Intervenção de Jerónimo de Sousa, Secretário-Geral do PCP, Sessão Pública «Neo-Realismo – expressão cultural de um povo em luta»

«O Neo-Realismo expressa, inspira-se e reflecte na sua actividade criadora a vivência do povo trabalhador»

É com justiça que o PCP leva a cabo esta sessão pública sobre o tema «Neo-realismo, expressão cultural de um povo em luta», aqui no Museu do Neo-realismo em Vila Franca de Xira.

O neo-realismo como expressão cultural de um povo em luta, que contou sempre com o dedicado e criativo contributo de muitos militantes comunistas, teve nesta região algumas das suas mais importantes raízes e manifestações.

Ele expressa, inspira-se e reflecte na sua actividade criadora a vivência do povo trabalhador explorado desta terra.

De facto, na década de 1930, o concelho de Vila Franca de Xira, se bem que, economicamente, ainda muito dependente do sector primário, possuía já várias unidades industriais dos sectores agro-alimentar, cimentos, química, material aeronáutico, entre outras, e, já no dealbar da década, com o fascismo instalado no poder, sob os créditos da sua cartilha constitucional de 1933, sobretudo após a vitória de Franco em Espanha, surgem nesta região outras importantes unidades fabris, como a Covina, em Santa Iria de Azóia.

Tal como no País, a taxa de analfabetismo era, nesse período, altíssima. E os salários, em valores médios, eram baixíssimos. No campo, os assalariados rurais, incluindo gaibéus, ratinhos, caramelos e “alugados”, trabalhadores sazonais que vinham para a lezíria no tempo da ceifa e das colheitas (como bem refere Redol em Gaibéus), tinham, neste contexto social e político, salários substantivamente ainda mais baixos.

O neo-realismo português nasce e emerge no seio desta realidade, da necessidade de dar voz aos humilhados e ofendidos de vários quadrantes, incidindo os seus primeiros textos no mundo do proletariado rural, particularmente explorado na dureza da faina exercida, de sol a sol, nas zonas do latifúndio, onde a estrutura agrária e os métodos dessa actividade eram quase feudais, e na incipiente indústria que começava a estabelecer-se nas cinturas das grandes urbes.

Na sua evolução, essa reflexão e essa voz não tardarão a incluir também aqueles que na cidade grande eram igualmente vítimas da exploração e da usura capitalista.

Este é o tempo em que a ditadura fascista se consolida e a luta pela liberdade e a democracia mobiliza as energias de uma jovem intelectualidade portuguesa. Um tempo também em que uma nova realidade está em construção com a vitória do socialismo na URSS, com impacto em todo o mundo nos mais diversos domínios e projectando novos valores com influência igualmente na acção criadora, nas artes e na cultura.

É a busca da dignidade, através da literatura, que leva Redol e os seus companheiros do Grupo Neo-Realista de Vila Franca – António Dias Lourenço, Garcez da Silva, Bona da Silva, Mário Rodrigues Faria, Arquimedes da Silva Santos e Carlos Pato – a percorrerem e a denunciarem nas páginas do jornal Mensageiro do Ribatejo, o até aí ignorado universo dos descamisados, desses homens e mulheres que do Alto Ribatejo e das beiras desciam às lezírias pelas mondas e ceifas, trabalhando de sol a sol, amealhando uns cobres, escassos e sofridos, que lhes permitiam manter a courela e alimentar a prole nas suas serranas e madrastas terras.

O mundo da gente miúda nunca antes fora abordado munido da bagagem ideológica que lhes permitiu aprofundar os diversos interesses em confronto, a luta de classes.

É a opressão que irmana estes homens e mulheres que labutam e lhes dá um sentido colectivo. E esse sentimento da opressão, ainda que o não saibam expressar em acto em concertado grito de revolta, conduzi-los-á, com o PCP na vanguarda, a importantes jornadas de luta. Na sequência da reorganização do PCP de 1940-41, as grandes greves de Outubro-Novembro de 1942, Julho-Agosto de 1943, e em particular 8 e 9 de Maio de 1944, com forte expressão nesta região, eram a demonstração clara de que a classe operária tomava consciência do seu papel histórico, assumindo o papel dianteiro na luta pelo derrubamento do fascismo, pela melhoria das condições de vida, pela liberdade e pela democracia. Lutas que vão encontrar importantes desenvolvimentos em Maio e Junho de 1962, pelo aumento dos salários e pela jornada de trabalho de 8 horas, todas elas fundamentais para a Revolução de 25 de Abril de 1974.

No desenvolvimento dessa luta, é a própria unidade antifascista que se amplia, envolvendo amplos sectores da sociedade portuguesa, encontrando também na arte significativa expressão. Criadores como Alves Redol, Soeiro Pereira Gomes, Manuel da Fonseca, Joaquim Namorado, Carlos de Oliveira, Fernando Namora, João José Cochofel, Mário Dionísio, Alexandre Cabral, Fernando Lopes-Graça, Vasco da Conceição, Maria Barreiros, Augusto Gomes, Júlio Pomar, e tantos outros, buscam o drama verdadeiro dos explorados que se debruçam sobre a terra, que trabalham nas oficinas, nas minas, nas fábricas e na faina do mar.

Criadores que nos mostram a dura realidade, das condições quase sub-humanas em que se desenvolve a vida e a luta dos que trabalham e desse trabalho pouca paga recebem. Uma arte que expõe de modo cru as desigualdades sociais, num quadro em que a luta de classes se ramifica e extrema e onde o protagonista é claramente o colectivo. É este aspecto a marca distintiva dessa nova estética que se afirma aqui.

É a vida dos mais pobres, dos trabalhadores explorados e espoliados de direitos, vivendo de salários miseráveis e condenando os seus filhos a miséria igual, o tema central da estética neo-realista. Augusto da Costa Dias afirma, referindo as origens do movimento:

«O neo-realismo é, à nascença, contemporâneo dos primeiros esforços para a reorganização do Partido (Comunista Português). Surge como sua expressão na batalha cultural e ideológica, como oposição fundamental à ideologia dominante das classes dominantes fascistas (…) »
1941, ano em que surge Esteiros de Soeiro Pereira Gomes, é, apesar da desregulação social e política que a Segunda Guerra Mundial estabelece e da opressão generalizada, um período de alguma agitação no meio político e literário. Tanto pelo agudizar das contradições que o conflito vem instalar nas relações entre as diversas classes sociais – manifestando-se de forma mais incisiva nas zonas industriais e de latifúndio – quer pela ameaça real de a guerra se expandir para Leste. Quer ainda pela contínua resistência que as forças progressistas travam contra o fascismo luso, a partir de acções de massas, na denúncia do agravar da repressão, do desemprego, das condições de vida e de trabalho e do flagelo da fome que atingia, com o açambarcamento de bens essenciais, o proletariado.

No campo da acção e intervenção cultural, nesse ano de 1941, Alves Redol publica Marés, Fernando Namora Terra, Bento de Jesus Caraça Conceitos Fundamentais da Matemática, João José Cochofel Sol de Agosto, Joaquim Namorado Aviso à Navegação, Manuel da Fonseca Planície, Mário Dionísio Poemas e Sidónio Muralha Beco; inicia-se a publicação dos cadernos de poesia Novo Cancioneiro.

O aparecimento de Esteiros vem aprofundar o caminho de descoberta e denúncia social, incidindo a obra de Soeiro e a sua especulação político-social sobre os universos da exploração do trabalho infantil, cujas coordenadas mais abjectas escapavam às consciências burguesas e a grande parte da intelectualidade urbana.

Soeiro Pereira Gomes, militante e dirigente comunista, neste seu romance, mergulha fundo nesse nicho de exploração, da indústria artesanal, levando o leitor a tomar consciência dessa realidade, da vida agreste desse núcleo sobre o qual o capital e o fascismo exerciam toda a sua inumana brutalidade, exibindo sem disfarce o mundo da infância e da pré-adolescência, da miséria que desde o berço o invade de forma violenta, urdida pela ganância; um mundo do desenrasca, da luta quotidiana por um naco de pão para enganar a maligna, do trabalho escravo nos telhais, da rebeldia, da ternura, do companheirismo, da aventura e da transgressão – esse universo, que a escrita dorida e sensível de Soeiro Pereira Gomes trata e percorre com objectividade.

Esta referência prolongada a Soeiro Pereira Gomes justifica-se pelo seu carácter excepcional. Como nos lembra Álvaro Cunhal, no caso de Soeiro, «Não foi o escritor que se tornou um militante clandestino e organizador de greves e outras lutas de massas, mas esse militante comunista que, revelando-se talentoso escritor, trouxe à literatura portuguesa aspectos vivos da sua experiência de revolucionário.»

A cultura foi uma das mais profícuas formas de resistência ao fascismo nesses anos, a arma que os então jovens autores – quase todos autodidactas, quadros médios, sem formação académica – manejavam com engenho e talento, sabedores que a sua acção se confundia com a própria dinâmica do mundo do trabalho, quer o dos operários da indústria, quer os rurais, a partir de corajosos actos de intervenção cultural, tendo como espaço privilegiado pólos agregadores desse projecto, as colectividades populares de desporto, cultura e recreio, em que o concelho de Vila Franca era pródigo – colectividades que ainda hoje são espaços emblemáticos de fruição cultural e desportiva.

Foram estes os traços essenciais do neo-realismo português, esse notável movimento estético que se assumiu como expressão cultural de um povo em luta.

Uma luta que contou com a militância, o trabalho, o pensamento e a criação artística de milhares de intelectuais – muitos dos quais comunistas – que marcaram indelevelmente a história das artes e das ciências e que perceberam a importância da sua acção na dinamização da vida cultural nacional.

Na resistência antifascista, na Revolução de Abril e na defesa das suas conquistas, na luta por melhores condições de vida, em defesa dos direitos dos trabalhadores e do povo, pela ruptura com a política de direita, por uma política alternativa patriótica e de esquerda, por uma democracia avançada inspirada nos valores de Abril, pelo socialismo e o comunismo, os intelectuais comunistas destacam-se não só por consagrarem as suas vidas à cultura, mas também por se colocarem ao lado daqueles que lutam pela libertação da humanidade da exploração e da opressão.

Armados pelo seu esforço e entusiasmo, amparados pela intervenção determinada das mais amplas camadas da população, os comunistas, ao lado de muitos outros democratas e patriotas, lutam para massificar a cultura em todas as frentes.

Do movimento sindical ao Poder Local Democrático, das colectividades ao movimento associativo juvenil e estudantil, dos cineclubes às universidades populares, desempenham um papel fulcral na dinamização da vida cultural portuguesa e na defesa da sua identidade.

Indissociável da luta dos trabalhadores e do povo, pela paz, por melhores salários e pensões, contra o aumento do custo de vida, em defesa dos serviços públicos e dos direitos, esta luta incorpora a defesa da democratização da cultura e por uma política cultural ao serviço do povo e do País. Uma política cultural que exige o efectivo acesso das massas populares à criação e fruição da cultura e a liberdade e apoio à produção cultural, que reivindica a valorização da função social de todos os trabalhadores culturais, impõe a defesa do património cultural nacional, regional e local, erudito e popular, tradicional e actual, como forma de salvaguarda da identidade e da independência nacionais.

Assim entendida, a democratização da cultura é factor de emancipação, é democratização de toda a vida, é liberdade de sonhar e de criar, é construir no presente um outro futuro.

Sublinhando as palavras de Álvaro Cunhal na primeira Assembleia de Artes e Letras da Organização Regional de Lisboa do PCP, em 1978, «O Partido não procura impor aos artistas nem escolas, nem estilos. Modelo estético partidário é coisa que não existe».

Pensamento que viria a sublinhar mais tarde na obra A Arte, o Artista e a Sociedade (publicada em 1996), ao afirmar: «Arte é liberdade. É imaginação, é fantasia, é descoberta, é sonho […]. Matar a liberdade, a imaginação, a fantasia, a descoberta e o sonho seria matar a criatividade artística e negar a própria arte, as suas origens, a sua evolução e o seu valor como atributo específico do ser humano.»

Sempre com os trabalhadores e com o povo, sempre com os democratas e patriotas apostados na construção de um Portugal com futuro, é com a liberdade, a imaginação, a fantasia, a descoberta e o sonho que os comunistas continuam a intervir na vida. É nesta luta que continuam empenhados.

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