Não obstante a atenção recente que a questão da habitação tem ganho no discurso governamental, tal não significa que se traduza na aposta por parte do governo em atribuir ao sector da habitação a dotação orçamental que expresse inequívoca intenção de realmente melhorar o acesso e as condições de habitação em Portugal. Em boa verdade, a Nova Geração de Políticas de Habitação e a Lei de Bases do Partido Socialista faz depender o financiamento para a execução da política nacional de habitação de múltiplas engenharias financeiras, inclusive com recurso a fundos de investimento e à captação de investimento privado, o que desresponsabiliza o Estado de verdadeira e expressiva afectação de capital, deixando esta questão, que é de suma importância, dependente e refém das vontades e interesses da iniciativa privada e do mercado, contribuindo para agravar as condições permissivas da financeirização da habitação.
A habitação é um bem socialmente estratégico, que se tornou num fator de lucro considerável, afastando-se rapidamente do seu objetivo principal, a satisfação de uma necessidade social constitucionalmente consagrada. No atual quadro, a produção e a venda deste bem, com os valores de transação e as mais-valias arrecadadas exponenciadas pela especulação marginaliza todos aqueles que, tendo baixos rendimentos, necessitam de habitação.
Progressivamente, a habitação foi e está a ser esvaziada da sua função social e económica ao transformar-se num mero produto mercantil e num ativo financeiro e especulativo, muitas vezes sem qualquer uso, não cumprindo a função social que a constituição lhe incumbe, mas servindo os interesses do capitalismo financeirizado transnacional. A religião do Deus-Mercado dita que se siga a cartilha neoliberal do urbanismo austeritário herdado da recente crise capitalista e do Memorando da TROIKA.
A providência de habitação em Portugal que sempre esteve, continuará a estar, essencialmente entregue ao mercado e à banca. Esta tendência alimenta a financeirização da habitação e a lógica de “capitalismo de casino” que já não afecta apenas a banca e outros sectores económicos e sociais de uma forma estrutural e de grande escala, como se infiltra no concreto da vida colectiva e social quando implica que o grosso da massa da população, sobretudo a mais vulnerável, se comprometa com estas formas de contrato de propriedade.
A legislação aprovada ao longo dos anos tem corrido de modo errático, sem que se tenha norteado por princípios e regras basilares, correndo ao sabor dos interesses e oportunidades dos ciclos políticos e dos poderes do momento e refém de interesses meramente economicistas e financeiros. Mantém-se a promiscuidade do nexo Estado – Finanças que sabemos ser o principal responsável pela mobilização do ambiente construído e do edificado como condição de reprodução e acumulação de mais valias através de movimentos cíclicos de capital no espaço urbano que, através da destruição criativa da paisagem, desqualifica ainda mais a vida dos mais vulneráveis.
No nosso ver, o direito à habitação que é um direito constitucionalmente inscrito, incondicional e inalienável, só será garantido de forma universal por um Estado Social forte que não descarte para os municípios e para o poder local as competências que deve ele próprio assegurar. O artigo 65.º da Constituição da República atribui ao Estado a competência para a resolução dos problemas da habitação promovendo, para isso, políticas públicas adequadas. Do nosso ponto de vista, e face ao texto constitucional, ao Estado incumbe intervir, inclusive, como regulador, promotor, provisor directo e como proprietário, em todos os níveis da criação de solo urbano, da reabilitação do edificado e da oferta de habitação. Insiste-se na ideia de que o financiamento para o sector público de habitação, edificado ou a edificar, deve ser assegurado em primeira linha pelo Orçamento do Estado e em segunda linha, ser complementado com financiamento de programas públicos ou da Comunidade Europeia. Para tanto, o Orçamento do Estado tem de anualmente consignar as dotações suficientes para assegurar o financiamento adequado para acorrer às necessidades, quer de conservação e reabilitação, quer de construção nova. Ou seja, urgentemente terá de haver mais oferta pública de habitação para atender sobretudo aos grupos mais vulneráveis e em risco social, mas também para contribuir para a regulação do mercado, com mais oferta e menor custo.