Cabe-me intervir relativamente à chamada “Mais Habitação”.
Antes de mais estranho que todo este pacote de intervenção, na área da habitação, seja apresentado sem qualquer referência às medidas anteriormente lançadas pelo Governo. Nada nos é dito acerca do sucesso ou insucesso da chamada Nova Geração de Políticas de Habitação e ignora-se completamente o Programa Nacional de Habitação que, de acordo com a Lei, o Governo apresentou e se encontra em apreciação na Assembleia da República.
Igualmente se estranha o silêncio sobre a perspetiva de cumprimento, ou não, das grandes metas anteriormente apresentadas pelo Governo, sejam elas o solucionar, até 2026, das situações de habitação indigna que, de acordo com as Estratégias Locais de Habitação apresentadas, ultrapassam as cem mil. Sejam elas o passar a percentagem de habitação pública dos atuais 2% para os, ainda assim medíocres, 5%.
Uma primeira conclusão: não será notável a expectativa de resultados da NGPH e o PNH estará ultrapassado na versão apresentada pelo Governo. Assim sendo, perante o crescer da luta que demonstra a urgência do encontrar de soluções, terá resolvido o Governo avançar com uma enorme encenação a “Mais Habitação”.
Naturalmente que, entre tantas medidas, um ou outro benefício poderá resultar para quem luta por uma habitação – pode ser o caso de alargamento do acesso ao Porta 65 Jovem, a atribuição de alguns subsídios de renda ou o relançamento do movimento cooperativo. No conjunto não passam de migalhas, caídas da farta mesa dos fundos imobiliários e do capital financeiro dominantes no imobiliário. Farta mesa que o Governo se propõe continuar a alimentar.
Vejamos o porquê desta afirmação.
No arrendamento mantém-se o contestadíssimo NRAU e não é criado o mínimo instrumento de regulamentação. Será positiva a manutenção das rendas anteriores a 1990, sendo que o grosso da beneficiação fiscal sai das finanças locais. É criado um subsídio de renda, a sair dos cofres da Segurança Social, descapitalizando-a, e não do orçamento da Habitação. Subsídio que, com todas as limitações que o rodeiam chegará a um reduzido número de carenciados. Subsídio que o Governo prevê ser atribuído durante 5 anos, tempo necessário para que “a oferta pública de habitação venha a permitir normalizar o mercado de arrendamento”. Sejamos sérios, nos próximos 5 anos a “oferta pública” promoverá habitação para uma reduzida parcela de quem está em habitação indigna e pouca ou nula influência terá no mercado de arrendamento.
O arrendamento de longa duração, assim como o arrendar para subarrendar, copiam programas já criados, com notável insucesso, pelos municípios de Lisboa e Porto. É possível que, a nível nacional, consigam mais do que os 300 fogos obtidos nesses municípios. Será muito pouco.
Na bonificação de juros, assiste-se à repetição do já visto, entre final da década de oitenta do século passado e primeiros quinze anos deste século, quando à “pala” da bonificação de juros, se assistiu a portentosa transferência de dinheiro público para a Banca. Pode ajudar num ou noutro caso extremo de apoio à proprietarização, garante os lucros da Banca alicerçados em juros especulativos, não resolve o grave problema da habitação.
É justa a intenção de terminar com os Vistos Gold para a habitação. Vamos a ver se se concretiza. Se tal acontecer, não duvidemos é porque tal negócio já não é essencial para o capital financeiro, hoje bem mais interessado na promoção de habitação para os chamados residentes não habituais, onde o Estado é pródigo na atribuição de vultuosos benefícios fiscais.
Quanto ao alojamento local, não se ignoram as consequências do mesmo no processo de gentrificação vivido nos centros históricos e zonas centrais de muitas cidades, nem o seu papel no desaparecimento de elevado número de fogos habitacionais e consequente aumento de rendas. É, no entanto, perversa a diabolização do AL, quando os grandes grupos financeiros continuam, muitas vezes com as vantajosas condições do IFFRU, a transformar quarteirões inteiros em hotéis. É ainda de considerar que os municípios, onde o processo de gentrificação mais se faz sentir, já avançaram com medidas de contenção.
No referente à medida que mais empolou o “comentarismo” mediático, a dita apropriação da propriedade privada devoluta e, sem alinhar na simplificação estatística dos 740 mil fogos devolutos – muitos em zonas de perda populacional, muitos em elevado estado de degradação e muitos de tipologias nada apelativas – pode-se dizer que “a montanha pariu um rato”. Afinal, não serão mais de 11 mil. E nenhum de propriedade dos sacrossantos fundos imobiliários. E todos mobilizáveis se os municípios da respetiva área assim quiserem. Já assim é, desde 2014, no Regime Jurídico da Reabilitação Urbana.
Haverá ainda propostas de alteração à Lei de Solos e um dito “Simplex” para o licenciamento urbano. Na alteração à Lei de Solos é referido, um “chamado espelho de reprodução do solo urbano sobre solo rústico”. Aqui nada de novo. Tal já é possível, no quadro da atual lei, com a aprovação de Planos de Pormenor, respeitando os programas territoriais existentes. O que não é possível, e bem, é a degradação ambiental, ocupando terrenos da RAN e da REN, em nome da necessidade de resolver problemas habitacionais, como já veio propor um senhor presidente de Câmara, de município líder na especulação imobiliária. É de temer que a alteração venha mesmo dar razão a este sr. Presidente.
O Simplex para o licenciamento urbano responde a uma reivindicação da recente Convenção da Construção, realizada pela Confederação Portuguesa da Construção e Imobiliário. Não se contesta a necessidade de agilizar os procedimentos no licenciamento urbano. Não se pode é partir daqui para a total liberalização do mesmo, extinguindo toda e qualquer apreciação prévia inclusive ao nível da inserção urbanística. Acresce o facto de ser tornada obrigatória a apresentação dos processos em “modulação digital e paramétrica” de metodologias e formatos, para já, só ao alcance dos grandes gabinetes projetistas. É caso para dizer, liberalizar e para os grandes.
A este respeito salientar ainda que a pretendida celeridade dos licenciamentos contrasta com o penoso arrastar de procedimentos de planos municipais de ordenamento do território. Para esses não há simplex.
Vai longo este levantamento das intenções do Governo. Sobre estas e para finalizar, cito a Sra. Ministra da Habitação, em recente entrevista a um semanário. Diz: “A maior confiança que podemos dar ao mercado é que queremos ser parceiros do privado”. Pois é, há que “animar os capitais”, expressão quiçá pouco científica que surge, em 1918, no primeiro decreto da República Portuguesa sobre políticas de habitação e onde se diz “desde que o Estado anime os capitais consagrados à edificação de casas económicas, com auxílios justos e valiosos, os mesmos capitais poderão obter um juro remunerador”. Passado mais de um século, senhoras e senhores do Governo, já é tempo de saberem que este não era, nem é, o caminho para responder à questão da habitação.