Caros amigos, estimados camaradas
Os transportes públicos constituem um importante serviço público essencial à qualidade de vida das populações, fundamentais para assegurar o transporte de passageiros, os movimentos pendulares, a coesão territorial e o direito à mobilidade. São também determinantes para a organização e gestão do território e essenciais ao funcionamento da economia e à preservação dos valores e do património ambiental. Promover a gratuitidade e a intermodalidade de transportes representa, por isso, um justo objectivo da luta do Povo português e de outros povos da Europa.
Seja em Portugal, seja no quadro da União Europeia, a qualidade e amplitude da rede de transportes, a intermodalidade existente e os preços praticados dependem naturalmente das opções de classe prevalecentes nas decisões políticas de cada Estado e, não menos importante, da natureza da propriedade, quer dos meios de transporte, quer das infraestruturas onde os mesmos circulam. A luta pela promoção da gratuitidade dos transportes públicos e de um funcionamento capaz de responder às necessidades dos povos no espaço da UE confronta-se com os interesses do grande capital e das grandes potenciais e reclama rupturas, seja nesta, seja noutras dimensões, que convocam a luta e a intervenção das forças democráticas e progressistas.
O grande capital olha para os transportes públicos como mais um sector a mercantilizar, onde pode aplicar capital e lucrar com a venda de um serviço mercantilizado, ou como um activo estratégico de que se pode apropriar para gerar rendas, ou como a forma de garantir que os trabalhadores são colocados nos locais de trabalho a custo reduzido para si, ou como garantia de vastos investimentos públicos – na infraestrutura e no material circulante – que pode financiar, executar ou fornecer.
O grande capital não contribui para o sistema público de transportes, parasita-o. Os grupos económicos falam e dizem agir em nome dos utentes (seus potenciais clientes), arrogam-se saber o que é o melhor para os utentes, mas na realidade afastam os utentes do centro da política de transportes para aí colocarem os seus próprios interesses.
Obedecendo a esses interesses tem sido construído um longo e laborioso caminho, em Portugal e na União Europeia, para impor a liberalização do sector dos transportes: das directivas à sua transposição para as leis nacionais, do endeusamento da concorrência à sua «livre» imposição, das limitações ao funcionamento das empresas públicas até ao apoio privilegiado às grandes multinacionais, da «flexibilização» das relações laborais à utilização da «capacidade acrescida de explorar» associada à «livre» concorrência como mecanismo para aumentar a taxa de exploração.
Essa longa ofensiva procura impor a crescente mercantilização dos transportes públicos, com a aplicação de princípios como o de utilizador-pagador, com o sistemático aumento de custos para os utentes a par da redução da mobilidade oferecida, com o objectivo cada vez mais assumido de que os transportes sejam uma mercadoria que se consome e não um serviço que se usa.
No actual momento, assistimos à instrumentalização de justas preocupações ambientais para dar um novo fôlego ao processo de concentração capitalista no sector dos transportes e ao aprofundamento das relações de dependência de países periféricos no seio da UE, como é o caso português. O recente relatório da Comissão Europeia sobre a “Estratégia de mobilidade sustentável e inteligente – pôr os transportes europeus na senda do futuro” é disso um exemplo.
Como em tudo o que hoje está a ser decidido na UE, o mote são as alterações climáticas e as ditas transições energética e digital, como é natural, sempre bem disfarçadas por preocupações ambientais e sociais, e com inúmeros termos de suposta modernidade que é preciso saber ler: por exemplo, transporte «de partilha» nunca é «colectivo» ou «social» ou “multimodalidade” que é um sistema de competição entre diferentes modos, e não de cooperação como é o caso da intermodalidade.
A UE está a agir para oferecer às grandes multinacionais do sector e às grandes potencias novas áreas de negócio como é o caso dos sectores mais rentáveis do transporte ferroviário. Para financiar massivamente com recursos públicos a reconversão tecnológica na indústria automóvel para o elétrico (inscrevendo como objectivos 30 milhões de carros de emissões nulas e 80 mil camiões de emissões nulas até 2030, três milhões de pontos públicos de carregamento), em vez da substituição do transporte individual pelo transporte colectivo, como se impunha se verdadeiras fossem as preocupações ambientais. Para multiplicar os impostos e as taxas sobre o consumo, penalizando as populações, em nome do princípio do poluidor-pagador. Para alargar a chamada uberização de todo o sector dos transportes, com o aprofundamento da exploração sobre a força do trabalho no sector. Para aprofundar a dependência de países mais periféricos como é Portugal, por via do condicionamento – valores, prazos, rúbricas obrigatórias – dos fundos comunitários, incluindo o chamado Plano de Recuperação e Resiliência.
Importa sublinhar que, se é verdade que as preocupações ambientais são o actual mote para uma aparente centralidade que os transportes assumem nas políticas da UE, não é menos importante sinalizar que, nessa abordagem, não é feita nenhuma reflexão sobre as actuais necessidades de mobilidade decorrentes do modo de vida que o capitalismo impõe aos povos e o consequente impacto da produção e consumo no planeta. Nada é dito sobre a expulsão das classes trabalhadores para as periferias das grandes cidades que colocam pressão acrescida às necessidades de mobilidade. Nunca são correlacionados os impactos da crescente divergência – impostas pelo mercado único e o Euro - no seio da UE e a desertificação de territórios, reverso da medalha da hiper-concentração das populações nas grandes metrópoles. Nunca são referidos que nas ditas viaturas com “emissões zero”, existem profundos impactos ambientais – e emissões de facto - quer a montante quer a jusante destas decisões.
Na verdade agem como se o planeta fosse inesgotável, e neste, também inesgotável a exploração do homem pelo homem, nesta condição, a primeira vítima da agressão ambiental. No fundo procuram manter todos os negócios actuais, e a pretexto da defesa do ambiente, todos os possíveis novos negócios de novidades tecnológicas, procurando simultaneamente justificar a manutenção do modo de vida imposto e progredir na concentração dos transportes nas grandes multinacionais.
Portugal é hoje o terceiro País da UE que mais recorre à utilização do transporte individual. Por outro ocupa o 27º lugar na extensão da rede ferroviária, rede essa que se viu drasticamente reduzida desde a integração europeia, com a destruição da CP como empresa unificada do sector ferroviário, a eliminação de mais de 19.000 postos de trabalho e o encerramento de mais de 1250 km de linhas, ramais e estações. A política de direita e as imposições da UE geraram assimetrias. Enquanto em Portugal o caminho de ferro perdeu nos últimos 30 anos 43% dos seus passageiros/km, a França ganhou 35%, e a Alemanha ganhou 24%, na qual a empresa pública ferroviária DB se expandiu, agora já com cerca de 500 empresas fora da Alemanha, em cerca de 140 países. Uma dessas empresas é a Arriva que detém 31.5% do grupo Barraqueiro, principal operador rodoviário no nosso País, operando mais de 3000 autocarros em serviços antes integrados no operador público Rodoviária Nacional. A DB alemã, por via da Barraqueiro, na Fertagus, na Metro Sul do Tejo, e detinha também participação na TAP, e prepara-se para, no contexto da liberalização da ferrovia, vir a tomar conta das linhas ferroviárias mais lucrativas, como é o caso da Linha do Norte, principal eixo ferroviário no nosso País.
No caso da ferrovia é particularmente evidente, apesar de tal não estar expresso, que o Governo português conta que, depois do investimento público que está em curso criar as condições para uma exploração capitalista rentável, e serão os grupos económicos a usufruir de muitos destes investimentos e não a actual empresa pública CP. Tal opção implica desconexão entre investimento em infraestrutura e em material circulante que também deixou de ser produzido no nosso País no final do século passado.
A luta dos trabalhadores e das populações e a intervenção do PCP têm sido o principal obstáculo não apenas à concretização de políticas de privatização, degradação e encarecimento dos transportes públicos, como ao impulso, apesar de todas as resistências do Governo PS, ao incremento da oferta e à redução dos preços. Relembramos aqui, o papel decisivo do nosso Partido, seja na reversão em 2015 das privatizações dos principais operadores rodoviários das áreas metropolitanas de Lisboa e Porto (CARRIS e STCP), bem como do Metropolitano de Lisboa, que a troika queria impor a Portugal, seja no avanço em 2019 da mais significativa redução do preço do passe social dos transportes alguma vez alcançada em Portugal – fixando-se um valor máximo de 40 euros mensais – seja na adopção da intermodalidade como regra na utilização desse passe. Importa ainda sublinhar que a redução de preços e o alargamento da oferta trouxe um tal acréscimo de utentes ao sistema que compensou a redução de preço unitário, e ainda provocou todos os ganhos indirectos reconhecidos.
É nesse quadro que a reflexão proposta neste seminário ganha sentido. Afinal, quem se atreve a assumir a recusa da hipótese de serviços público gratuitos? A gratuitidade dos transportes não é uma utopia. Os transportes gratuitos existiram e existem ainda hoje. E já agora, em países socialistas e em países capitalistas. Na URSS e na generalidade dos países socialistas da Europa de Leste os transportes públicos estavam completamente desmercantilizados, e ou eram gratuitos ou exigiam pagamentos simbólicos, mais vinculados à utilização racional dos recursos que a uma operação de compra e venda de mercadorias. Com uma simples pesquisa na internet encontramos uma vasta lista de cidades, da capital da Estónia a dezenas de cidades nos Estados Unidos, onde os transportes públicos são completamente grátis hoje. Alguns dirão que tal só será possível com uma disponibilidade de recursos de que, países mais dependentes e empobrecidos como o nosso, não dispõem. Mas será assim? Veja-se o exemplo do Metropolitano de Lisboa cujas perdas com actividades especulativas como as swaps, nos últimos 10 anos, foram superiores às receitas operacionais nesse período. Ou seja, todas as receitas de bilheteira foram para cobrir gastos com a especulação. O que prova que é possível operar sem elas.
Optámos por dar aqui um exemplo fácil, escandaloso e impossível de contestar. Mas importa ter presente que os verdadeiros ganhos para o país de um eficaz sistema de transportes (ambiente, redução de importações, ordenamento urbano e do território, factura energética, dinamização económica, etc) superam em muito o valor que nesse sistema é preciso investir seja na parcela dos impostos arrecadados, seja nas receitas de bilheteira que são retiradas ao rendimento das populações.
A luta pela gratuitidade e intermodalidade dos transportes públicos, está no centro da luta por melhores serviços públicos, pela defesa dos direitos dos trabalhadores, pelo desenvolvimento económico e a soberania nacional. Em Portugal ela trava-se no combate às privatizações e liberalizações impostas pela UE; pelo prosseguimento da redução do preço dos passes sociais e alargamento desta realidade a todo o território nacional; pelo reforço das empresas públicas de transportes sem constrangimentos vindos de fora; pelo alargamento da oferta e o correcto planeamento económico, incluindo das necessidades de produção nacional de comboios, autocarros e embarcações; pelo estímulo à substituição do transporte individual pelo transporte colectivo; pela expansão da rede ferroviária de acordo com as necessidades do País; pela criação de um operador rodoviário público nacional; pelo direito a utilizar sem imposições os recursos provenientes dos fundos comunitários; pela valorização dos direitos dos trabalhadores das empresas de transporte.
A política patriótica e de esquerda que sabemos ser necessário implementar nos transportes públicos aposta decididamente em empresas públicas prestadoras do serviço público e no investimento público colocado ao serviço da economia e das populações.
Esta é a grande marca diferenciadora da visão dos comunistas portugueses: somos pela socialização e não pela mercantilização, somos pela gestão dos recursos visando a satisfação das necessidades dos utentes. A outra marca diferenciadora é que nós pensamos os transportes públicos com os trabalhadores dos transportes. Não apenas porque discutimos o nosso projecto com os trabalhadores do sector mas porque os trabalhadores estão no centro do nosso projecto, bem como os seus direitos, a sua qualidade de vida e as empresas onde trabalham.
Estas marcas distintivas do nosso projecto são o garante de que neste se encontram as respostas às questões da mobilidade e transportes públicos: a garantia do direito à mobilidade, ao acesso universal aos bens essenciais (saúde, educação, justiça, etc) e ao lazer e à cultura; a valorização do território; a redução do impacto ambiental, do consumo de combustíveis fósseis, da sinistralidade, do congestionamento. É uma política que parte das necessidades do nosso povo e do nosso país e é por ela que continuaremos a lutar.