Permitam-me que vos saúde. Que manifeste a minha admiração e alegria pelo nível e dimensão desta Marcha inédita, transformada numa torrente humana onde se sente o pulsar da inquietação face aos perigos e ameaças, do protesto e do descontentamento perante as injustiças, aliados à determinação e à confiança na luta pela liberdade e democracia. Admiração e alegria tanto mais sentidas quanto nos tempos que correm sopram os ventos avassaladores da ideologia dominante que nos convidam e empurram para o pântano do conformismo e fatalismo, da alternância sem alternativa, da interiorização nas consciências da ideia da inevitabilidade das injustiças e desigualdades, da negação de um Portugal desenvolvido e democrático que acreditamos ser possível com a vitória de Abril.
E, aqui se expressou também da forma mais visível e genuína o direito à indignação.
O que estamos hoje aqui a dizer e a fazer resulta da avaliação que fazemos da situação nacional e do estado da democracia.
Se é verdade que, ao longo de mais de 30 anos, o regime democrático tem sido alvo de ataques por parte daqueles que nunca se conformaram com as transformações e realizações operadas com a Revolução de Abril, e posteriormente consagradas na Lei Fundamental, actualmente, com este Governo PS de José Sócrates, a diferença reside na dimensão e profundidade dessa ofensiva que não deixa intocável nenhuma das vertentes do regime democrático – a democracia económica, a democracia social, a democracia cultural e a democracia política. A própria soberania nacional (concebida como o reconhecimento do direito de cada povo decidir do seu devir colectivo) começa a ficar comprometida, com a perda e transferência de parte da soberania, envolvendo Portugal em conflitos e processos que negam o objectivo da defesa da paz como princípio e valor universal com o qual o povo português se identifica e a Constituição consagra.
Esta Marcha Liberdade Democracia teve como mola impulsionadora o momento em que o Tribunal Constitucional decidiu executar uma norma da Lei dos Partido Políticos da autoria do PS e do PSD, que exigia a prova de um mínimo de 5 mil militantes e consequentemente a violação do princípio e do direito de privacidade dos cidadãos que livremente fazem as suas opções políticas e partidárias mas não podem ser sujeitos à devassa da sua ficha e opção partidária.
Tal intenção trouxe à actualidade não só este aspecto da Lei mas o seu conteúdo e objectivos em articulação com a Lei do Financiamento dos Partidos Políticos. Numa e noutra há um alvo preferencial: o PCP, a sua autonomia, as suas características, a sua natureza; e a sua maior realização política, cultural e popular: a Festa do «Avante!».
Resultante do empenhamento, militância e contribuição das gerações de comunistas construímos este Partido da classe operária e dos trabalhadores, que assume como único compromisso a sua luta com os trabalhadores e o povo português, que recusa integrar o seu projecto emancipador e transformador, o seu posicionamento, a sua intervenção e organização em instrumentos do sistema capitalista formatados à medida dos seus interesses.
Como homens, mulheres e jovens livres não aceitamos que nos imponham um “modelo” único à sua imagem e semelhança, não aceitamos que aqueles que proclamam “menos Estado” queiram afinal impor e “estatizar” as nossas regras de funcionamento e organização.
Recusamos que o financiamento do Estado aos partidos políticos os transforme em “departamentos” do Estado. Aceitamos e propomos transparência e rigor nas contas, sem limitações à iniciativa própria de recolha de fundos, mas menos dependência das subvenções do Estado e consequentemente a redução das verbas.
Estareis de acordo, que sejam estes princípios gerais a propôr na Assembleia da República.
Alguns analistas e meios de comunicação social questionaram-nos sobre os objectivos desta Marcha. Se não estaríamos a exagerar quando alertamos para a necessidade de defender a liberdade e a democracia. É certo que existem concepções diferentes sobre a caracterização e conteúdo destas duas palavras e como se avaliam as consequências desta ofensiva em curso.
Sem abdicarmos do nosso projecto que define o regime democrático porque nos batemos, temos um ponto de partida e de referência: o regime democrático consagrado na Constituição da República, Constituição que, apesar de sucessivamente alterada e revista, continua a comportar uma concepção de democracia com vertentes inseparáveis no plano económico, político, social e cultural, e onde a liberdade assume um carácter intrínseco.
E é no confronto com a realidade, com a política que está a ser levada por diante, face ao que se inscreve e consagra na Lei Fundamental que a questão da democracia deve aqui ser colocada.
Na definição de democracia económica não se exige ao Governo que combata, recicle ou altere a natureza do poder económico que segue a sua génese exploradora, a sua ânsia do lucro sem limites. Poder económico que hoje reivindica a privatização de tudo o que possa dar lucro, que entende os direitos dos trabalhadores como um estorvo e a Constituição como um empecilho. Está na sua natureza! O que a Constituição consagra e exige do Governo é que o poder económico não se sobreponha ao poder político, que coexistam os três sectores da economia dando prevalência à dinamização do sector público e o apoio às pequenas e médias empresas. O Governo não está “em cima do muro”. Está cada vez mais submetido aos ditames dos poderosos, sobretudo pela sua prática e decisões políticas e económicas. O primeiro artigo da Constituição Económica consagra e obriga à sobreposição do poder político sobre o poder económico.
No plano da democracia social está na lógica implacável do poder económico conseguir mais lucro com mais exploração e expropriações de direitos laborais e sociais. Está-lhe no sangue! Mas a Constituição Laboral, no capítulo dos Direitos, Liberdades e Garantias, estabelece a ideia e a garantia que o trabalho é em si um direito e sede de direitos, o reconhecimento juridico-político dos direitos colectivos e de solidariedade e da sua ligação com a democracia política.
Que faz este Governo do PS? Nem sequer fica, nem poderia ficar, neutro. Deveria fazer opção clara do lado dos trabalhadores e dos seus direitos. Com o chamado “Livro Branco sobre o Código do Trabalho” coloca-se do lado de lá, do lado contrário dos constituintes e da Constituição que, no confronto dilemático entre os interesses do poder económico e os interesses e direitos dos trabalhadores, das classes e camadas antimonopolistas, fizeram uma opção de fundo.
Também na chamada reforma da Segurança Social, na saúde, na educação, a ofensiva caracteriza-se não só por exigir sacrifícios aos trabalhadores, aos reformados, às populações e deixar intocáveis os interesses dos poderosos, mas por tentar, pela via da privatização, transformar estas áreas sociais (reconhecidas pela Lei Fundamental como direitos universais) em áreas de negócio.
Mas os trabalhadores e as populações reagiram, protestaram, lutaram e lutam em defesa dos seus interesses e direitos. E este Governo auto-proclamado de “moderno” recorreu à resposta clássica, com arrogância e autoritarismo, animado directa ou indirectamente pelo silêncio ou mesmo com intervenção, uma escalada de ataques às liberdades. O exercício de direitos sindicais é coarctado e proibído em muitas empresas, o direito à greve ameaçado, piquetes de greve são dispersados com recurso a forças de segurança, dirigentes sindicais são expulsos, processos criminais são cada vez mais frequentes contra quem faz uso de direitos constitucionais de que é exemplo o caso do dirigente sindical da construção, mármores e madeiras por estar à frente de trabalhadores com salários em atraso e ilegal e arbitrariamente despedidos. Quem sofre a condenação sumária é o sindicalista e não o que violou o direito ao salário e ao emprego dos trabalhadores.
Um pouco por todo o país vão crescendo as limitações à liberdade de expressão e de propaganda, com regulamentos inconstitucionais e intromissões abusivas de diversas autoridades e instituições públicas ou privadas; multiplicam-se os casos de tentativas de limitação do direito de associação e de autonomia das organizações.
Crescem as intromissões na autonomia do Ministério Público; valoriza-se o facto de que as escutas telefónicas possam ser efectivadas sem mandato; às forças de segurança é-lhes dado, cada vez mais, o papel de reprimir e pressionar e não de prevenir; desvaloriza-se o papel da Polícia Judiciária; desenvolvem-se os traços de um Estado policial, num certo ressuscitar do critério que fez doutrina no tempo do fascismo da “liberdade possível com a autoridade necessária”.
Estes ataques à democracia política que se seguem à expropriação de direitos sociais conjugam-se com as tentativas e ensaios de alterações ao sistema eleitoral, com o objectivo claro de manipular o voto enquanto expressão eleitoral mas que vão mais longe e visam condicionar a própria formação da vontade; restringir o leque de opções possíveis e impor por obra de engenharia eleitoral uma bipolarização que reduzisse a possibilidade de políticas alternativas e de uma alternativa política, não tanto de “partido único” mas de “dois partidos da política única” que já vigora há mais de 30 anos.
Citando Brecht: “Os poderosos fazem planos para 10 mil anos”. Este Governo e em particular o Primeiro-Ministro do alto da sua olímpica arrogância, embevecido pelo apoio e aplauso dos poderosos, dos seus seguidores e clientelas que lhe auguravam a perpetuação do cargo, julgou que seria tão fácil proceder à demolição dos direitos sociais como descer a Avenida da Liberdade até aqui ao Rossio; que a arrogância e a intimidação, aliada à doutrina dominante das inevitabilidades e coberta com a propaganda, venceria resistências e esconderia a realidade de um país mais injusto, mais desigual, menos democrático.
Enganou-se! Contra a ideologia dominante das inevitabilidades os trabalhadores e as populações fustigados nos seus interesses e direitos, a partir dos seus problemas concretos e aspirações concretas, mostraram o seu descontentamento, elevaram o seu protesto, travaram e travam a luta.
O PCP agora, como sempre, lá esteve e está estimulando, mobilizando e solidarizando-se com justas causas, razões e direitos dos trabalhadores e do povo português.
Agora, como sempre, considerando a luta como chão mais sólido para travar o caminho a uma política que impede o progresso, a justiça social e uma vida melhor para o povo e para o país.
Único partido que se mantém fiel ao compromisso com os trabalhadores, a juventude, os reformados, os pequenos e médios empresários e agricultores!
Único partido que não aceita ser metido no mesmo saco de outros comprometidos com o grande capital, que não se fica pela reflexão e declaração que sossegam consciências mas que não resolvem nada.
Único Partido que propõe ao povo e ao país uma ruptura com esta política de desastre encetando um novo rumo que assuma a democracia, a liberdade, a justiça social, o desenvolvimento, a soberania nacional como pilares fundamentais.
Partido de causas justas mas Partido de projecto por uma democracia avançada e de luta pelo socialismo.
Vós que aqui estivestes nesta grande acção, nesta grande afirmação de esperança e confiança na liberdade e na democracia, sejam portadores da mensagem, sejam obreiros de um Partido mais forte e força alternativa para alcançar um futuro diferente onde voltem a residir e irradiar os ideais e valores de Abril. Que este Rossio a transbordar não seja ponto de chegada, mas de partida. Que cada um se dirija aos democratas, aos cidadãos preocupados com o estado da democracia e com o estado do país para, juntos com o PCP, retomar as alamedas da esperança.