O dicionário da língua portuguesa da Porto Editora diz-nos da “austeridade” o seguinte: “carácter ou qualidade do que é austero”, “rigor de disciplina; severidade”, “ausência de enfeites ou ornamentos”.
Para o capitalismo, a palavra adquiriu um outro sentido. Eufemísticamente, a “austeridade” passou a sintetizar a resposta do sistema ao agravamento da sua crise estrutural.
Uma resposta que comporta, como não poderia deixar de ser, toda a agressividade, toda a violência, toda a desumanidade que caracterizam o capitalismo.
Uma resposta que não é nova na sua essência nem nos objectivos que persegue. Perante dificuldades crescentes de realização de mais-valia, inexorável consequência do desenvolvimento do capitalismo e da baixa tendencial da taxa de lucro, tenta-se a todo o custo restaurar as condições de rentabilidade do capital.
Desde logo, aumentando a exploração. Desvalorizando a força de trabalho, reduzindo os custos unitários do trabalho. Também destruindo e desvalorizando capital. O crescimento do desemprego e sua manutenção em patamares elevados é simultaneamente resultado desta destruição de capital e condição do aumento da exploração.
Há também que alargar as áreas em que se pode exercer o processo de acumulação de capital. Retirar à esfera pública e submeter ao mercado ainda mais sectores da vida económica e social. Atacar e desmantelar serviços públicos. Liberalizar, privatizar. Privatizar e mercantilizar até parcelas da própria Natureza.
Este é o fulcro da resposta das instituições internacionais do capitalismo à crise, desde pelo menos os anos 70. A “austeridade” é, por tudo isto, uma nova expressão para um velho conceito.
Na União Europeia a “austeridade” aplica-se através de programas ditos “de ajustamento" e das chamadas "reformas estruturais". Nos países sob ocupação da troika composta pela Comissão Europeia, pelo Banco Central Europeu e pelo Fundo Monetário Internacional, estes programas e reformas constam de "memorandos de entendimento" e adquirem a sua expressão mais brutal.
Os dados disponibilizados pelo Eurostat – o gabinete de estatísticas da UE – documentam a devastação social em curso.
Mesmo não podendo estes números traduzir, por si só, o dramatismo da situação vivida por milhões de europeus, eles são em si mesmos elucidativos.
Ascendem já a mais de 26 milhões e meio os homens e mulheres desempregados na UE, dos quais mais de 19 milhões na Zona Euro.
Em termos médios, a taxa de desemprego supera os 12% na Zona Euro e atinge os 11% na UE. (Um parêntesis: numa reunião do Fórum dos Socialistas Europeus, na passada semana em Paris, António José Seguro desafiava os seus pares a fixarem como objectivo para 2020 atingir um desemprego máximo de... precisamente 11%! Ou seja, o mesmíssimo valor que temos actualmente! Será isto aquilo a que chama a “austeridade inteligente”. Seriam estes os seus resultados.)
Mas estes valores médios escondem variações que vão dos 5% de desemprego na Alemanha e na Áustria aos 27% na Grécia e em Espanha ou aos 18% em Portugal. Entre os jovens até aos 25 anos estes números disparam para os 63% na Grécia, 56% em Espanha, 43% em Portugal e 41% em Itália.
O trabalho a tempo parcial – situação em que se encontram mais de 30% das mulheres trabalhadoras na UE – subiu em 2012 e atinge os 19%, quase um quinto da população empregada. Nalguns países, como é o caso da Holanda, aproxima-se dos 50%.
Em países como Portugal, a Espanha ou a Polónia, cerca de 1 em cada 4 trabalhadores tem um contrato a prazo.
Tendência geral de desenvolvimento do capitalismo, pesem os repetidos apelos e as exaltações do empreendedorismo, o assalariamento progrediu e é nessa condição que se encontra, em termos médios, mais de 83% da população empregada.
As condições de vida, medidas pelo rendimento mediano disponível das famílias, regrediram na maioria dos Estados-Membros. As quebras mais acentuadas verificaram-se na Grécia, na Bulgária, na Letónia, em Espanha e em Portugal.
O primeiro trimestre de 2013 trouxe novas quebras nos custos unitários do trabalho. Eslovénia, Espanha, Chipre e Portugal foram os países onde essa quebra foi mais acentuada em termos percentuais. Em Portugal, os salários estão em queda há oito trimestres consecutivos.
Em muitos países, as quebras no rendimento das famílias e nos salários superam, em termos relativos, a redução do produto, evidenciando um processo de redistribuição da riqueza disponível, a favor do capital, em desfavor do trabalho. Cá está, o sentido da “austeridade”!
Também a pobreza, nas suas diferentes expressões, cresce na UE. Em 2011, cerca de 120 milhões de pessoas estavam em risco de pobreza ou exclusão social, ou seja, 24% da população da UE. Desde então, os cortes nas transferências sociais que contribuíam para mitigar este risco terão determinado uma alteração para pior deste quadro.
No mesmo ano, em 2011, as taxas de fertilidade caíram em 24 dos 27 Estados-Membros, o que leva o Eurostat, na análise a estes números (feita já este ano), a falar numa “recessão de bebés” na Europa.
Há realidades ainda não inteiramente traduzíveis em estatísticas oficiais. Como a das crianças que em Portugal ou na Grécia, por exemplo, chegam todos os dias às escolas com fome.
Acentua-se a emigração forçada dos que não encontram no seu país condições de sustento. Em Portugal, foram mais de 250.000, na sua maioria jovens, só nos últimos dois anos.
Na sua essência, os programas UE-FMI são expressão maior – mas não única! – de um programa político – o da "austeridade" perene – que tem nos chamados programas nacionais de reforma, no Pacto de Estabilidade, no Pacto para o Euro Mais ou no chamado Tratado Orçamental outros dos seus instrumentos. E, antes de todos destes, nas próprias políticas comuns e nos próprios Tratados também. São estes os instrumentos que foram sendo utilizados para submeter ao mercado – e à livre concorrência capitalista nesse mercado – praticamente todas as esferas da vida económica e social.
As consequências são sentidas pelos cidadãos no seu quotidiano. Direitos sociais como o direito à saúde, ao ensino ou à segurança social são atacados e desmantelados. O mesmo acontecendo com um conjunto amplo de serviços públicos, cuja privatização é recomendada ou imposta pela UE – água, energia, transportes públicos, entre outros.
Inevitáveis consequências: aumento dos preços, degradação dos serviços, exclusão e desigualdade no acesso.
A parte dos salários "confiscada" sobre a forma de impostos, cada vez maior, serve cada vez menos para financiar direitos sociais e serviços públicos e cada vez mais para garantir lucros ao capital financeiro e para pagar dívida privada convertida em dívida pública.
Falando ainda dos impactos da “austeridade”, falemos da própria vida, da esperança de vida, que em termos médios vem regredindo em vários países da UE, particularmente entre a população mais pobre. Acontece também na Alemanha.
Camaradas e amigos,
Aqui chegados, não é possível continuar a impor políticas contrárias ao interesse dos povos senão excluindo os povos da participação e da decisão políticas! Por essa razão, a democracia é, também ela, vítima da “austeridade”.
A democracia que temos, imperfeita sem dúvida, longe ainda da democracia que defendemos, mas que é, mesmo assim, um obstáculo aos insaciáveis objectivos de exploração do capital.
Agora, o que não foi nem poderia ser democraticamente legitimado propõe-se que seja “aprofundado”, a UEM e o EURO. É a estratégia habitual: cada novo passo nesta integração capitalista visa legitimar o anterior e justificar o seguinte.
Chamam-lhe a genuína União Económica e Monetária que com, a Governação Económica e o Tratado Orçamental compõem o novo quadro politico institucional, que se quer de constrangimento absoluto a qualquer desvio à “austeridade eterna”.
Para tal, desfere-se mais um vigoroso ataque à soberania dos povos, que envolve o esvaziamento das estruturas de poder que lhes são próximas e que (melhor) controlam designadamente os parlamentos nacionais.
Queremos que decisões fundamentais da vida de um país – por exemplo, sobre política e opções orçamentais, emissão de dívida ou sobre reformas de política económica – passam a estar sujeitas ao escrutínio prévio (e aprovação) de entidades externas supra-nacionais, fora de qualquer controlo democrático.
Quando as orientações dessas entidades não forem acatadas, são accionados mecanismos ditos “automáticos”, que levam a que, na prática, a administração de facto do país em causa passe a ser exercida por essas mesmas entidades externas, que determinarão as reformas estruturais que esse país terá de levar a cabo.
Qualquer semelhança com a realidade que hoje vivem os países sob ocupação da troika não é pura coincidência. O que se quer é garantir que no pós-troika se eternizam as políticas da troika; garantir a “austeridade perene”.
Mas quem tem estes planos, não tem o caminho livre!
O caminho de retrocesso civilizacional que nos querem impor encontra pela frente a resistência e a luta dos trabalhadores e dos povos.
A luta dos que não aceitam que num momento de inigualável desenvolvimento das forças produtivas, de extraordinários progressos científicos e tecnológicos, milhões de seres humanos sejam condenados a recuar muitas décadas ou mesmo séculos no plano dos direitos sociais e das condições de vida.
Uma luta que, em Portugal, voltará a ter expressão maior no próximo dia 27, com a realização de uma Greve Geral, que prossegue também, sob formas diversas, em funções das condições especificas de cada pais, nos demais países da EU.
Uma luta que é a mais sólida razão de esperança e de confiança num futuro melhor.
Porque é ela mesma semente desse futuro!
Um futuro que na Europa passa necessariamente pela ruptura com o processo de intervenção capitalista que é a União Europeia, ruptura que abrirá caminho a uma outra europa, dos trabalhadores e dos povos.
Uma Europa de estados soberanos, livres e iguais em direitos, que estabeleçam entre si relações de amizade e cooperação mutuamente vantajosas, uma Europa de paz, democracia e progresso social.