Não sou economista, não sou do PCP, estou em representação de uma organização católica e simultaneamente de outra que tem nos seus princípios a justiça social.
Perante isto poderão alguns interrogar-se do porquê. É simples: vemos, ouvimos e lemos, não podemos ignorar, como escreveu Sophia na sua Cantata da Paz, mais do que atual neste tempo de guerras.
Mas não basta ver, ouvir e ler, é preciso analisar, interpretar, ir às causas profundas da realidade que nos rodeia e fazer-nos ouvir. É preciso que ninguém fique indiferente. Mas também é indispensável que conheça as causas e os mecanismos que os responsáveis usam para poder intervir de forma consequente.
Os números frios das estatísticas dizem-nos, segundo um documento do Instituto Nacional de Estatística publicado em janeiro último, que em 2021 o risco de pobreza em Portugal era de 16,4%, o que correspondia a mais de 2 milhões de pessoas. Pessoas concretas com direito a viveram com dignidade e não números abstratos.
De salientar que o referido documento nos diz que mais de 10% das pessoas empregadas estavam na pobreza.
Se a situação assim apresentada já de si é gravíssima, a realidade vai muito mais além.
Por um lado, os valores são ilusórios, pois tendo o cálculo do rendimento por base a mediana dos rendimentos monetários líquidos, como este diminuiu, houve quem só ficticiamente tenha deixado de estar nessa situação, com a agravante de ter de enfrentar a inflação, ou seja, na prática ficou mais pobre.
Por outro, estamos perante resultados a partir de um inquérito de 2021 e todos os dados que nos chegam indicam que a situação se agravou.
Segundo o Banco Alimentar Contra a Fome, o número de pedidos de apoio em 2023 duplicaram relativamente a 2022, sendo a maioria trabalhadores cujos salários não cobrem as necessidades essenciais.
A situação que acabamos de referir é, no essencial o resultado dos baixos salários, uma das componentes do trabalho de Marx.
Como se não bastasse a situação do desemprego também se agravou no primeiro trimestre deste ano (os números oficiais indicam uma de 7,6%).
As consequências sociais resultantes da pobreza não se refletem apenas na capacidade de adquirir os bens alimentares essenciais, como a informação divulgada tende a fazer crer. Têm uma dimensão muito maior nas condições de vida.
Sobre a habitação, Instituto Nacional de Estatística publicou os resultados do inquérito de 2021, onde se fica a saber que 10,6% da população vivia com insuficiência de espaço, valor que representa um agravamento, pois no ano anterior era 9% e segundo um estudo realizado pelo Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto a longevidade é menor nos grupos que as habitações têm condições deficientes.
Também na saúde a pobreza deixa marcas que não são apenas a de uma vida de privações e muitas vezes a impossibilidade de ter acesso a tratamentos e medicamentos. Também na saúde mental se refletem essas condições de vida. Em Portugal a 3 em cada 10 pessoas, ou seja, 30%, já foram diagnosticadas depressões.
Na educação, como foi recentemente divulgado, cresce o número de alunos que dependem do apoio do Estado.
Os breves indicadores, mas julgamos que demonstrativos, da situação social gerada pela pobreza nos identifica as consequências de uma das componentes do trabalho em apreciação, o salário.
Em muitos casos, no presente ano tiveram aumentos, mas a outra componente, os preços, subiram mais, particularmente nos produtos alimentares.
Segundo números do Instituto Nacional de Estatística divulgados num estudo do economista Eugénio Rosa, o aumento da inflação média anual, que é a média dos últimos 12 meses a contar a partir do mês considerado, comparando com a média de igual período do ano anterior, em abril deste ano a inflação total foi de 8,6% e a dos produtos alimentares e bebidas não alcoólicas de 17,2%.
Mas a situação continua a agravar-se, pois IVA foi retirado de alguns produtos, mas como foi previsto, há situações em que já ultrapassaram os valores de prateleira que tinham antes daquela medida.
Outra das áreas em que as despesas das famílias pobres têm grande impacto é na habitação.
Relativamente a estas ficamos a saber, também pelo Instituto Nacional de Estatística que em 2021 a carga mediana das despesas de habitação era de 10,5% do rendimento das famílias.
Porém, este peso não foi igual para todos, pois para os que se encontravam na zona da pobreza foi de 22,9%, isto é, mais do dobro, tendo sofrido um agravamento de 2,3%. relativamente a 2020.
Mais uma vez sublinhamos que estamos perante números que espelham uma realidade que se agravou, pois, o posterior aumento dos preços da eletricidade e do gás contribuíram para agravar significativamente a situação.
Quando os rendimentos crescem abaixo da inflação, como acontece, as condições de vida agravam-se, particularmente para os que já se encontram em dificuldades económicas.
Falamos dos salários e dos preços, falta-nos abordar os lucros.
Perante a situação que descrevemos, não podemos deixar de sermos tomados por uma reação que não conseguimos definir quando lemos nos jornais e ouvimos nas televisões declarações e comentários de regozijo com aquilo a que chamam êxitos do desempenho económico e das espectativas muito positivas no curto prazo.
O que verificamos é que a pobreza aumenta e a evidência dos factos mostra que pelo caminho apontado irá agravar-se.
É realmente verdade que tudo isto acontece quando a economia não deixou de crescer. O FMI até prevê que cresça 2,6% este ano.
Cabe então perguntar como se justifica esta aparente contradição.
Se a economia cresce a riqueza global também, a razão está na forma como se distribui, ou como diz o documento de Marx, no trabalho não pago.
Vejamos mais alguns indicadores.
Embora em 2020 os trabalhadores por conta de outrem representassem 85,6% da população empregada no nosso país, e os “empregadores” apenas 3,2% mesmo assim uma parcela significativa da riqueza criada reverte para estes.
Mais uma vez segundo o Instituto Nacional de Estatística, apenas 37,9% da riqueza criada naquele ano (PIB) reverteu para os trabalhadores sob a forma de “Ordenados e salários”, enquanto 39,1% reverteu a favor do Capital, sob a forma de Excedente Bruto de Exploração.
Como os dois componentes anteriores, salário e preços se agravaram para quem trabalha, o terceiro terá melhorado para os beneficiários.
Aqui bastará ler alguns jornais.
Bancos somam mil milhões com Caixa e BCP quase a duplicar lucros. Subida da taxa de juros continua a puxar pelo setor, cujos ganhos acumulados até março disparam para 995 milhões de euros. Montepio conseguiu triplicar resultados, mas foi o banco público o que mais se destacou com perto de 100 milhões de euros arrecadados por mês, praticamente o dobro do que conseguira em março de 2022. Millennium foi o terceiro que mais cresceu
Subida da taxa de juros ajuda Caixa a duplicar lucros.
Taxa de juro. Famílias portuguesas entre as mais afetadas.
Maioria do emprego criado é com contratos a prazo.
Já há quase 400 mil desempregados. Mais 23% do que há um ano.
Emprego de licenciados com destruição recorde. Maior quebra ocorre entre mulheres licenciadas.
Contrastando com o que acabou de ser citado, temos:
A venda de carros de luxo aumentou durante a crise. O segmento alto aumentou 22%.
A realidade mostra que, em termos económicos, a vida de todos nós se rege pelas três componentes analisadas, salário, preço e lucro e da forma como Marx demonstrou.
Se alguém por preconceito estranha que eu esteja aqui sendo dirigente de uma organização católica, termino citando o Papa Francisco na sua CARTA ENCÍCLICA FRATELLI TUTTI.
“Sonhemos como uma única humanidade, como caminhantes da mesma carne humana, como filhos desta mesma terra que nos alberga a todos, cada qual com a riqueza da sua fé ou das suas convicções, cada qual com a própria voz, mas todos irmãos”.