A inflação tem estado em evidência no debate político. As elevadas taxas de inflação registadas a nível nacional, mas que se verificam também no centro do sistema capitalista mundial, atingem o poder de compra dos trabalhadores e pensionistas de forma contundente, nomeadamente quando o aumento de preços visa bens essenciais, como os da alimentação.
De acordo com o INE, em abril de 2023, a taxa de inflação, medida pela variação homologa índice de preços ao consumidor, atingia os 5,7%, com os produtos alimentares não transformados a registarem uma aceleração para 14,2%. Se recuássemos a abril 2020, estaríamos em deflação. Os preços dos alimentos e da energia, ao longo dos últimos três anos tem registado evoluções diferenciadas.
A variação dos preços das mercadorias e dos serviços pode-se analisar de muitas maneiras, basta seguir os comentários mediáticos, nomeadamente dos responsáveis pelas principais organizações económicas internacionais.
O próprio Paul Krugman, na sua coluna de opinião no The New York Times, veio mesmo admitir que estava errado na sua análise do atual surto inflacionista nos Estados Unidos 1, levantando mais hipóteses que respostas, mesmo das particularidades da situação da economia dos Estados Unidos.
Mesmo entre economistas marxistas existem caminhos diferentes para analisar o fenómeno da inflação, desde as lógicas relacionadas com a procura e o papel do capital monopolista até às que envolvem o capital fictício ou a correlação da evolução das taxas de lucro e das taxas de crescimento da acumulação capitalista.
No atual surto inflacionista, o argumento mais utilizado é o da disrupção das cadeias de abastecimento internacional, na sequência da pandemia do COVID-19, acrescidos depois dos impactos sobre os preços dos bens alimentares e energéticos decorrentes também do conflito na Ucrânia. Contudo, se formos analisar o comportamento dos preços antes do COVID e da guerra, sectorialmente já podíamos encontrar as pressões inflacionistas.
É de questionar se estamos a analisar verdadeiramente a(s) causa(s) ou meramente os sintomas deste fenómeno.
A variação dos preços das mercadorias decorre, antes de mais, do valor socialmente necessário que incorporam. Mas decorre também da concorrência intercapitalista a nível nacional e internacional, da divisão social do trabalho e das relações de interdependência dela decorrentes.
A procura de determinadas mercadorias, a estrutura de custos de produção de cada um dos capitalistas, disrupções oriundas de eventos extraordinários, como catástrofes naturais e o próprio progresso técnico, são tudo componentes que interferem no valor de troca e na formação do preço.
Por outro lado, a estrutura do capital monopolista, decorrente da concentração e centralização do capital, aumenta a liberdade do capitalista nestas condições de fixar o preço em prol da maximização das suas condições de rentabilidade e apropriar-se da mais-valia da força de trabalho comandada por outros capitalistas. Capital monopolista que tem a capacidade, não só de manipular os preços, como pela sua natureza transnacional e dimensão incorporar os próprios mercados na sua estrutura.
É de sublinhar que o conceito de inflação é mais abrangente que uma mera variação positiva ou negativa dos preços de algumas mercadorias ou serviços, num determinado período.
De acordo com o Banco de Portugal, a inflação “consiste numa subida generalizada e sustentada dos preços dos bens e serviços consumidos pelas famílias”, que gera uma depreciação monetária, uma redução do valor da moeda e do seu poder aquisitivo.
No Capital, no capítulo relacionado com “o dinheiro ou a circulação de mercadorias” 2, Marx considerava o dinheiro como qualquer outra mercadoria e por isso o seu valor era determinado pela quantidade de trabalho necessário para o produzir. A forma-preço incluiria assim a alienabilidade das mercadorias contra dinheiro e a necessidade dessa alienação, para a realização da mais-valia e garantir a continuidade do processo de circulação de capital.
Neste contexto, Marx afirmava que “os preços das mercadorias apenas podem subir generalizadamente mantendo o valor do dinheiro igual, se os valores das mercadorias subirem; mantendo-se iguais os valores das mercadorias, se o valor do dinheiro descer”.
Sendo certo, que o fenómeno inflacionista no sistema capitalista mundial, ganhou visibilidade no século XX, como é o exemplo da hiperinflação registada no período entre as duas guerras mundiais, ganhou particular relevância na segunda metade do século passado.
Nomeadamente, após um dos episódios de crise do sistema capitalista mundial, o denominado primeiro choque petrolífero, com a redução progressiva da rentabilidade do capital, em paralelo com as fortes taxas de crescimento da acumulação de capital, registada no período do pós segunda-guerra mundial.
A pressão inflacionista daí gerada, acentuada pela inconvertibilidade do dólar e pelo aumento do preço do petróleo, levou não só uma quebra do produto no centro do sistema capitalista mundial, como ao aumento da inflação e do desemprego, uma conjugação que ficou designada como estagflação.
Este cenário, que se veio a repetir em 1980 e 1981, criou fortes condicionalismos à luta dos trabalhadores.
Na resposta a crise, as principais organizações internacionais do capitalismo, encetaram uma alteração da correlação de forças entre capital e trabalho, com um forte ataque aos direitos e rendimentos dos trabalhadores, às suas estruturas representativas, sob a pressão do desemprego e da perda de poder de compra. Este foi o período da Thatcher e do Reagan.
Neste período, voltou com mais força, o argumento da espiral inflacionista provocada pelo aumento dos salários.
Nas décadas de 80 e 90, registaram-se reduções significativas dos custos unitários do trabalho reais nos principais países do centro do sistema capitalista mundial, o denominado G7.
Reduções que se voltaram a confirmar nas duas primeiras décadas do século XXI nos Estados Unidos e no Japão (Gráfico 1).
Nos restantes países do G7, os aumentos registados ficaram bastante aquém das perdas registadas do passado.
O caso de Portugal é paradigmático, registando uma variação média anual negativa entre 1981 e 2020, ou seja, uma redução acumulada dos custos unitários do trabalho reais de cerca de 18%.
Estas reduções significam que se registaram importantes transferências dos ganhos de produtividade do trabalho para o capital, um processo de desvalorização dos salários indicativo do aumento das taxas de exploração.
Relativamente à evolução do desemprego, medida em número de desempregados, a sua variação média nos anos 80 e 90 do século passado apresenta resultados dispares, o que desde logo não permite concluir existir uma correlação entre a variação dos custos unitários do trabalho e do desemprego.
Ao contrário do que é muitas vezes é usado como “arma de arremesso” pelo capital contra o trabalho, como argumento para não aumentar os níveis salariais (Gráfico 2).
Os casos de França, Itália, Japão e Canadá são a este nível paradigmáticos, onde apesar das reduções significativas dos custos unitários de trabalho nos anos 80 e 90 do século passado, o número de desempregados aumentou.
A mesma situação registou-se nos Estados Unidos e em Portugal nas duas primeiras décadas do século XXI. No caso português, nesse período, o desemprego aumentou em média 3% ao ano, enquanto os custos unitários apresentaram uma redução de -0,3%.
Importa referenciar que nas principais potências do sistema capitalista mundial, registou-se um processo progressivo de desaceleração das taxas de crescimento da inflação, ou seja, um processo de desinflação continuado. No caso do Japão, um processo de deflação nas duas primeiras décadas do século XXI (Gráfico 3).
Em paralelo, manifestou-se uma tendência para a estagnação, com o abrandamento das taxas de acumulação nas principais potências capitalistas mundiais, com a desaceleração progressiva das taxas médias de crescimento produto (PIB), nas últimas seis décadas (Gráfico 4).
Importa sublinhar, que apesar da tendência do produto e da inflação serem similares, as taxas de crescimento médio da inflação foram mesmo assim superiores às do produto.
Estes são apenas algumas facetas da crise estrutural que o sistema capitalista mundial atravessa, que soma diversos episódios de crise, evidenciado a natureza intrínseca e profunda da sua crise de rentabilidade.
A desregulação financeira, a abertura a lógicas de rentabilização privada dos mercados públicos e a liberalização do comércio internacional, foram respostas (clássicas) à crise, de aproveitamento dos mercados existentes e expansão geográfica a novos mercados.
O crédito tornou-se o principal “balão de oxigénio” do sistema, em paralelo com a crescente financeirização do sistema capitalista mundial, para níveis nunca registados, mesmo tendo em conta o início de século XX, com uma progressiva subordinação do trabalho ao capital financeiro e um afastamento acelerado do capital em circulação, de natureza fictícia, à base material da sua sustentação.
A sustentação dos níveis de consumo por via do crédito, num contexto de perda do poder aquisitivo dos salários, a exploração do trabalho por via dos juros e a transformação do crédito hipotecário como reserva do sistema, num contexto permanente de surtos inflacionistas do mercado imobiliário, são apenas alguns dos aspetos da financeirização do sistema capitalista mundial.
Esta sobreacumulação de capital sobre todas as formas, tem vindo a ser alimentada por injeções de liquidez por via de políticas monetárias ditas “expansionistas”.
Mas também, apesar dos tão propalados objetivos de consolidação orçamental, pela manutenção de défices orçamentais naquilo que interessava ao capital monopolista, dos benefícios fiscais até aos bail-out, passando pela “privatização” dos mercados e serviços públicos, com os impostos, mais uma vez a recaírem, sobretudo, sobre o trabalho.
O caso do Japão é disto paradigmático, onde apesar da injeção massiva de liquidez, nomeadamente por via monetária, apresenta uma situação de deflação há mais de 20 anos (Gráfico 5) 3, apenas interrompida pelo atual surto inflacionista.
No final dos anos 80 do século passado, a cartilha de resposta à crise das principais organizações financeiras do sistema capitalista, como o Fundo Monetário Internacional, foi condensada naquilo que veio a ser apelidado por Consenso de Washington.
Entre os seus diversos elementos, podemos encontrar a estabilidade de preços, que veio a tornar-se o objetivo principal da política monetária dos bancos centrais, como o Banco Central Europeu.
Aliás, este é o único objetivo da política monetária europeia e do Euro. De acordo com os seus executores, a estabilidade de preços traduzir-se-ia numa taxa de inflação em torno dos 2%, de forma a mantê-la estável e expectável, enquanto se garante uma margem para combater um possível cenário de deflação.
Estes propósitos escondem, contudo, a verdadeira razão, garantir de uma forma incisiva a moderação do crescimento dos salários. De forma a garantir que a produtividade do trabalho cresça a um ritmo superior aos dos salários.
O que significa a transferência dos ganhos de produtividade do trabalho para o capital, de forma a restaurar as condições de rentabilidade do capital.
Aliás, propósito que tem vindo a ser conseguido.
Em termos acumulados, os lucros brutos reais, corrigidos dos rendimentos dos trabalhadores por conta própria, aumentaram entre 2001 e 2022, cerca de 41% na União Europeia face aos 22,6% da compensação salarial real global, incluindo os encargos de segurança social. (Gráfico 6).
Tendência similar tiveram também as restantes potências capitalistas da tríade. Em Portugal, a diferença é mais notória, com os lucros acrescerem 31,1% e os salários apenas 7,1%.
Se tivermos em conta o mesmo período, a média de variação anual dos lucros líquidos, verificamos que o ritmo de crescimento foi bastante superior à dos salários reais por pessoa empregada. No caso de Portugal, o ritmo foi 33 vezes superior (Gráfico 7).
Mas mais relevante, é que a média da taxa de variação anual dos custos unitários do trabalho, neste período de mais de duas décadas, foi negativa, com exceção da Alemanha em que a evolução ficou próxima de zero.
Este facto revela que neste período os ganhos de produtividade do trabalho foram transferidos para o capital, indicador de um aumento da taxa de exploração do trabalho.
A inflação e a sua instrumentalização, com os objetivos fixados de política monetária, são também um meio de distribuição do rendimento do trabalho para o capital, uma forma de garantir a desvalorização dos salários e aumentar o volume de lucros realizados por via da apropriação da mais valia gerada no processo de acumulação de capital.
Aliás, como a fixação monopolista dos preços é um meio de distribuição do rendimento entre capitalistas.
Nesse sentido, a luta pelo aumento do nível geral dos salários é fundamental para garantir a manutenção das condições de vida dos trabalhadores e seu poder de compra.
Essa luta e exigência decorre do facto, como afirma Marx, que a tendência geral da produção capitalista é para a desvalorização dos salários, “afundar o nível médio dos salários” 4.
Um aumento dos níveis salariais resultará numa descida da taxa de lucro, mas não afetará significativamente os preços.
Para mais num contexto em que a produção capitalista não é um valor fixo, depende da evolução da produtividade e do progresso técnico, para além das dinâmicas e interdependência do processo de acumulação de capital.
As dinâmicas impostas pelo sistema, são reveladoras de uma ligação direta da inflação com as tendências do processo de acumulação capitalista, nomeadamente a tendência para baixa das taxas de lucro.
Um sistema que atingiu um tal desenvolvimento das forças produtivas, que emana a contradição fundamental entre o grau de socialização da produção, e a apropriação privada da mesma.
Mas a questão central é perceber a relação intrínseca entre o valor da força de trabalho, o mínimo de subsistência necessário à reprodução da força de trabalho, para um determinado grau de desenvolvimento das forças produtivas e o valor de uso da mercadoria força de trabalho, da mais valia gerada pelo trabalho não pago, fonte da exploração e do lucro capitalista.
Perceber o cerne da exploração e origem do lucro é um dos contributos mais importantes de Marx e um dos elementos centrais na compreensão das dinâmicas do sistema de produção capitalista e do sistema de trabalho assalariado na sua gênese, cuja abolição deve ser o foco da luta organizada dos trabalhadores.
Notas
(1) Krugman, Paul (2022), “I Was Wrong About Inflation”, The New York Times, 21/7/2022.↲
(2) Marx, Karl, O Capital, Livro Primeiro Tomo 1, Edições Avante, pág. 113-170↲
(3) Neste caso, a série estatística da AMECO (a base de dados macroeconómica da Comissão Europeia) relativa aos agregados monetários M2/M3, que representam a moeda em sentido lato em circulação, só está disponível até ao ano 2017.↲
(4) Marx, Karl, Salário, Preço e Lucro, Edições Avante, pág. 86↲