Intervenção

Processo de Construção da União Europeia - Intervenção de Honório Novo na AR

Primeira alteração à Lei n.º 20/94, de 15 de Junho (Altera a Lei de Acompanhamento e Apreciação pela Assembleia da República da Participação de Portugal no Processo de Construção da União Europeia)


Sr. Presidente e Srs. Deputados:

Apesar de ter sido aprovada por unanimidade em 1994, a actual lei de acompanhamento e apreciação pela Assembleia da República da participação de Portugal no processo de construção da União Europeia não conseguiu impedir que continuasse a verificar-se um inexorável afastamento do Parlamento relativamente ao exercício pleno das suas competências no processo comunitário.

É verdade, e é útil e justo reconhecer hoje, que, no que respeita ao acompanhamento e às possibilidades de apreciar — ainda que quase sistematicamente a posteriori — os actos, orientações e decisões do Governo português nas instituições comunitárias, a Lei n.º 20/94 dispunha de mecanismos capazes de promover o exercício de tais atribuições.

Só que cedo se constatou que no que se refere à capacidade de proceder a uma efectiva e atempada fiscalização da acção do Governo em matéria comunitária, designadamente quanto à discussão prévia das posições a adoptar ou do controlo efectivo das opções assumidas, as possibilidades da lei eram, e continuam a ser, bem limitadas.

Na verdade, pode mesmo concluir-se que, sendo a representação nacional nos Conselhos Europeus um monopólio governamental e concentrando-se aqui muitas decisões que em termos nacionais são competências do poder legislativo, a Assembleia da República tem sido paulatinamente esbulhada do exercício pleno de competências que lhe são próprias e é, para usar uma expressão já largamente consagrada, uma das principais «vítimas» do processo de integração.

Esta é uma realidade que configura um duplo défice democrático. À excepção do Parlamento Europeu, os órgãos da União Europeia não possuem legitimidade democrática directa e, simultaneamente, a Assembleia da República e outros, embora poucos, parlamentos nacionais ficam prejudicados no exercício dos seus poderes constitucionais em benefício dos governos por força dos mecanismos de funcionamento da União.

A Lei n.º 20/94 não foi capaz de contrariar esta tendência e este défice. Melhor: a Lei n.º 20/94 não dispunha de elementos capazes de contrariar e impedir a desvalorização permanente da Assembleia no processo de construção da União Europeia.

Bem cedo o PCP o percebeu e, por isso, desde sempre defendeu alterações legislativas ou tomou mesmo iniciativas para o fazer.

O projecto do PCP que apresentamos hoje para este debate — e a que se sucederam, respectivamente, quatro outros projectos, do CDS-PP, do PSD, do PS e do BE — mantém os princípios fundamentais que julgamos poderem permitir que a Assembleia da República reassuma um papel de maior protagonismo no processo comunitário.

É verdade que também apresentamos propostas para melhorar, aumentando e diversificando, os mecanismos de acompanhamento e de apreciação do processo de integração.

É verdade que também criamos novas obrigações de informação — e de informação em tempo útil — por parte do Governo, numa extensa lista que vai desde os programas legislativos anuais ao relatório anual sobre a aplicação do princípio de subsidiariedade ou ao relatório do Tribunal de Contas Europeu que passará também a ser objecto de parecer nesta Assembleia da República.

É verdade que também propomos a obrigatoriedade de realizar mais reuniões com membros do Governo sobre questões europeias, designadamente aqui, em Plenário, no início e no final de cada presidência da União Europeia, ou que criamos a obrigação de promover audições em comissão parlamentar com representantes das instituições comunitárias.

Mas, para além destas propostas de alteração — que, julgamos, podem melhorar o acompanhamento e a apreciação —, os elementos centrais do nosso projecto (e que, aliás, se têm mantido nas iniciativas legislativas do PCP, sempre ao longo dos anos), têm a ver com a posição a adoptar em todas as matérias de competência reservada da Assembleia da República.

Não é possível, Sr.as e Srs. Deputados, continuar a aceitar que a Assembleia da República se demita de tomar posição prévia sobre matérias como direitos, liberdades e garantias, como as bases do sistema de protecção da natureza e do equilíbrio ecológico ou, ainda, como as bases da política agrícola, sendo que todas estas matérias, como muitas outras, constituem reserva de competência legislativa da Assembleia da República.

Como também o são — e agora objecto de reserva absoluta desta Casa — questões
relativas à defesa nacional, ou aos direitos de Portugal aos fundos marinhos, ou ainda de definição da zonas económicas exclusivas.

Em todas as matérias, como esta, pendentes de decisão em órgãos da União Europeia que incidam na esfera da competência legislativa reservada da Assembleia da República, o Governo passará a ficar obrigado a prestar toda a informação em tempo útil, por forma a permitir que a Assembleia da República emita um parecer prévio que irá condicionar as posições de Portugal no processo de decisão comunitário.

Esta será uma alteração fundamental para permitir à Assembleia da República recuperar ou, melhor, reapossar competências e proceder conforme, aliás, determina, desde a revisão constitucional de 1997, a alínea n) do artigo 161.º da Constituição da República.

A aprovação, em Plenário da Assembleia da República, deste parecer prévio condicionador das decisões nacionais no processo comunitário — em matéria, sublinhe-se e repita-se, de competência legislativa reservada da Assembleia — é, como disse, uma orientação que o PCP sempre defendeu e que, no leque de soluções que são contempladas nos restantes projectos dos diferentes partidos hoje em debate, não está prevista desta forma em qualquer deles. Nalguns casos, como nos projectos do PSD e do CDS-PP, é bem evidente uma aproximação a esta posição, quando no passado mais recente, designadamente na Legislatura anterior, tinham de todo afastado (uns por acção, outros por omissão) esta possibilidade.

No caso do projecto de lei do PS também existe agora um parecer. Só que não fica bem claro — e esperamos que este debate permita esclarecer — se ele será obrigatoriamente emitido antes das decisões comunitárias e que consequências é que produz nessas mesmas decisões.

Sr. Presidente,
Srs. Deputados:

Na recomendação 6/B/2005, o Provedor de Justiça assinalou também que a Assembleia da República deveria, em cumprimento da alínea p) do artigo 164.º da Constituição, legislar sobre o regime de designação dos membros de órgãos da União Europeia, com excepção da Comissão Europeia, faculdade que, aliás, lhe está reservada de modo absoluto.

É o que agora o PCP também propõe fazer no projecto de lei que apresenta para alteração da Lei n.º 20/94.

Admitimos que esta matéria seja passível de debate, mormente em especialidade. No entanto, consideramos adequado impor ao Governo a informação prévia das personalidades a nomear para as instituições, órgãos, agências e todos os outros organismos comunitários, e dos respectivos currículos, cabendo à comissão competente nos assuntos europeus a responsabilidade de tomar todas as iniciativas tendentes à emissão de um parecer prévio às respectivas nomeações, ainda que o PCP admita como possível o seu carácter não vinculativo nesta matéria.

Sr. Presidente,
Srs. Deputados:

Com este projecto de lei o PCP visa combater o défice democrático existente no processo de construção europeia.

Queremos motivar a participação dos cidadãos e aumentar as possibilidades de se conhecerem realmente, de forma atempada, os actos legislativos comunitários, cuja incidência quotidiana é crescente.

Uma das vias para motivar esta participação é garantir uma intervenção parlamentar oportuna, atempada, politicamente plural e relevante nos processos de decisão comunitária, em especial naqueles em que estejam em causa competências próprias reservadas da Assembleia.

Quanto a nós, não há alternativa possível: só com uma intervenção politicamente eficaz, capaz de influenciar e condicionar as decisões comunitárias, a Assembleia da República poderá contribuir para fomentar o debate sobre questões europeias e combater o «divórcio» crescente entre a burocracia comunitária e a generalidade dos cidadãos!

(…)

Sr. Presidente,
Sr. Deputado Vitalino Canas,

Ouvi com interesse a sua exposição e gostava de colocar-lhe uma questão. Quanto a mim, é pouco definido e concreto o artigo 2.º do vosso projecto de lei, no que diz respeito à emissão do parecer relativamente a matérias de competência legislativa reservada da Assembleia da República.

Não é nada claro que esse parecer tenha de ser obrigatório e obrigatoriamente prévio, além de que nada se diz sobre as consequências da emissão desse parecer.

Nestas circunstâncias, vou recordar-lhe, Sr. Deputado Vitalino Canas, uma posição assumida pelo Sr. Deputado Alberto Costa, em debate aqui realizado sobre a mesma matéria, no dia 1 de Julho de 2004.

Dizia o Sr. Deputado Alberto Costa: «(…) os governos devem observar as posições que forem emitidas na Assembleia da República sobre matérias da sua competência reservada. Devem votar em conformidade nos conselhos e não devem alterar a sua posição sem que os representantes portugueses venham aqui à Assembleia da República explicar,…» — e aqui o Sr. Deputado António José Seguro dizia «Muito bem!» — «… como se faz noutros parlamentos, as razões pelas quais poderá não ser sustentável ou defensável a posição aqui aprovada.»

E continuava o Sr. Deputado Alberto Costa: «Deve ser sempre a Assembleia a aprovar, em matéria de competência reservada, a posição do Estado português. Se não fizermos isso…», terminava o Sr. Deputado Alberto Costa, «… estaremos a deslizar por um caminho onde o parlamentarismo, esse sim, já não seria sequer o que agora é.»

Portanto, face àquilo que é a relativa indefinição da vossa proposta de articulado nesta matéria e à vossa posição, na qual, no fundo, o PCP se revê — aliás, na altura, apresentou um projecto de lei já com estas características —, gostava de ouvir a sua opinião sobre esta matéria, Sr. Deputado.

 

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