mais fortemente restritivas dos direitos dos estrangeiros, designadamente em matéria de acesso ao trabalho, que seja adoptado um regime mais aberto e menos policial de obtenção de vistos de trabalho, que seja possibilitada a concessão de autorização de residência aos cidadãos estrangeiros que tenham contratos de trabalho em Portugal, que seja reduzido o período de residência indispensável para a obtenção de autorização de residência permanente, que sejam limitados os poderes discricionários do SEF e garantido o efeito útil dos recursos das suas decisões.
Uma especial preocupação das propostas do PCP tem que ver com a situação dos menores. Propõe-se a extensão do direito ao reagrupamento familiar por forma a abranger os irmãos menores a cargo dos requerentes, confere-se uma especial protecção às crianças e aos menores quando desacompanhados, e impede-se a aplicação de penas acessórias de expulsão a arguidos que tenham filhos menores em Portugal.
Senhor Presidente, Senhores Deputados, Senhores membros do Governo,
Este processo legislativo constitui uma oportunidade que não pode ser desperdiçada para melhorar a legislação portuguesa sobre estrangeiros e imigração. Mas para que esse objectivo seja alcançável, esta Assembleia não pode limitar-se a conceder ao Governo uma Autorização Legislativa para criar uma nova categoria de imigrantes com direitos reduzidos. O que se impõe é que a Assembleia da República proceda, ela própria, a um debate na especialidade, no qual sejam consideradas as várias propostas existentes e seja levada em conta a opinião dos próprios cidadãos imigrantes e das suas associações representativas.