Estabelece a Constituição da República Portuguesa, no seu artigo 65.º, que “todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar”. Este direito fundamental, que não pode ser posto em causa, ocupa um lugar central nas preocupações do PCP em qualquer discussão sobre a habitação e, em particular, sobre a proteção de devedores de crédito à habitação.
É uma necessidade social impreterível garantir que aqueles cujo acesso à habitação foi feito através do crédito bancário disponham de mecanismos que evitem a perda da casa onde vivem com a sua família.
Este objetivo torna-se ainda mais premente numa situação de grave crise económica e social como aquela que se vive no nosso país. De facto, com 1,4 milhões de desempregados, com cortes brutais nos rendimentos dos trabalhadores, reformados e pensionistas, com a redução ou mesmo eliminação de prestações sociais, com sucessivos aumentos de bens e serviços essenciais – da educação à saúde, da alimentação à energia, dos combustíveis aos transportes públicos – é indispensável que se tomem medidas para que à perda de emprego, de salário, de apoio social, de subsídio desemprego, não se some também a perda da habitação.
De acordo com o Inquérito à Situação Financeira das Famílias 2010, publicado pelo Banco de Portugal e pelo Instituto Nacional de Estatística em junho de 2012, a dívida hipotecária associada à residência principal tem um peso dominante no valor da dívida das famílias (80,3%), com principal incidência nos jovens com menos de 35 anos (90,8%); cerca de 25% das famílias têm hipotecas sobre a sua residência principal, valor que no escalão etário dos 35 aos 44 anos atinge os 48,9%; 13,3% dos agregados familiares têm um rácio do serviço da dívida no rendimento monetário mensal superior a 40%; na classe mais baixa de rendimento monetário, a percentagem de famílias que ultrapassam essa fasquia é de 57,9%. Estes dados demonstram cabalmente o impacto do crédito à habitação na situação financeira das famílias portuguesas, em particular nos mais jovens e nas famílias com rendimentos mais baixos.
Esta situação não acontece por acaso. Por um lado, ela corresponde aos interesses do setor financeiro; por outro lado, resulta de uma política de manutenção de baixos salários cuja valorização é substituída pelo acesso ao crédito.
No seguimento do processo de privatização da banca, os sucessivos governos promoveram a generalização do crédito à habitação como forma preferencial de ter casa, orientando uma parte significativa dos recursos nacionais para os setores financeiro e imobiliário em detrimento da promoção efetiva do direito à habitação e do indispensável apoio à atividade produtiva, designadamente de bens transacionáveis. A ligação do setor financeiro ao setor imobiliário tornou-se bem patente, nas últimas duas décadas, no ritmo alucinante de construção de novos fogos, totalmente desfasado das necessidades do país.
A generalização do crédito à habitação serviu também de almofada à política de baixos salários e reformas aplicada por sucessivos governos, procurando assim colmatar a falta de rendimentos com a indução do crédito, amarrando os trabalhadores e as famílias a compromissos de várias décadas, com um custo final várias vezes superior ao valor do bem adquirido.
Em paralelo, esta situação beneficiou da ausência continuada de uma verdadeira política de habitação assente na promoção de arrendamento público, generalizando e tornando mais acessível o arrendamento, apoiando a construção própria a custos controlados e viabilizando a atividade das cooperativas de habitação, entre outras medidas, pudesse oferecer de facto outras opções para a concretização do direito a este bem essencial.
Ao contrário do que muitas vezes é afirmado, as famílias portuguesas não recorreram de forma irresponsável ao crédito, não vivem acima das suas possibilidades através do acesso ao crédito. Aliás, 80% do crédito às famílias é para habitação. Não é irresponsabilidade querer ter uma casa condigna para viver – é um direito!
As condições em que o setor financeiro concedeu crédito foram e são altamente vantajosas para os seus interesses. Para além da diferença substancial que em geral se verificou entre o custo do financiamento dos bancos no sistema financeiro internacional e o custo imposto às famílias, a verdade é que a banca rodeou os contratos de múltiplas garantias e de diversas cobranças acessórias, que multiplicam a sua remuneração.
Assim, a aplicação de medidas que garantam a manutenção da habitação para milhares de famílias não é um esforço desproporcionado que se impõe à banca; é antes um reequilíbrio das condições de acesso ao crédito e a garantia de um direito fundamental.
Nos últimos anos, o incumprimento das responsabilidades relativas ao crédito à habitação atingiu valores alarmantes. Em setembro de 2013, encontravam-se registados na Central de Responsabilidades do Crédito do Banco de Portugal, cerca de 124.500 contratos de crédito à habitação com crédito vencido. Tal situação exige a implementação de medidas decisivas de proteção de devedores de crédito à habitação que garantam a milhares de portugueses a manutenção das suas casas.
Em maio de 2012, foram apresentadas na Assembleia da República 19 iniciativas legislativas, das diferentes forças políticas, com o objetivo de dar resposta ao gravíssimo problema do aumento do incumprimento do crédito à habitação. Todos os partidos apresentaram propostas que, pela sua natureza e alcance, permitiam enfrentar de forma eficaz este problema. Contudo, já durante a discussão na especialidade, o PSD e o CDS recuaram em toda a linha relativamente às suas propostas iniciais, inviabilizando um amplo consenso sobre esta matéria e frustrando as expetativas de todas aquelas famílias que, numa situação desesperada e na iminência de perderem as suas habitações, aguardavam um decisiva intervenção da Assembleia da República.
Deste recuo do PSD e do CDS – indissociável das pressões exercidas pela banca, que, desde o primeiro momento, manifestou o seu profundo antagonismo às propostas em discussão na Assembleia da República – resultou um regime extraordinário de proteção de devedores de crédito à habitação desadequado e muito aquém das necessidades. De facto, as condições de acesso a este regime são tão restritivas, que apenas um reduzidíssimo número de famílias conseguiu reunir as condições para a ele aceder.
É hoje possível quantificar o reduzido impacto da Lei n.º 58/2012, de 9 de novembro, que cria um regime extraordinário de proteção de devedores de crédito à habitação em situação económica muito difícil. De acordo com o Relatório da Comissão de Avaliação do Regime Extraordinário, que abrange o período compreendido entre o dia 10 de novembro de 2012 – data da entrada em vigor da referida lei – e finais de setembro de 2013, apenas foram apresentados 1.626 requerimentos de acesso ao regime extraordinário, relativos a 1.486 contratos de crédito à habitação. Destes requerimentos, apenas 295 foram deferidos pelas instituições de crédito, tendo 183 processos sido concluídos até finais de setembro de 2013. Dos processos concluídos apenas 118 culminaram na regularização da situação de incumprimento. Assim, tendo em conta o universo de contratos de crédito à habitação com crédito vencido (124.500, em setembro de 2013), apenas 0,095% viram a sua situação de incumprimento regularizada por via do regime extraordinário criado pela Lei n.º 58/2012, de 9 de novembro.
Perante uma tão esmagadora evidência da desadequação do regime extraordinário de proteção de devedores de crédito à habitação em situação económica muito difícil, impõe-se uma alteração à Lei n.º 58/2012, de 9 de novembro, nomeadamente no que diz respeito às condições de acesso, alargando o universo de famílias que a ele pode aceder.
Em particular, no presente projeto de lei estabelece-se que, para efeitos do regime extraordinário, seja considerado o rendimento líquido do agregado familiar e não o rendimento bruto; aumenta-se o valor patrimonial tributário máximo dos imóveis que podem ser abrangidos pelo regime extraordinário; diminui-se o valor da redução do rendimento que dá acesso a este regime, assim como o valor da taxa esforço máxima; aumenta-se o valor do património imobiliário que o agregado familiar do mutuário possua para além da habitação própria e permanente; e fixam-se novos patamares, mais altos, para o rendimento do agregado familiar que permite o acesso ao regime extraordinário.
Além de melhorar as condições de acesso ao regime extraordinário de proteção de devedores de crédito à habitação em situação económica muito difícil, o presente projeto de lei alarga as medidas de proteção estabelecidas por este regime, nomeadamente: inclusão, no plano de reestruturação inicial, da possibilidade de concessão de um período de carência total; consagração, como medida complementar ao plano de reestruturação, do perdão de 25% do capital por amortizar nos casos em que o mutuário já tenha amortizado um mínimo de 75% do capital; extinção total da dívida, nos casos de dação em cumprimento ou de alienação do imóvel a um fundo de investimento imobiliário para arrendamento habitacional, e o direito do mutuário de, nestes casos, permanecer no imóvel na qualidade de arrendatário e de, posteriormente, o readquirir.
Pelo exposto, nos termos regimentais e constitucionais aplicáveis, os Deputados abaixo assinados do Grupo Parlamentar do PCP apresentam o seguinte Projeto de Lei:
Artigo 1.º
Objeto
A presente lei procede à primeira alteração à Lei n.º 58/2012, de 9 de novembro, que cria um regime extraordinário de proteção de devedores de crédito à habitação em situação económica muito difícil.
Artigo 2.º
Alteração à Lei n.º 58/2012, de 9 de novembro
Os artigos 3.º, 4.º, 5.º, 6.º, 7.º, 11.º, 15.º, 18.º, 19.º, 20.º, 21.º, 22.º, 23.º, 38.º e 39.º da Lei n.º 58/2012, de 9 de novembro, passam a ter a seguinte redação:
«Artigo 3.º
[…]
[…]
a) […]
i) […]
ii) […]
b) […]
c) […]
d) […]
e) […]
f) […]
g) […]
h) […]
i) […]
j) […]
k) […]
l) […]
m) [novo] «Rendimento anual líquido do agregado familiar» rendimento auferido durante um ano pelo agregado familiar, depois de deduzidos o imposto sobre o rendimento de pessoas singulares, incluindo a sobretaxa em sede de IRS, as contribuições obrigatórias para regimes de proteção social e para subsistemas legais de saúde, e a contribuição extraordinária de solidariedade;
n) «Taxa de esforço» a relação entre a prestação mensal do empréstimo correspondente à amortização do capital e dos juros em dívida, a que fica sujeito o agregado familiar, e um duodécimo do seu rendimento anual líquido.
Artigo 4.º
[...]
1) [anterior corpo do artigo 4.º]
a) […]
b) […]
c) […]
i) € 150 000 nos casos em que o imóvel hipotecado tenha coeficiente de localização até 1,4;
ii) € 175 000 nos casos em que o imóvel hipotecado tenha coeficiente de localização entre 1,5 e 2,4;
iii) € 200 000 nos casos em que o imóvel hipotecado tenha coeficiente de localização entre 2,5 e 3,5;
d) […]
2) [novo] Para efeitos da alínea c) do número anterior, o valor patrimonial tributário é aquele atribuído ao imóvel à data da apresentação do requerimento referido no n.º 1 do artigo 8.º da presente lei.
3) [novo] Para efeitos da alínea d) do número anterior, na verificação do preenchimento da condição de acesso relativa à situação económica muito difícil dos fiadores, são tidos em consideração os encargos associados ao crédito à habitação eventualmente titulado pelo fiador, assim como os encargos decorrentes do crédito cujo cumprimento é por si garantido.
Artigo 5.º
[...]
1. […]
a) Pelo menos um dos mutuários, seu cônjuge ou pessoa que com ele viva em condições análogas às dos cônjuges, se encontre em situação de desemprego ou o agregado familiar tenha sofrido uma redução do rendimento anual líquido igual ou superior a 20%.
b) […]
i) 40% para agregados familiares que integrem dependentes;
ii) 45% para agregados familiares que não integrem dependentes;
c) […]
d) […]
i) […]
ii) Por garagem e imóveis não edificáveis, até ao valor total de € 50 000;
e) O rendimento anual líquido do agregado familiar não exceda 14 vezes o valor máximo calculado em função da composição do agregado familiar e correspondente à soma global das seguintes parcelas:
i) Pelo mutuário: 300% do valor do salário mínimo nacional ou 360% no caso do agregado familiar ser composto apenas pelo requerente;
ii) Por cada um dos outros membros do agregado familiar que seja maior: 210% do valor do salário mínimo nacional;
iii) Por cada membro do agregado familiar que seja menor: 150% do valor do salário mínimo nacional.
2. […]
a) […]
b) […]
3. […]
a) […]
b) […]
4. [novo] Para efeitos da alínea b) do n.º 1, a taxa de esforço do agregado familiar do mutuário é calculada tendo em conta os encargos decorrentes de todos os contratos de crédito garantidos por hipoteca sobre a habitação própria e permanente do mutuário, ainda que a sua finalidade não seja a aquisição, construção ou realização de obras de conservação ou beneficiação.
Artigo 6.º
[...]
1. […]
a) […]
b) […]
c) […]
d) […]
e) […]
f) […]
2. […]
3. As instituições de crédito podem dispensar o mutuário, no todo ou em parte, da entrega dos documentos previstos nos números anteriores, quando considerem que tal não é necessário para demonstrar o preenchimento dos requisitos previstos nos artigos 4.º e 5.º.
4. [anterior n.º 3]
5. [anterior n.º 4]
Artigo 7.º
[...]
1. […]
a) […]
b) […]
c) […]
2. Salvo acordo em contrário entre instituições de crédito e mutuário, as medidas substitutivas previstas na alínea c) do número anterior são de aplicação subsidiária em relação às medidas de reestruturação previstas na alínea a) e às medidas complementares previstas na alínea b).
Artigo 11.º
Regime de carência e de valor residual
1. O período de carência parcial tem uma duração mínima de 12 meses e máxima de 48 meses e o período de carência total tem uma duração mínima de 6 meses e máxima de 24 meses.
2. […]
3. […]
Artigo 15.º
[...]
1. [revogado]
2. […]
3. Nas situações em que, aplicando uma ou várias das medidas previstas no n.º 1 do artigo 11.º e nos artigos 12.º e 13.º, o cumprimento do plano de reestruturação pelo mutuário se presuma inviável nos termos do número anterior, a instituição de crédito deve apresentar ao mutuário, dentro do prazo previsto no n.º 2 do artigo 10.º, uma proposta de plano de reestruturação que inclua as medidas complementares previstas no artigo 19.º.
4. Nas situações em que, mesmo aplicando as medidas complementares referidas no artigo 19.º, o cumprimento do plano de reestruturação pelo mutuário se presuma inviável nos termos do n.º 2, a instituição de crédito não está obrigada a propor ao mutuário um plano de reestruturação, devendo comunicar por escrito ao mutuário:
a) […]
b) […]
Artigo 18.º
[...]
1. […]
2. […]
3. […]
4. […]
5. [novo] Nas situações em que, aplicando uma ou várias das medidas previstas no n.º 1 do artigo 11.º e nos artigos 12.º e 13.º, o cumprimento do plano de reestruturação referido no n.º 3 se presuma inviável nos termos do n.º 2 do artigo 15.º, a instituição de crédito deve apresentar ao mutuário uma proposta de revisão do plano de reestruturação que inclua as medidas complementares previstas no artigo 19.º.
6. [novo] Nas situações em que, mesmo aplicando as medidas complementares referidas no artigo 19.º, o cumprimento pelo mutuário do plano de reestruturação revisto se presuma inviável nos termos do n.º 2 do artigo 15.º, a instituição de crédito não está obrigada a propor ao mutuário uma revisão do plano de reestruturação, devendo comunicar por escrito ao mutuário:
a) A decisão de não lhe apresentar proposta de revisão do plano de reestruturação;
b) A aceitação da aplicação de medidas substitutivas da execução hipotecária conforme previsto na secção IV do presente capítulo.
Artigo 19.º
[…]
1. [revogado]
2. A medida complementar ao plano de reestruturação é o perdão de 25% do capital por amortizar.
3. [revogado]
4. A adoção da medida complementar prevista no n.º 2 é obrigatória para a instituição de crédito quando já tenha sido amortizado um mínimo de 75% do capital.
Artigo 20.º
[…]
1. […]
a) Nos casos previstos no n.º 4 do artigo 15.º e no n.º 6 do artigo 18.º;
b) […];
c) [revogado]
2. […]
a) […]
b) […]
3. […]
a) […]
b) […]
c) […]
4. […]
5. […]
Artigo 21.º
[…]
[…]
a) A dação em cumprimento do imóvel hipotecado, com ou sem arrendamento a favor do mutuário;
b) […]
c) […]
Artigo 22.º
[…]
1. […]
2. […]
3. […]
a) […]
b) Que a alienação a FIIAH, proposta pela instituição de crédito, ou a dação em cumprimento do imóvel hipotecado envolva o arrendamento da habitação.
4. […]
5. […]
6. […]
Artigo 23.º
[…]
1. A aplicação das medidas substitutivas previstas no artigo 21.º produz os seguintes efeitos:
a) No caso da dação em cumprimento, a dívida extingue-se totalmente;
b) No caso da alienação do imóvel a FIIAH, a dívida extingue-se totalmente;
c) […]
d) […]
2. [revogado]
3. [revogado]
Artigo 38.º
[…]
1. O regime constante da presente lei vigora até ao dia 31 de dezembro de 2017.
2. […]
Artigo 39.º
[…]
1. […]
2. […]
a) […]
b) […]
c) […]
d) […]
e) […]
f) […]
3. […]
4. […]
5. […]
6. […]
7. […]
8. […]
9. Até 15 de outubro de 2017 a comissão de avaliação publica um relatório de avaliação global, que enviará ao Governo e à Assembleia da República.»
Artigo 3º
Aditamento à Lei n.º 58/2012, de 9 de novembro
É aditado à Lei n.º 58/2012, de 9 de novembro, o artigo 23.º-A, com a seguinte redação:
«Artigo 23.º-A
Direito ao arrendamento
1. Em caso de dação em cumprimento do imóvel hipotecado ou de alienação do imóvel a FIIAH, o mutuário tem o direito de permanecer no imóvel na qualidade de arrendatário.
2. O contrato de arrendamento previsto no número anterior está sujeito ao regime geral do arrendamento urbano.
3. Sem prejuízo de acordo diversos entre as partes, o contrato de arrendamento referido no n.º 1 está sujeito às seguintes regras especiais:
a) É celebrado por um prazo mínimo de 5 anos;
b) A renda anual não pode ser superior a 2% do total do capital em dívida à data da alienação do imóvel.
4. O arrendatário goza do direito de readquirir o imóvel, enquanto nele se mantiver e até 2020, mediante o pagamento de um preço equivalente à dívida à data da alienação do imóvel, deduzida do valor total das rendas entretanto pagas.»
Artigo 4.º
Entrada em vigor
A presente lei entra em vigor no dia seguinte ao da sua publicação.
Assembleia da República, em 31 de janeiro de 2014