Projecto de Resolução N.º 333/XVII/1.ª

Recomenda ao Governo a proibição de “mineração industrial” de criptoativos e a sua utilização pelo sistema financeiro

Exposição de motivos

1. O surgimento das inicialmente chamadas “criptomoedas”, após a crise cíclica do capitalismo desencadeada em 2007/2008, foi anunciado como uma nova forma de autonomizar a economia e a finança da banca mundial e do controlo dos bancos centrais. Após o desastre financeiro provocado pela banca e pelos grupos económicos, iniciou-se a promoção da nova moda, supostamente disruptiva e moderna: a “criptomoeda”.

Quase vinte anos após a disseminação das “criptomoedas”, é cada vez mais evidente que não só não são moedas – mas outro tipo de ativos digitais –, como não representaram a criação de nenhum circuito marginal de circulação ou emissão de moeda democratizada. Pelo contrário, foram montadas operações de especulação a uma escala em tudo igual à da especulação bolsista, mas com riscos muito superiores para a economia mundial.

2. Um “criptoativo” pode assumir várias formas e funções, sendo, no essencial, um conjunto de linhas de código com origem determinada e autenticidade comprovada através de processos de encriptação. Por isso, importa distinguir entre moedas digitais oficiais emitidas com recurso a técnicas de criptografia e as chamadas “criptomoedas” que, em geral, não estão associadas a nenhuma moeda oficial. As “criptomoedas” não associadas a mercadorias ou moeda oficial não têm ligação a nenhuma moeda fiduciária, não representando, portanto, nenhuma dívida emitida por um Estado ou um banco, estando o seu valor exclusivamente relacionado com a ilusão de valor, a especulação e a sensação de escassez.

Assim, para todos os efeitos, pode afirmar-se que as chamadas “criptomoedas” são, no essencial, um ativo sem qualquer base material ou económica, sem valor real, utilizadas artificialmente como reserva de valor, forma de fuga ao fisco, branqueamento de capitais e especulação e que a bolha especulativa que representam se assemelha ao resultado de um esquema de Ponzi em praticamente todos os sentidos: o valor depende sempre da crença coletiva de que alguém pagará mais no futuro; os primeiros (que detém antes o ativo) ganham com o dinheiro dos últimos (os que entram mais tarde no esquema) e não existe qualquer valor real associado, nem nenhum bem produzido.

Apesar disto, não significa que a tecnologia por detrás das criptomoedas e criptoativos seja inútil. A tecnologia em si comporta potenciais usos que não devem ser confundidos com os usos já referidos. A título de exemplo, na emissão de (cripto)moeda digital respaldada por dívida pública ou por mercadorias, ou na criação de produtos informáticos cuja comprovação de autenticidade seja necessária.

3. Os criptoativos representam hoje a crescente financeirização da economia, a criação de novas bolhas especulativas, a “economia de casino” levada a um novo patamar em torno de ativos cujo valor é literalmente inexistente. Ao mesmo tempo, a ideia de que estes criptoativos democratizariam a emissão, a circulação e o controlo da moeda foi substituída pela criação de centros de mineração industriais, com o desperdício de elevada capacidade de computação, matérias-primas, recursos energéticos (para computação), recursos hídricos (para arrefecimento), trabalho humano, entre outros. Só a bitcoin, principal criptoativo em “valor” no total da capitalização de mercado dos criptoativos, para a sua mineração (criação e certificação) sobretudo industrial (feita em grande escala), implica consumos energéticos que se estimam na ordem dos 170TWh e dos 2000 GL de água. A atividade de mineração desse ativo representa igualmente 0,5% do total de emissões de dióxido de carbono e assume-se como um problema ambiental crescente.

Para se poder ter algum termo de comparação, só a bitcoin consome anualmente para a sua mineração energia suficiente para alimentar três anos de consumo de eletricidade em Portugal, um ano na Argentina ou, por exemplo, para alimentar todos os data centres (centros de dados) do mundo. Em termos de consumo de água, a mineração de bitcoin consome três a quatro vezes mais água anualmente do que Portugal inteiro.

Aquilo que era apresentado como um mecanismo autónomo e democratizado de moeda, veio a constituir-se como um grande exemplo de como a tecnologia em si não determina o seu uso, mas são as relações sociais predominantes que determinam o sentido do uso das tecnologias. Hoje os criptoativos são, em muitos casos, utilizados precisamente para dar corpo e dimensão ao conjunto de práticas inseparáveis do capitalismo: especulação, lavagem e branqueamento de capitais, crime organizado, financiamento do terrorismo, exploração do trabalho humano e predação dos recursos naturais.

O “valor” de mercado total dos criptoativos fungíveis ascende, em 2025, a cerca de 4,3 biliões (milhões de milhões) de dólares, com a bitcoin a representar a maior fatia e as moedas digitais criptográficas (stablecoins) a representar uma ínfima percentagem (entre 3 e 4%) do total.

A utilização de criptoativos sem respaldo em qualquer bem ou moeda não pode, financeiramente, representar nada mais do que uma bolha motivada pela ilusão e pela especulação. Poder-se-ia dizer que a regulamentação e regulação de um mercado de criptoativos é desejável, assegurando a constituição de um mercado regulado, à semelhança dos mercados de valores mobiliários, por exemplo. Todavia, enquanto um mercado de capitais transaciona títulos de capital que correspondem a partes de empresas, a fundos imobiliários ou de cobertura, a futuros ou a mercadorias, o mercado de criptoativos transaciona pedaços de um código sem nenhum valor a não ser o da ilusão que o mercado é capaz de gerar a cada momento.

4. A política promovida pela União Europeia e que o Governo pretende transpor para Portugal é a da integração dos usos e transações de criptoativos no sistema financeiro, com a sua suposta regulação e regulamentação. Ora, esse é o caminho que deve ser travado quanto antes. A entrada de uma bolha especulativa com a dimensão da bolha das criptomoedas no sistema financeiro pode implicar a sua contaminação pelos impactos desses ativos não indexados a qualquer valor, com custos para as economias, para os Estados e para os trabalhadores de cada um dos países dos estados-membros. O que é necessário é precisamente o oposto: banir os usos e desencorajar o mercado de criptoativos não respaldados por riqueza ou moeda até à sua extinção, protegendo o pequeno investidor, os recursos naturais, a economia nacional e a capacidade de resposta do sistema financeiro às necessidades dos povos.

A utopia criada em torno das chamadas “criptomoedas” vendeu um mundo em que a moeda adquire um valor intrínseco, independente dos bancos e dos bancos centrais, mas na realidade, os criptoativos fungíveis não apresentam nenhum valor de uso disseminado e generalizado, não são tomados como mercadoria universal, não substituem moeda de banco central. A recente criação de várias stablecoins mostra isso mesmo: que a criptografia pode ser utilizada na criação de moeda digital, mas que a moeda, no mundo como o conhecemos, é dívida e, como tal, tem de ser emitida por uma entidade. É preciso distinguir, como faz esta iniciativa apresentada pelo Grupo Parlamentar do PCP, os criptoativos das chamadas moedas digitais emitidas pela banca e por bancos centrais.

Perante isto, é avisado tomar medidas urgentes para avaliação dos grandes riscos existentes e para a contenção do uso desses ativos, especialmente no que toca à sua circulação em contacto ou com recurso ao sistema financeiro e ao sistema bancário.

Assim, nos termos da alínea b) do artigo 156.º da Constituição e da alínea b) do n.º 1 do artigo 4.º do Regimento, os Deputados do Grupo Parlamentar do PCP propõem que a Assembleia da República adote a seguinte:

Resolução

A Assembleia da República resolve, nos termos do n.º 5 do artigo 166.º da Constituição da República, recomendar ao Governo a:

  1. Impedir o sistema financeiro de negociar, transacionar ou poder tomar como colateral (garantia) para qualquer efeito, criptoativos fungíveis não respaldados por uma moeda oficial ou por uma mercadoria.
  2. Proibir a atividade de mineração industrial (criação e certificação em grande escala) e comercial de criptoativos.
  3. Tomar medidas para sinalização de transações de, ou para, jurisdições estrangeiras que possam corresponder a aquisições, vendas ou trocas comerciais com uso de criptoativos, no âmbito do combate à evasão fiscal, ao branqueamento de capitais e de transferências para off-shores.
  4. Promover, dentro das suas competências, uma política fiscal justa, eliminando todos os benefícios fiscais atribuídos aos criptoativos, taxando os rendimentos decorrentes das mais valias obtidas com a transação ou produção (mineração) de criptomoedas e assegurando o englobamento obrigatório em sede de IRS.
  5. Intervir junto das instituições da União Europeia, e de outras instâncias internacionais, pela adoção de uma política eficaz e dissuasora da promoção e integração dos criptoativos no sistema financeiro mundial.
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